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Nº 1819 - Ano 39
6.5.2013

opiniao

A (in)compatibilidade entre ciência e fé revisitada: um problema de linguagem

Marcos Sousa*

Em 25 de fevereiro último, foi publicado neste espaço um texto bem escrito, intitulado A (in)compatibilidade entre ciência e fé revisitada, de autoria de Marcos Filipe Guimarães Pinheiro, que partia do viés de dualidade entre ciência e fé. Pretendo, neste breve texto, abordar o tema de outro ângulo: o da linguagem.

A ciência não considera irracionais os saberes religiosos, porque “a priori” é um método sem vieses. A ciência é um método simples, limitado, organizado, de tentar descrever e intervir na natureza e seus processos, dentro de determinados limites, de forma reprodutível. Como parte da dúvida, evita os dogmas. Evitar dogmas não é negá-los nem desrespeitá-los. Para a maioria das grandes perguntas, a ciência não tem respostas nem meios de verificá-las. Até para a matéria, a ciência não apresenta respostas satisfatórias.

Se os átomos são a matéria-prima básica de que as coisas são feitas, então de que são feitos os átomos? Suas subpartículas são feitas de matéria ou energia? Se é uma vibração energética, em que consiste essa energia? Com ou sem religiosidade, “permanecem inexplicáveis a imensa variedade e originalidade dos universos simbólicos construídos pela humanidade”. Erwin Schrödinger tinha razão sobre os limites e as deficiências do “quadro científico” que a ciência pode pintar. Como tal quadro não diz uma palavra sobre sabores, cores e sentimentos, muito menos de Deus ou eternidade, precisamos de novos recursos de linguagem para expressar tais significados de forma compreensível por todos. Não é uma questão de desrespeito ou de inteligência, e sim de linguagem.

A laicidade do ambiente universitário e das instituições públicas pode ser vista também como um respeito às crenças. Uma polêmica recente surgida na Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal ilustra tal conclusão: preconceitos não podem ser justificados de forma religiosa em uma instituição pública que deveria ser laica. Não ter um viés religioso é também respeitar os múltiplos pontos de vista. Permitir expressões e movimentos, religiosos ou não, faz parte da democracia.

Há milênios, os problemas autorreferenciais e de linguagem persistem na filosofia. Platão dizia que vivíamos na caverna, vendo sombras e achando que enxergávamos a realidade que só ele e os filósofos podiam compreender. Este é um problema autorreferencial: por que Platão via diferente? Será que há algum Platão fora de nossa caverna atualmente? Há pouco, um líder religioso disse que “quem não segue Cristo, segue o demônio”. Será que ele vê mais do que as sombras que vemos? É diferente de um líder muçulmano que proclama morte aos infiéis? O Deus das três grandes religiões monoteístas é o mesmo? Como explicar que um deles ao mesmo tempo é três e os outros não? Como explicar que o mesmo Deus tenha receitas de comportamento tão distintas? Além disso, como ficam outras minorias religiosas, inúmeros deuses de tribos nativas de todas as partes do mundo? E as inúmeras crenças indianas e chinesas com milhões de seguidores, nas quais há religiosidade, mas não há entidade divina? Como conciliar representações simbólicas tão díspares? Este problema não está na ciência, que é um mero método de observação e experimentação. Ele se encontra na linguagem, na plausibilidade, dentro e fora do campus universitário.

Os filósofos chineses de meio milênio antes de Cristo já discutiam os limites de nossa linguagem: “O Dao que pode ser dito não é o Dao verdadeiro; o Dao que pode ser nomeado não é o nome verdadeiro do Dao”. Essa frase simboliza os limites de nossa linguagem, de nossa capacidade de representação que ainda persistem. Não sou daoísta nem atribuo o mesmo significado à palavra Dao conferido pelos daoístas, mas tal palavra pode ser um ponto de união para crentes e não crentes. Dao pode ser o todo, pode ser a natureza, pode ser Deus, pode ser “caminho” em chinês. Seguir o “caminho”, respeitar o todo, respeitar o Deus de cada um, respeitar a natureza. O Dao que pode ser dito não é o Dao verdadeiro, mas é o que podemos dizer. Um filósofo contemporâneo, Hilary Lawson, propõe, numa tentativa de solucionar o problema autorreferencial, uma nova linguagem: closure. Ainda não estou certo se closure resolverá este problema, mas estou certo de que precisamos de uma nova linguagem, e não de um retorno à Idade Média.

Enquanto não encontramos uma linguagem compreensível a todos, podemos tentar compreender nossos sentimentos, nosso sofrimento, de forma humana. O que nos une não são nossas palavras. O que nos une são nossos sentimentos. Essa discussão polarizada entre razão e emoções é uma crítica pertinente ao iluminismo, mas não à ciência. O método científico se aplica a questões bem menores, bem reducionistas, e não está em oposição a uma tentativa de compreensão da condição humana.

Independentemente das palavras que utilizamos, nosso sofrimento é parecido, não respeita crença, ideologia, e muito menos raça (está bem definido geneticamente que somos uma única raça, humana). A natureza maravilhosa, impiedosa, segue seu fluxo e não somos seu centro nem sua preocupação. Nossas palavras e nossa compreensão são muito limitadas. Seguir o caminho. Superar o sofrimento, quando possível. Receber acolhimento durante o sofrimento. Ter amigos, ter família, ser amigo, ser família. Compreender, mesmo que o outro diga palavras estranhas. Reconhecer a si mesmo no outro, amar o outro como a si mesmo são consequências naturais dessa compreensão. Buscar palavras para representar o sofrimento que nos aproxima: solidariedade, respeito e simpatia – simpatia, em sua origem etimológica, significa sofrer junto.

*Cardiologista do Hospital das Clínicas da UFMG