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Nº 1671 - Ano 36
12.10.2009

Relatos de uma travessia

Livro conta histórias e lendas do Caminho dos Currais ao longo do Rio das Velhas

Itamar Rigueira Jr.

Maira Figueiredo Goulart Trilha antiga de Ouro Preto a Sabará: calçamento preservado Trilha antiga de Ouro Preto a Sabará: calçamento preservado

Nas mãos, um caderno de notas. Na cabeça, a vontade de contar as histórias – as verídicas e as inventadas – de um dos caminhos mais importantes da História do Brasil. Depois de percorrer algumas vezes o trecho de 800 quilômetros a oeste da Serra do Espinhaço, como turista ou como integrante das expedições do Projeto Manuelzão, o médico Eugênio Marcos Andrade Goulart escreveu O Caminho dos Currais do Rio das Velhas: Estrada Real do Sertão.

Pediatra e professor da Faculdade de Medicina, Eugênio Goulart leva para o campo a vocação de pesquisador na sua área de atuação original. “Falo de história e geografia, não como especialista, mas como contador de histórias. O livro não tem caráter acadêmico, ainda que eu tenha consultado muitos livros e documentos”, ressalta o autor, que coordena o setor de publicações científicas e literárias do Manuelzão.

Os currais que dão nome ao caminho são referência a áreas localizadas na várzea do rio e destinadas à criação de bois e produção do charque distribuído para as principais localidades de Minas – Ouro Preto, Mariana, Sabará e Diamantina – e até para o Rio de Janeiro. O caminho seguia na direção do encontro com o Rio São Francisco e chegava até a Bahia. Segundo Goulart, o Caminho dos Currais não é tão conhecido como o do Mato Dentro, que ia de Mariana a Diamantina, a leste da Serra do Espinhaço, mas foi valorizado como trilha mais fácil, embora mais longa, para a viagem do litoral do país a Ouro Preto.

Histórias acumuladas

Este é seu terceiro livro sobre a região, e Eugênio Goulart – que também organizou a obra sobre a expedição ao longo do Rio das Velhas, em 2003 – continua acumulando histórias. São centenas delas, obtidas em conversas com ribeirinhos e ao vasculhar documentos antigos. Ele diz que tem mania de escrever e facilidade de coletar dados. Mas não carrega gravador ou laptop. “Registro na hora, à mão, mesmo que seja apenas uma palavra que me chama a atenção. Depois passo para o computador”, explica o pesquisador.

O livro sobre o Caminho dos Currais contou com patrocínio da lei estadual de incentivo à cultura, o que permitirá a doação de mil exemplares para escolas públicas da região. O apoio também tem levado o autor a fazer palestras para professores em diversas cidades. O livro é acompanhado de CD com material de suporte à exploração dos temas em sala de aula, incluindo exposição produzida por Eugênio Goulart que oferece um panorama da bacia do Velhas. “O trabalho é dirigido sobretudo a estudantes dos níveis fundamental e médio. Com linguagem simples, procura dar ampla visão da situação do rio e, ao mesmo tempo, mostrar a importância de cada pessoa para a recuperação da bacia”, afirma o autor.

Livro: O Caminho dos Currais do Rio das Velhas: Estrada Real do Sertão
Autor: Eugênio Marcos Andrade Goulart
Editora: Coopmed
213 páginas / R$ 20

De boca em boca

A narrativa de Eugênio Goulart procura prender a atenção dos jovens moradores com histórias que vão da descoberta do fóssil mais antigo das Américas a relatos dramáticos sobre o exílio de grupos atingidos pela hanseníase (a lepra) em regiões montanhosas desabitadas, como a da nascente do rio Mutuca. Ele escreve: “E a terra tinha boa fertilidade. (...) os exilados poderiam até não passar fome e frio. Plantavam banana, feijão e milho, tinham criações de frangos, porcos e um gadinho, e viviam seu ai-jesus longe do convívio da sociedade”. Goulart conta que apenas alguns moradores mais velhos se dispõem a falar sobre o assunto, em tom de mágoa. São filhos de hansenianos que não contraíram a doença, mas foram discriminados e humilhados.

Um dos casos que ainda correm de boca em boca na região é o do padre Ernesto Augusto Lages, vigário de São Francisco de Assis do Paraúna e da vizinha Congonhas do Norte entre 1910 e 1935. Muito culto, de mente inquieta, afirmava que havia descoberto o moto-contínuo e inventado o piano de cordas soltas e a pilha seca. “Ele ficava impaciente quando pediam explicações sobre os inventos, e morreu também sem esclarecer as regras de uma nova língua, que dizia ser inovadora e universal”, conta Goulart.