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Nº 1686 - Ano 36
15.3.2010

opiniao

Trote: integração ou educação?

Gabriel Gouveia de Aguiar*

“Deus, tu que hás criado os camponeses para servirem aos cavaleiros e estudantes, que puseste em nós ódio a eles, deixa-nos viver às expensas do seu trabalho, aproveitar de suas mulheres e matá-los por fim; pelo nosso senhor Baco, que bebe e levanta o seu copo, pelos séculos dos séculos, amém”

O trecho acima era um hino comum entre os estudantes das universidades inglesas no século 13. A princípio, parece um disparate, algo que temos orgulho de ter enterrado nas trevas da Idade Média. Mas se olharmos com um pouco mais de atenção podemos encontrar semelhanças quase que “evolutivas” de tradições medievais.

As primeiras universidades datam do início do século 11. Os universitários eram, em sua maioria, filhos de grandes comerciantes. A burguesia, por meio das universidades, comprava os privilégios que eram “naturais” ao clero e à nobreza. Dentro da academia, não muito diferente da sociedade à volta, a estrutura era rigidamente hierárquica, o que se estendia às relações entre os estudantes: os veteranos tinham poder sobre os recém-ingressos, cobrando deles dinheiro, bebidas ou prostitutas. Em algumas universidades, os ritos de passagem eram marcados pela ingestão em doses exageradas de álcool, banhos em excrementos, entre outros.

Uma prática comum em instituições de internato na Idade Média como profilaxia ao parasitismo e que se firmou como tradição mesmo quando melhores condições sanitárias foram alcançadas era o confisco e queima de roupas dos calouros e a tonsura completa do corpo. Essas práticas constituíam o “trote”, uma das modalidades de marcha dos cavalos, ensinada pelos domadores à base de chicotadas. Até a entrada de uma nova turma, os estudantes não podiam frequentar as mesmas salas que os veteranos, sendo obrigados a assistir às aulas de dentro dos vestiários. No Brasil, o trote já nasce violento, herdeiro direto da “praxe” portuguesa. A primeira vítima mortal data de 1831 na Faculdade de Direito de Olinda.

Os mais atentos já notaram similaridades com fatos atuais, inclusive com as imagens recentes da USP. Porém, o senso comum já incorporou tais atividades como tradicionais e naturais. O trote, combatido e praticamente erradicado em seus países de origem, permanece como cultura no Brasil, muitas vezes fantasiado de integração. E como toda “tradição” repete-se acriticamente, sem buscar as suas origens. De acordo com suas origens, o caráter educativo do trote é claro: mostrar que há uma ordem “natural” do funcionamento da universidade, uma estrutura de poder em que calouro vale menos que veterano, que por sua vez vale menos que professor. Fica a esperança de que o trote não seja “violento” e o consolo de que no ano ou semestre seguinte haverá a oportunidade de estar do outro lado.

Tal comportamento estende-se também ao restante da sociedade, em atividades com princípios idênticos aos dos ilustres estudantes ingleses do século 13. Vários exemplos poderiam ser relatados, mas o objetivo aqui não é fazer denúncias e sim provocar uma reflexão sobre nossas próprias práticas do dia a dia, questionar o que é sólido e como este pode se desmanchar no ar.

O curso de medicina é sabidamente uma escolha dura para qualquer pessoa. É o vestibular mais concorrido, que impõe grande pressão sobre o candidato. Já na faculdade, a situação permanece semelhante; são seis anos de dedicação integral aos estudos. Talvez por isso, somado ao respeito e reconhecimento milenar de que a profissão goza na sociedade, o estudante de medicina carregue tanto respeito a símbolos e tradições – quaisquer que sejam eles. Não raro, os casos que aparecem nos telejornais de trotes e comportamentos violentos de estudantes são protagonizados por estudantes da área. Na UFMG, o Diretório Acadêmico Alfredo Balena (DAAB) vem observando o recrudescimento dos trotes e resolveu tentar algo diferente.

Os estudantes que ingressaram na UFMG no primeiro semestre de 2005 tiveram a atenção chamada para um trabalho. Influenciados pelas recentes experiências do projeto Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde (VER-SUS) e do Estágio Interdisciplinar de Vivência em Áreas de Reforma Agrária (EIV), o DAAB propôs uma alternativa. Com o objetivo de mostrar a realidade do SUS em BH, apresentar e aproximar os estudantes do movimento estudantil e introduzir o debate sobre a formação médica, o projeto Da Janela Lateral... apresentou-se como uma forma de olhar a cidade e a faculdade por um novo ângulo.

Sua metodologia era muito simples: veteranos acompanhavam grupos de calouros a centros de saúde e de saúde mental na periferia da cidade, e lá os profissionais apresentavam o funcionamento das unidades, sua história (quase sempre ligada a vitórias de organizações populares) e acompanhavam os estudantes em visitas a casas nas proximidades. Todos retornavam para almoçar juntos e conhecer o restaurante universitário. À tarde, os grupos, mediados por facilitadores, eram redivididos de modo a compartilhar as experiências com estudantes que foram para locais diferentes.

Baseadas em princípios pedagógicos de educação popular e na participação ativa dos estudantes, além de dinâmicas descontraídas e pequenos textos relacionados à história de luta pela saúde no Brasil, as atividades proporcionavam, sim, uma integração. A distância, o desnível e a impessoalidade entre os calouros e os demais membros da universidade, marcas das palestras e trotes, se diluíam em uma aproximação carregada de respeito mútuo, descontração e política. O tradicional elefantinho era contraposto pelo berequetê. O “calouro burro” era chamado por seu nome. Andar descalço na rua dava lugar ao duro exercício de expressar uma opinião.

Ao fim, formava-se uma grande roda e as pessoas se abraçavam. Em uma das recepções, um dos membros do DA declarou: “Aqui não tem mais calouros e veteranos, somos todos colegas”. Mesmo que o trote ainda não tenha se tornado obsoleto, o projeto de integração na Medicina, que já dura cinco anos, continua carregando o germe do novo, firmando-se como referência e exemplo de reflexão dentro da Universidade.

*Estudante do 10º período do curso de Medicina da UFMG e integrante do Diretório Acadêmico Alfredo Balena (DAAB)

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