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Nº 1605 - Ano 34
14.04.2008

Identidades e deslocamentos na literatura

Em livro de ensaios, Myriam Ávila, professora da Fale, passeia por memórias e histórias para abordar a relação de escritores com o espaço

Itamar Rigueira Jr.

Praça Sete de Setembro, nas primeiras décadas do século 20: BH nasceu para ser republicana

A cidade na memória de seus habitantes-forasteiros. O sertão descrito por escritores em resposta à imagem de viajantes estrangeiros. O espaço de negociação da individualidade com a cultura. Os ensaios do livro O retrato na rua, de Myriam Ávila, recém-lançado pela Editora UFMG, viajam de Belo Horizonte a Canudos, com escala no sertão de Minas – e da arte de Pedro Nava à de Euclides da Cunha, passando por Guimarães Rosa. O objetivo da professora da Faculdade de Letras da UFMG é especular sobre o aparecimento da questão das identidades e deslocamentos na literatura brasileira, incluindo relações com a literatura de viagem.

A autora descreve o resultado de seu trabalho – fruto sobretudo de dois projetos de pesquisa financiados pelo CNPq – como típico de um ensaísmo à maneira de Walter Benjamin, que busca associações entre coisas que ainda não foram estudadas de forma sistemática. Esse tipo de escrito, segundo ela, “depende da capacidade de aproximar fenômenos culturais”. O ensaio, então, torna-se “um passeio por veredas de idéias e sugestões de leituras”, define Myriam Ávila, doutora em Literatura Comparada.

O livro começa por uma visita à Belo Horizonte das primeiras décadas. As memórias de Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade e nomes desconhecidos mostram uma cidade criada para ser republicana, onde todos eram forasteiros e que representa a passagem do domínio das letras para o domínio das imagens, materializado pela nova estética da cidade construída por artesãos italianos.

“Quando descíamos no Floresta, a viagem começava a ficar interessante já na descida de Contorno. O moço Orosimbo Nonato nunca esperava o bonde perto do poste. Decolava do seu alpendre verdejante, vinha correndo, fraque ao vento, mantendo o coco com a mão esquerda e zás! a direita atracava firme o balaústre e ele pegava o estribo em pleno vôo – com a precisão dos acoplamentos espaciais das cápsulas astronáuticas.” (Pedro Nava, em Balão cativo)

O cinema chegou à nova capital mineira ainda no século XIX e logo depois a própria cidade virava “filme” a que se assistia da janela do bonde. Esse meio de transporte – associado ao novo espaço urbano, que cria percursos igualmente novos – gera uma outra sensibilidade, dá dimensões inéditas às relações afetivas. “O bonde é quase uma alegoria da transitoriedade e da provisoriedade, sentimentos que afloram com a modernidade”, comenta Myriam. Ela destaca que, no caso de Belo Horizonte, as memórias não delimitam lugar de tradição, mas “estão voltadas para o futuro, na medida em que surgem da observação da chegada de novos tempos”.

Resposta de Riobaldo

Ao abordar Grande sertão: veredas e Os sertões, Myriam mostra que Guimarães Rosa e Euclides da Cunha elaboram suas obras-primas, em parte, como resposta à perplexidade de estrangeiros como James Wells (inglês traduzido pela autora), que procura o tempo todo, de cidade em cidade, pelo sertão mineiro. “Essa é justamente a primeira questão do Grande sertão: Riobaldo pula entre definições, fala de sua terra através de deslizamentos, mina a necessidade de definição do estrangeiro”, explica Myriam. Segundo ela, o personagem de Rosa fala a um interlocutor que não aparece nunca, é como se estivesse conversando com os viajantes.

A última parte de O retrato na rua entra pelo campo da teoria para discutir até que ponto os indivíduos são estrangeiros com relação à sua própria cultura. A autora defende que o coletivo tolera o indivíduo, mas tenta cooptá-lo. A relação do escritor com sua cidade, em que se sente estranho, aparece de novo nesse segmento do livro. “Tento trazer a questão do forasteiro para dentro de nossa vida e pensar como negociamos nossa individualidade”, conta Myriam Ávila.

Livro: O retrato na rua – Memórias e modernidade na cidade planejada
Autora: Myriam Ávila
Editora UFMG – Coleção Humanitas
Preço: R$ 35