A poesia pode dar forma à nossa perplexidade, afirma Ana Martins Marques em conferência no campus Pampulha
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Ciclo de Conferências UFMG, 90 anos. Fotos: Foca Lisboa / UFMG

Em uma época dominada pela atrofia da imaginação e da empatia, a literatura e a poesia ganham ainda mais importância. “Esse talvez seja um dos maiores poderes que a gente pode atribuir à literatura: o de nos tornar mais abertos e sensíveis a outros modos de percepção e de pensamento. Isso me parece especialmente importante em momentos como o atual, de sectarismo e intolerância em relação a outros modos de vida”, afirmou a escritora Ana Martins Marques, em sua participação no ciclo de conferências dos 90 anos da UFMG, na noite de ontem, no campus Pampulha.

Antes de abordar o assunto principal de sua conferência – os sentidos da poesia na contemporaneidade, sob a ótica de uma artista com formação acadêmica, e o saber que se pode depreender dela –, Ana Martins Marques explicou por que decidiu ministrar a comunicação mesmo após ter hesitado. Além de certa aversão aos holofotes, a poeta contou ter se questionado “se teria o que dizer” em um evento mais acadêmico que exatamente literário.

“Mas decidi aceitar o convite por dois motivos. Primeiro, em razão de uma dívida de gratidão que tenho com a UFMG. Depois, por pensar que essa fala pudesse ser uma homenagem a um tio muito querido, Marcelo Pimenta Marques, que foi professor na Faculdade de Filosofia. Enquanto escrevia este texto, eu me lembrava de como ele era capaz de assumir uma atitude de investigação diante do assunto mais banal”, disse ela. Marcelo Pimenta morreu em agosto do ano passado.

Sem restituição

Sobre a “dívida de gratidão”, Ana Martins Marques discorreu: “Obviamente, ela nunca poderá ser paga. A abertura de minhas perspectivas, a ampliação de minha percepção do mundo, o contato com outros modos de ver e de existir que a Universidade me proporcionou: essas coisas não podem ser restituídas nem contabilizadas”, disse ela, que fez graduação, mestrado e doutorado na Faculdade de Letras da UFMG. “De forma que, sendo essa uma dívida impagável, o melhor que posso fazer é mantê-la de alguma forma viva; manter uma espécie de fluxo da dívida. A única forma de fazer isso é por meio da presença e do envolvimento”, afirmou.

Para a poeta, que já ganhou os prêmios Cidade de Belo Horizonte, Literário Biblioteca Nacional e APCA de Poesia, esse tipo de envolvimento de artistas e intelectuais em esferas públicas de discussão parece especialmente urgente nos dias de hoje, quando “voltam a circular com muita força discursos contrários aos investimentos públicos na Universidade, e instituições públicas importantes sofrem verdadeiro desmonte, a ponto de se tornar impossível o seu funcionamento regular, como no caso da Uerj”.

Em sua saudação à escritora, a vice-reitora Sandra Goulart Almeida comentou: “Estamos abrindo esse ciclo com chave de ouro. Conseguimos trazer dois jovens talentosos e premiados, pesquisadores e acadêmicos, para falar um pouco dos desafios que a contemporaneidade oferece a todos nós”, destacou ela, lembrando também a conferência ministrada na quarta-feira pelo matemático Artur Avila, ganhador da Medalha Fields, a mais importante de sua área.

Sérgio Alcides, poeta e professor de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira da UFMG, mediou a conferência da escritora. Em sua apresentação, Alcides lembrou que Ana “está entre os maiores poetas da atualidade que escrevem em nossa língua” e destacou a importância de sua fala. “Esta é uma noite muito rica, uma oportunidade ótima de conversar com alguém que está escrevendo a poesia que nós precisamos ler neste momento”, disse. Na abertura da conferência, o professor leu o poema História, de Ana, ainda não publicado em livro. “É um poema que, no instante da leitura, a gente sente: tem um lastro muito forte; ainda por se fazer”, disse.

História

Tenho 39 anos.
Meus dentes têm cerca de 7 anos a menos.
Meus seios têm cerca de 12 anos a menos.
Bem mais recentes são meus cabelos
e minhas unhas.
Pela manhã como um pão.
Ele tem uma história de 2 dias.
Ao sair do meu apartamento,
que tem cerca de 40 anos,
vestindo uma calça jeans de 4 anos
e uma camiseta de não mais do que 3,
troco com meu vizinho
palavras
de cerca de 800 anos
e piso sem querer numa poça
com 2 horas de história
desfazendo
uma imagem
que viveu
alguns segundos.

 

Ciclo de Conferências UFMG, 90 anos. Fotos: Foca Lisboa / UFMG

A erótica da língua

Modesta, Ana Martins Marques preparou uma conferência em que seus dois terços iniciais continham ressalvas relativas à suposta precariedade das observações que estava por fazer. “É que parece não haver, ou ao menos é difícil delimitar, algo que seja específico ou essencial à poesia. Ou talvez que o mais próprio da poesia seja hoje essa disponibilidade para estabelecer conexões: com a prosa, com as artes visuais, com a música, com a fotografia”, afirmou.

Ciclo de Conferências UFMG, 90 anos. Fotos: Foca Lisboa / UFMG

E foi assim que, entremeando em seu discurso várias referências à própria dificuldade de se expressar, a poeta alcançou o terço final de sua fala apresentando uma série de observações originais sobre possibilidades de sentido para a arte poética em um tempo em que até mesmo os sentidos se liquefazem instantaneamente, na velocidade dos algoritmos.

“A poesia talvez seja uma arte da linguagem que se caracteriza justamente por se colocar em relação e em contato com outras linguagens, acercando-se sempre do que ela ainda não é ou já não é mais”, disse. “Diferentemente do que ocorre no dia a dia, em que a gente usa a língua como se ela fosse de alguma forma transparente (a gente usa a língua como se usa o dinheiro), na poesia a linguagem se lembra o tempo todo de que também é matéria”, completou.

Em reflexão que denominou como “duas ou três coisas que sei sobre a poesia (que na verdade são quatro)”, Ana sugeriu o poema como “a procura de um ‘como dizer’” e a poesia como um “dispositivo de pensamento”. “A poesia nos mostra que pensar é um ritmo, uma velocidade. Que pensar é encontrar e produzir imagens, ressonâncias, relações.” Em suas “notas sobre a poesia”, ela ainda registrou: “O que está em jogo em um poema, para além do sentido, é essa relação de atração, de atrito, de ritmo, de intensidade e de choque entre as palavras. É uma espécie de erótica da língua: o modo como as palavras fazem amor”, disse. “É possível pensar o poema como um dispositivo singular que instaura uma específica relação com a linguagem e também com o tempo. Ou que instaura certo modo de leitura.”

Um poema se oferece

Se, por um lado, Ana Martins Marques defende a importância da literatura e da poesia na contemporaneidade, por outro ela se preocupa em não reeditar qualquer ideia de arte como panaceia para os males do mundo. “A literatura e a poesia são sempre um convite, nunca uma garantia. Um poema não pode se impor a ninguém. Ele apenas se oferece.” E acrescentou: “Os poemas frequentemente nos decepcionam.”

Foi no contexto dessas reflexões que a poeta arriscou uma resposta para a sua busca sobre o saber que pode ser depreendido da arte, da literatura e da poesia. “Esse saber não é um acréscimo ou um acúmulo de conhecimento. De modo geral, a gente não vai encontrar soluções ou saídas nos textos literários. A poesia não vai nos dar respostas, não vai nos dar programas nem acesso a algum conhecimento sistemático do mundo. O que ela nos pode dar é forma à nossa perplexidade, à nossa inquietação, aos nossos desejos, à nossa hesitação, aos nossos desequilíbrios e aos desequilíbrios do mundo.”

Para a escritora, que apesar de escrever desde criança, só começou a publicar após os 30 anos, um bom poema nos convida a ver o mundo de forma mais complexa e a reescrever a compreensão que temos dele, a compreensão que temos da linguagem, dos outros e de nós mesmos. Ou seja, um bom poema tem o potencial de oferecer ao mundo o que ele mais parece precisar: autocompreensão.

Nesse sentido, Ana Marques lembrou a importância do endereçamento na poesia. “Os poemas se encaminham. Eles estão à procura de um ‘tu’ ou de um ‘você’ a quem se endereçar.” Pensando nisso, relembrou o fim do poema Conversa com a pedra, da polonesa Wislawa Szymborska: “Bato à porta da pedra. / — Sou eu, deixa-me entrar. / — Não tenho porta – diz a pedra.” “Bater à porta do que não tem porta; bater à porta do que não responde, ou ao menos não responde em uma língua que possamos entender; procurar visitar esses lugares ainda desconhecidos, ainda sem portas: essa é a tarefa a que a poesia, desde sempre, se propõe.”

A escritora Ana Martins Marques também falou à reportagem da TV UFMG sobre o convite que recebeu da Universidade para participar do ciclo de conferências.

 

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