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Nº 1674 - Ano 36
2.11.2009

opiniao

Implante coclear, Libras e a cultura surda

Priscila Augusta Lima *, Flávia Priscila de Paula** e François-Xavier Berthou***

O programa Mais Você, da Rede Globo, em edicão de maio deste ano que está disponível na internet, veiculou algumas informações acerca da situação da pessoa surda e sobre o procedimento de implante coclear. Mesmo com a divulgação em 2003 do texto Mídia e deficiência, pela Fundação Banco do Brasil, permanecem alguns equívocos nas interações com as pessoas com deficiências. Durante o programa, a apresentadora Ana Maria Braga defendeu o implante coclear para pessoas com surdez profunda como forma de “integração social”. O médico otorrinolaringologista convidado do programa explicou que já operou mais de 1 mil pessoas pelo SUS a um custo de 70 mil reais. Ele afirmou que as crianças de até um ano têm mais benefícios com o implante e que, após a cirurgia, há um período de dois anos de trabalho fonoaudiológico para modelar a audição.

Quatro pessoas surdas entrevistadas no programa mostraram satisfação após o implante, mas não foi informado o percentual de satisfação entre os mais de mil que receberam o implante, e não se informou se há pesquisa longitudinal a respeito. Nosso incômodo e de muitos alunos que estudam o tema no curso de Pedagogia da FaE está no fato de que todo o pressuposto da apresentação na mídia é o de que a surdez é uma deficiência que deve ser eliminada.

Em nenhum momento mencionou-se a língua de sinais, língua natural ou primeira língua da pessoa surda. A Língua Brasileira de Sinais (Libras), baseada na comunicação gestual, propicia a inserção cultural dos surdos e a construção da sua identidade na interação com seus pares e na realização de potencialidades. Por meio dela, as pessoas surdas se comunicam e constroem aspectos culturais próprios que favorecem o seu desenvolvimento cognitivo. A comunicação em Libras promove a interação social e permite a construção do mundo simbólico e da sua identidade e sociabilidade. A pessoa surda utilizará estratégias cognitivas para a elaboração do pensamento concreto e abstrato, para a sociabilidade e comportamentos distintos dos ouvintes, considerando a forma como interage com o mundo, predominantemente visual.

É importante ressaltar que vários sujeitos surdos estudam, trabalham e mantêm vida social ativa e produtiva. A condição de surdez, por si só, não é incapacitante, e há diferença entre deficiência e incapacidade

No âmbito universitário, é importante destacar que a aprendizagem e a prática de Libras têm sido objeto de interesse de pessoas da comunidade acadêmica que recorrem ao Cenex da Faculdade de Letras (Fale), onde o curso é ofertado semestralmente junto com os outros cursos de idiomas. Recentemente, a Faculdade de Medicina UFMG, com a participação do curso de Fonoaudiologia, recebeu inscrições de 300 candidatos para realizar o Exame Pró-Libras que certifica os alunos e assim permitir que eles tenham o respaldo legal para atuarem como intérpretes de Libras. Essas iniciativas dão conta do movimento em direção à valorização e ao aprendizado de Libras, caminho oposto ao da apresentação citada na TV.

Na matéria veiculada, outro equívoco observado foi o de vincular a surdez à incapacidade. Durante o programa, o surdo (não-implantado) é visto como improdutivo. Foram usadas as seguintes expressões: “não pode estudar, não poderá ter sua profissão, não irá socializar e sempre dependerá de alguém”. É importante ressaltar que vários sujeitos surdos estudam, trabalham e mantêm vida social ativa e produtiva. A condição de surdez, por si só, não é incapacitante, e há diferença entre deficiência e incapacidade. Para os membros do Grupo de Estudos de Educação Inclusiva e Necessidades Educacionais Especiais (Geine), a matéria mostra desconhecimento a respeito da surdez. Estimula a substituição de uma língua (sinais) por outra (oral) por meio de procedimento cirúrgico. Ocorre que, por meio da língua de sinais, é possível construir uma forma de pensar e representar o mundo, uma identidade, cuja substituição não é automática.

Uma avaliação necessária desses procedimentos deveria envolver os surdos que foram implantados, examinando sua inserção na comunidade de ouvintes e a continuidade da participação na comunidade surda. É fundamental que a pessoa implantada mantenha os laços construídos antes do implante. No entanto, há casos de surdos adultos que, após o implante, não se adaptaram ou arrependeram-se, pois muitas vezes a iniciativa de fazer o implante foi da família. Já as crianças com surdez pré-linguística poderão ser favorecidas, especialmente se os pais forem ouvintes, como ocorre na maioria dos casos.

Tendo em vista a exibição desse programa e as discussões com alunos que estudam educação inclusiva, questionamos: qual a relação custo-benefício desses procedimentos para os sujeitos surdos e para a sociedade? E a contratação de intérpretes de Libras? As duas ações são compatíveis?

Uma alternativa para minimizar os efeitos da divulgação inadequada seria promover ações para explicitar a real condição de muitos trabalhadores surdos, oralizados ou não, e a importância da língua de sinais na construção da identidade desses sujeitos.

*Professora da Faculdade de Educação e coordenadora do Grupo de Estudos de Educação Inclusiva e Necessidades Educacionais Especiais (Geine)
** Integrante do Geine/FaE
*** Integrante do Geine/FaE

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