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Nº 1591 - Ano 34
19.11.2007

Entre tiviras e barbies

Livro analisa formações discursivas sobre o homoerotismo no Rio de Janeiro

Ana Maria Vieira

Há diversos caminhos para revisitar as histórias dos homens. Rastrear práticas e palavras que as nomeiam é certamente um deles, e abre diferentes possibilidades interpretativas. Exemplo dessa proposta pode ser apreciado no livro @s outr@s cariocas – Interpelações, experiências e identidades homoeróticas no Rio de Janeiro, séculos XVII ao XX. Recém-publicada pela Editora UFMG e pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), a obra é fruto de tese de doutorado de Carlos Figari, defendida no próprio núcleo de pesquisa.

mulheres

O texto de Figari, professor universitário na Argentina, não tem a pretensão de historiar experiências homoeróticas no país. No entanto, apresenta ao leitor vasta pesquisa documental sobre relatos dessa natureza, inaugurados no período colonial, por meio de viajantes, religiosos e funcionários do reino português. Como observa o autor, instaura-se, desde então, o silenciamento das vozes dos habitantes do Novo Mundo.
Postumamente, só podemos conhecer suas vivências e ouvir suas vozes mediadas pelo discurso indireto, presente nos textos dos estrangeiros.

E o que se escuta das práticas sexuais desses povos denominados luxuriosos? Seriam eles “muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não têm por afronta; e o que se serve de macho, se tem por valente, e contam essa bestialidade por proeza”, conforme registro do senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa, em 1587. Pecado nefando era o termo que nomeava, à meia-luz, o comportamento homoerótico.

Ainda nesse universo, Carlos Figari encontra o tivira, palavra que os tupis utilizariam para denominar homens efeminados. De teor pejorativo, o termo sugeriria que, para os indígenas, haveria negatividade na recusa do homem em exercer papel ativo socialmente. Não há, no entanto, registro sobre exclusão daqueles que apresentavam inversão de gêneros nas sociedades nativas – homens ou mulheres.

mulher_ou_homem

Reconstrução

Análise do autor indica que as interpelações dos estrangeiros para práticas homoeróticas do Novo Mundo obedecem a uma lógica de reconstrução de si mesmo e do “outro” que busca normatizar determinadas hegemonias – discursivas e de poder social. Apoiados na identificação binária dos dois universos – selvagem/civilizado e pecado/moral –, os colonizadores reforçavam a construção da diferença visualizando o “outro” como ser abjeto, protagonista de comportamento “nefando”.

É também sob tal lógica que a valoração da sexualidade será aprofundada no período colonial. Em especial, no sistema patriarcal, em que mulheres, crianças e incapazes – como os escravos –, todos eles agentes passivos, se contrapõem à ordem masculina, que remetia ao papel ativo socialmente. Já na construção dessa nova sociedade, instaura-se certa clandestinidade no homoerotismo. Condenada pela Igreja, a sodomia e a fanchonice se espalhariam, ainda assim, em colégios, conventos, ordens religiosas, espaços públicos abandonados e casas dos senhores de engenho, em que “corpos negros” serviam na iniciação sexual dos mandatários, inclusive homoerótica.

A idéia de transgressão à natureza e a Deus – documentada em inúmeros processos da Inquisição – muda, por sua vez, com a urbanização daquela sociedade e os novos paradigmas do século XVIII. O homoerotismo continua sendo proibido no domínio público. Porém, o período assiste à ampliação da esfera da vida privada, da consciência individual e de experimentações conceituais e estéticas no campo da sexualidade. Doravante, para o novo discurso hegemônico, o pecado transforma-se em doença e caberá à ciência esquadrinhar o desvio chamado homossexualismo.

Um pouco mais à frente, a experiência homoerótica sofre nova guinada e passa pelo que Figari denomina desidentificação de todos os arranjos discursivos que a moldaram. Sai da clandestinidade e, em busca do controle das narrativas sobre si mesma, estabelece a bandeira do gay cidadão – que se abre hoje a um fragmentado universo de cross-dressers, ursos e barbies, transformadas em ícones de beleza corporal entre tribos que cultuam a masculinidade.