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Nº 1721 - Ano 37
29.11.2010

Estudo contraria noção de que anemia FALCIFORME é doença de negros

Ana Rita Araújo

arquivo pessoal
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Maria Clara estudou doadores de sangue e pacientes com a doença falciforme

Historicamente associada a pacientes negros, a anemia falciforme atinge no Brasil indivíduos altamente miscigenados, 15% dos quais com componente europeu de ancestralidade superior a 85%. “Esses dados demonstram que, em um país miscigenado como o nosso, a noção de doenças étnicas ou raciais não é cientificamente adequada”, afirma Maria Clara Fernandes da Silva, que defendeu, no Programa de Pós-Graduação em Genética, tese sobre padrões geográficos de ancestralidade genômica em Minas Gerais para o caso da doença falciforme.

Produto de parceria entre a UFMG e a Fundação Hemominas, o estudo alcançou todo o território mineiro, a partir da avaliação de duas amostras populacionais: doadores de sangue e pacientes com doença falciforme. A análise global dos portadores da doença revelou que 11,05% dos indivíduos têm alto nível de miscigenação africana e 15,58%, alto nível de miscigenação europeia, enquanto a vasta maioria (73,37%) apresenta níveis intermediários de miscigenação.

De acordo com a pesquisadora, o estudo demonstra que a enfermidade, que um dia foi considerada doença de ‘negros’, pode atingir indivíduos com grandes proporções de ancestralidade europeia, embora seja inegável a relação entre a doença falciforme e o continente africano, dada a origem geográfica da mutação responsável por essa desordem nos glóbulos vermelhos do sangue. A ideia de que a doença falciforme é específica da ‘população negra’ e não atingiria indivíduos com elevada miscigenação europeia é um equívoco, reforçado tanto pela mídia quanto por materiais institucionais de divulgação sobre essa alteração genética.

Maria Clara realizou a análise genética por meio de Marcadores Informativos de Ancestralidade (MIAs). Tal genotipagem permitiu constatar a ocorrência de variações nas contribuições africana, europeia e ameríndia para a constituição das populações das diferentes regiões mineiras nas duas amostras pesquisadas. A grande extensão territorial e a ocupação heterogênea de Minas Gerais resultaram em uma alta variabilidade nos índices de miscigenação entre os municípios. Por isso, diz a pesquisadora, estudos com amostragem restrita a um município ou a uma região do estado podem não fornecer resultados passíveis de serem extrapolados para todo o território mineiro e tampouco para a região Sudeste do país.

Exemplos dessas diferenças de graus de miscigenação entre as regiões do estado podem ser vistos em municípios como Diamantina e Manhuaçu. Enquanto em Diamantina a proporção de doadores de sangue com alta ancestralidade africana ou europeia não chegou a 17% – ou seja, mais de 83% dos indivíduos amostrados eram altamente miscigenados –, em Manhuaçu 60% dos indivíduos eram pouco miscigenados e demonstraram possuir ancestralidade africana ou europeia superior a 85%.

Povoamento

Outra observação de peso que emergiu da análise dos resultados obtidos no estudo relaciona-se a aspectos históricos do povoamento do Estado. Maria Clara detectou uma “aparente falta de correlação entre a proporção de ancestralidade africana das populações regionais atuais e o número de escravos africanos que habitavam essas regiões no passado”. Segundo ela, o estudo de doadores de sangue sugere que, em Minas Gerais, dados históricos e demográficos a respeito da população escrava africana no período colonial podem não ser bons preditivos do grau de ancestralidade africana das populações regionais urbanas atuais.

A pesquisadora cita o exemplo Montes Claros, situado em uma região que teve baixa proporção de escravos e, no entanto, a miscigenação africana entre os doadores de sangue amostrados no município é a terceira maior entre as localidades estudadas. “Isso se deve provavelmente à proximidade geográfica e influência historicamente documentada da Bahia, o estado brasileiro com maior proporção de pessoas que se autodeclaram pretas, segundo o IBGE”, comenta a pesquisadora.

A doença

A anemia falciforme é caracterizada pela alteração dos glóbulos vermelhos do sangue, tornando-os parecidos com uma foice em condições de desoxigenação, daí o nome falciforme. No Brasil, é a doença hereditária monogênica mais comum, atingindo, segundo o Ministério da Saúde, cerca de 30 mil indivíduos, com incidência de 3,5 mil novos casos a cada ano. Em Minas Gerais, estima-se o nascimento de uma criança com anemia falciforme para cada 2,5 mil recém-nascidos vivos. “Esses números, em conjunto com as características clínicas da doença, fazem da anemia falciforme um problema de saúde pública”, diz a pesquisadora, que trabalha na Fundação Hemominas, instituição referência no estado e responsável pelo seguimento clínico-hematológico desses pacientes. O acompanhamento é realizado nas unidades regionais da instituição, por equipes multidisciplinares.

Tese: Padrões geográficos de ancestralidade genômica em Minas Gerais:
o caso da doença falciforme
Autora: Maria Clara Fernandes da Silva
Orientador: Eduardo Tarazona
Co-orientadora: Marina Lobato Martins
Defesa: dia 12 de novembro de 2010, junto ao Programa de Pós-graduação em Genética