Busca no site da UFMG




Nº 1482 - Ano 31 - 5.5.2005

 

 

Universidade, moeda de troca?

João Batista Vilela*

 

aracterístico fenômeno de decadência cultural é o achatamento de valores. Característico e perverso, pois o que, segundo a boa razão, antes exprime uma perda que um ganho, passa a se ver assimilado ao avanço e ao progresso. O ethos que, de um lado, conferia rosto e identidade às instituições e, de outro, demarcava no imaginário coletivo o bom e o ruim, dilui-se. Submetido a um contínuo processo de erosão, perde a função de referência. Tudo se faz parecido e cria a falsa impressão de que todos estão igualados na fruição dos bens e no gozo dos direitos. Ora, onde tudo se parece, não há espaço para a excelência. Ou, se há, ela mais é sinal de extravagância ou anomalia do que de qualidade.

O que se passa hoje com a universidade no Brasil reflete bem esse tropismo niilista.

Na milenar tradição cultural do Ocidente e do Oriente, a universidade sempre foi percebida como o lugar ímpar de aplicação às formas superiores do saber. Com todas as limitações que sofre e sofria, não era diferente no Brasil, onde antes nunca se pretendeu que a alma mater fosse utilizada para fins que não a busca do melhor conhecimento, da melhor arte, da melhor cultura e das melhores letras. Alguns fenômenos sugerem que esteja ocorrendo o contrário.

Catastrofismo? Antes fosse.

Um exemplo é a idéia de cotas para grupos étnicos ou para desfavorecidos de qualquer outro matiz. Criar distinções fundadas na etnia ou em condições sociais e econômicas é um modo cínico e arrogante de legitimar preconceitos, porque perpetua a inferioridade do desvalido. Ao se afastar do princípio do mérito para se pôr a serviço do imediato nivelamento social, a universidade começa por trabalhar contra a principal de suas forças, que é precisamente o dinamismo transformador do saber. Nega-se a si própria. Rompe com suas origens. Trai o seu destino. E acaba por agravar o próprio desequilíbrio social pelo fato de que seus egressos não terão adquirido o poder de intervir sobre a realidade, modificando-a para melhor. É um erro que cresce na cultura brasileira, mais sensível às aparências que às essências, perceber a universidade como usina cuja função seja produzir o reconhecimento social. Definitivamente não é. Pobre e iníqua é a sociedade que vê na posse de um símbolo _ seja ele diploma ou título _ uma expressão de bem-estar. O bem-estar mede-se antes em parâmetros como saúde, educação, saneamento, liberdade e amplo acesso aos bens da cultura. De outra parte, não é no prêmio e sim no serviço que a universidade encontra sua realização e seus fins. Há muito, de resto, se percebeu, em ambientes menos festivos, que a universalização indiscriminada do ensino universitário, mesmo sem o sistema de cotas, ao invés de criar uma sociedade universalmente elitária, conduz ao que a crítica da pedagogia fácil chamou de akademisches Proletariat: um dos bons roteiros para o desemprego e a indigência.

Outro sinal de decadência está no uso político-ideológico da universidade, como se está vendo na tentativa de dispensar de revalidação os diplomas de médicos brasileiros formados em Cuba. Uma idéia casuística, cuja inspiração pode ser tudo menos a sobre-excelência do ensino de medicina na conhecida "democracia" do Mar das Caraíbas. Por que também não os formados em Harvard, na Universidade de Paris, na de Londres, na de Estocolmo ou na de Heidelberg, para só ficar com alguns exemplos?

Não são, porém, estes os únicos sinais. Ocorreu ao Reitor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), de São José dos Campos, a sinistra idéia de conferir diploma a ex-alunos que foram afastados de seus estudos por motivos políticos. Traduzido em palavras menos edulcoradas, trata-se, nada mais, nada menos, do que de indenizar perseguição política com diploma de curso superior. Qual pode ser o denominador comum entre esses dois bens _ liberdade política e diploma universitário _ para que se pague a perda de um com o outro? Se a proposta é correta, por que não indenizar as vítimas de outras lesões com alguma titulação acadêmica e, assim, ao menos, afastar a suspeita de casuísmo? Digamos, ao estudante de medicina, que teve de interromper os estudos por conta de uma condenação injusta, por exemplo,conceder-se logo o diploma de médico? Dependendo do quanto de injustiça houver na condenação, quem sabe mesmo o título de mestre ou de doutor?

O simples fato de que fenômenos como esses _ cotas para afro-descendentes ou egressos do ensino público, dispensa de revalidação de estudos feitos em Cuba, atribuição de diploma a perseguidos políticos _ tenham amplo assento na mídia e constituam objeto de importantes fóruns de discussão, é sintomático. Revelam o quanto de desapreço votamos à nossa universidade. E, em outra vertente, como é chinfrim o respeito que nutrimos pela Constituição da República, cujo art. 206, VII, faz da qualidade uma garantia do ensino sob todas as formas e em todos os níveis.


* Professor Titular da Faculdade de Direito da UFMG
Esta página é reservada a manifestações da comunidade universitária, através de artigos ou cartas. Para ser publicado, o texto deverá versar sobre assunto que envolva a Universidade e a comunidade, mas de enfoque não particularizado. Deverá ter de 4.000 a 4.500 caracteres (sem espaços) ou de 57 a 64 linhas de 70 toques e indicar o nome completo do autor, telefone ou correio eletrônico de contato. A publicação de réplicas ou tréplicas ficará a critério da redação. São de responsabilidade exclusiva de seus autores as opiniões expressas nos textos. Na falta destes, o BOLETIM encomenda textos ou reproduz artigos que possam estimular o debate sobre a universidade e a educação brasileira.