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Nº 1738 - Ano 37
16.05.2011

opiniao

Um dia para a LOUCURA e a CIDADE se enamorarem

Ana Marta Lobosque*

A comemoração do dia 18 de maio ressalta a vitalidade de um importante movimento social que luta pela cidadania do portador de sofrimento mental em várias localidades do Brasil. É um acontecimento que merece atenção.

Novas direções para políticas públicas e leis conquistadas ao longo de mais de 30 anos de trabalho vêm delineando um modelo de atenção pautado pela lógica do cuidado, e não da exclusão.

Trata-se da construção e do fortalecimento de redes assistenciais compostas por variados serviços públicos, dispositivos civis e ações: os centros de atenção psicossocial (CAPs) ou centros de referência em saúde mental (CERSAMs), as equipes de saúde mental em unidades básicas de saúde, os centros de convivência, os grupos de produção solidária (cooperativas), as moradias protegidas, as parcerias intersetoriais, entre outros.

Essa rede tem dado sustentação a uma substituição progressiva dos leitos em hospitais psiquiátricos, que representavam, nos anos 80, o segundo maior gasto com internações na área de saúde e
constituíam um dos maiores parques manicomiais privados do mundo. Excluir, banindo o sofrimento mental do cotidiano e das circunvizinhanças, já foi a principal, senão a única, resposta assistencial oferecida no nosso país.

Até 2001, qualquer pessoa podia internar outra pessoa em locais que, via de regra, não ofereciam perspectivas de reabilitação e saúde. Essa constatação foi amplamente compartilhada e duramente denunciada pelos profissionais e usuários dos serviços de saúde mental. Assim começou tal movimento social, que teve, entre suas conquistas, a Lei da Reforma Psiquiátrica, a 10.216, aprovada pelo Congresso Nacional durante o governo Fernando Henrique Cardoso.

Contudo, o movimento antimanicomial, por mais que exija e ajude a promover mudanças no modelo assistencial, busca, sobretudo, assegurar a presença e o trânsito do assim chamado louco na cidade, no âmbito do convívio, da arte, da cultura, da política. Trata-se de criar laços que permitam, em prol da liberdade, o diálogo e o relacionamento com o diferente e com a diferença.

Nesse sentido, nada ilustra melhor o significado desse movimento do que o desfile da Escola de Samba Liberdade Ainda que Tam Tam, marcado para 18 de maio. Tal manifestação pública já se tornou uma tradição de Belo Horizonte. É uma celebração organizada pelo Fórum Mineiro de Saúde Mental e pela Associação de Usuários de Saúde Mental de Minas Gerais que reúne trabalhadores, estudantes, professores universitários, usuários de serviços de saúde mental de Minas Gerais e seus familiares e militantes de outros movimentos sociais.

O trabalho de preparação para o desfile é longo e faz parte do cotidiano dos serviços de saúde mental. Já em janeiro, iniciam-se debates para definir o tema do desfile e os nomes das alas. Feito isso, os diferentes serviços que compõem a rede substitutiva aos hospitais psiquiátricos e outros grupos de apoiadores da Reforma Psiquiátrica brasileira se distribuem entre as alas, e cada uma delas se reúne para inventar a sua própria fantasia.

A festa começa bem antes, com a escolha, por uma comissão julgadora, do melhor samba-enredo, do passista e da porta-bandeira. Nos serviços de saúde mental e em outros espaços, as chamadas oficinas fabricam as fantasias com todo carinho e criatividade possíveis.

No dia 18 de maio, às 13 horas, a concentração começa a preencher, de excêntricas presenças, cores, formas e sons, a nossa familiar Praça Sete. As alas se formam; os trios elétricos entoam o samba eleito e, enfim, o desfile, vibrante e colorido, composto por centenas de pessoas, entra na avenida Afonso Pena, sobe a Augusto de Lima, desce a Rio de Janeiro e ganha a cidade.

Neste ano, o 18 de maio mineiro comemora os 50 anos da publicação do livro História da loucura, de Michel Foucault – uma das decisivas referências do movimento antimanicomial entre nós. Em uma divertida alusão ao caráter ficcional de toda a história narrada no livro, o desfile escolheu como tema Histórias da loucura: Michel também contou.

Cabe ressaltar a crescente participação, nos últimos anos, dos estudantes e professores universitários no desfile de 18 de maio. Destacam-se aqui os laços que se estreitaram entre a luta antimanicomial e o movimento estudantil, representado pelo Espaço Saúde, efetivo protagonista da preparação e da realização do desfile. Sua força jovem é capaz de compreender a ousadia do desejo de liberdade e visibilidade daqueles que são desafiados pelo sofrimento mental, mas seguem adiante. Solidariedade é a palavra que tudo colore.

A criação do Fórum de Formação em Saúde Mental de Minas Gerais, reunindo professores e alunos de diversas instituições formadoras, como a UFMG, contribui para consolidar a aproximação entre racionalidade acadêmica e a luta por um mundo mais inclusivo. Neste ano de 2011, particularmente, a rede formada por este Fórum construiu uma agenda de oficinas de fantasias, rodas de conversa, espetáculos, exposições, exibição de filmes e fotografias que problematizam os desafios da formação em saúde mental.

O desfile da Escola de Samba Liberdade Ainda que Tam Tam é um belo e pujante acontecimento. A loucura e a cidade se enamoram, reafirmando os laços de um convívio possível e desafiador, tecido ao longo de muitos anos pelo Movimento da Luta Antimanicomial. Vale a pena ver de perto.

*Psiquiatra, professora da Escola de Saúde Pública de Minas Gerais e integrante do Fórum de Formação em Saúde Mental de Minas Gerais

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