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Nº 1602 - Ano 34
26.03.2008
Telma de Souza Birchal*
A ação de inconstitucionalidade impetrada contra a atual legislação que regula o uso de embriões para pesquisa em células-tronco movimenta a sociedade brasileira. Seguindo tendência observada em países europeus, a lei brasileira só permite que sejam usados os embriões que sobraram dos processos de fertilização in vitro nas clínicas de reprodução assistida – e que seriam, de qualquer modo, descartados. O processo ainda exige autorização expressa dos genitores.
Em nome do “direito à vida” do embrião, esta legislação está sendo questionada. A decisão que será tomada em breve terá importantes conseqüências para o futuro da pesquisa no Brasil. Já o processo de discussão oferece-nos uma oportunidade de reflexão sobre nossas convicções éticas.
Embora o Supremo já tenha dado sinais de uma decisão favorável à manutenção da lei e uma pesquisa de opinião ter constatado que 75% da população aprova o uso dos embriões, o assunto é polêmico. Os argumentos são dos mais variados teores – há aqueles que pretendem apoiar-se em dados científicos da embriologia para sustentar posição A ou B; há aqueles que apelam para razões humanitárias, como a possível cura de doenças, para defender a continuidade das pesquisas; há, ainda, aqueles que apelam para o que os britânicos chamam de slippery slope argument (ou, no popular, cuidado para não escorregar ladeira abaixo!), alertando que aceitar o que está agora em jogo – a utilização de embriões in vitro – pode implicar a aceitação de questões ainda mais polêmicas, como a clonagem e o aborto. E, por fim, os que propõem uma reflexão cuidadosa sobre o lugar da tecnologia na vida humana.
Nos limites deste artigo, vou deter-me em uma questão que está no âmago do debate: um embrião pode ser usado apenas como meio para se atingir um fim? Uma resposta positiva a esta pergunta supõe, por certo, negar ao embrião o estatuto de plena humanidade. A ação de inconstitucionalidade, no entanto, defende a idéia oposta. O argumento apresentado pelo então procurador Carlos Fonteles tem a seguinte estrutura: a lei brasileira garante a todos o direito à vida, a vida humana acontece desde a fecundação, logo o embrião tem direito à vida, o que torna inconstitucional a pesquisa com embriões. Abrindo um parêntese: é preciso observar que, para ser coerente, a ação deveria ser movida não contra as pesquisas com células-tronco, mas contra as próprias práticas de reprodução assistida, pois são elas que produzem mais embriões do que os que serão implantados no útero.
A ação pretende apoiar-se na ciência para afirmar que, desde a concepção, o ser humano está por inteiro em seu genoma, com o poder de desenvolver várias capacidades. Sendo o processo de desenvolvimento contínuo, não se pode determinar o momento em que o embrião se tornaria “humano”, ele o é desde sempre. Segue-se que matar um embrião equivale a um assassinato. Ora, podemos concordar com a definição do embrião como vida humana: o embrião é vivo, e não inanimado; e é também humano, pois pertence à espécie Homo sapiens e não a outra qualquer. No entanto, identificar células dotadas de um patrimônio genético com uma criança ou mesmo com um feto mais desenvolvido não parece ser intuitivamente evidente e menos ainda uma decorrência do que se sabe hoje em genética – remeto o leitor a um artigo do professor Sérgio Pena, conhecido geneticista da UFMG (disponível no endereço http://cienciahoje.uol.com.br/54755).
Não pretendo, porém, opor uma outra definição científica de “ser humano” à concepção “genômica” de Fonteles. Sabemos apenas que um embrião de 14 dias está desprovido da capacidade de sentir prazer ou dor, de atividades mentais e não estabelece relações com o mundo e com os outros; está também desprovido de uma história pessoal, condições que são, tanto quanto o genoma, constitutivas de um ser humano e lhe conferem estatuto moral. Pode-se argumentar que estas diferenças justificam a utilização de embriões humanos simplesmente como meios, pois o ato de sacrificar não tem o mesmo significado se dirigido a um ser vivo, mesmo humano, que não sente dor e a um outro dotado de sensações, principalmente se feito em nome de um bem maior.
Um exemplo adaptado de McMahan mostra que, de fato, nossas intuições morais estabelecem esta diferença: imagine uma clínica de reprodução assistida pegando fogo. De um lado, há 100 embriões esperando ser implantados. Do outro, um bebê de um ano, dormindo. Você tem que escolher entre salvar os 100 embriões ou o bebê, pois não pode salvar a todos. O que você faria? Se o direito à vida dos embriões fosse igual ao da criança, seria correto salvar 100 vidas em vez de apenas uma.
Não quero, porém, tirar desta “experiência de pensamento” mais do que ela pode dar. Uma boa solução para o problema do uso de embriões precisa acolher e dar lugar a diferentes sensibilidades e articular princípios conflitantes, estabelecendo uma espécie de compromisso entre eles.
Parece-me, afinal, que é o que faz a lei, ao restringir a pesquisa aos embriões supranumerários, congelados há mais de três anos e que seriam descartados. Não se permite tudo, evitando tornar a manipulação de embriões humanos um fato banal. Não se proíbe tudo, evitando curvar a busca do bem-estar humano e o desenvolvimento da ciência a uma convicção que não é compartilhada por todos.
* Professora do departamento de Filosofia da UFMG. Atualmente, desenvolve estudos de ética e bioética no Uehiro Centre for Practical Ethics, da Universidade de Oxford, na Inglaterra
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