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Nº 1859 - Ano 40
14.04.2014

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opiniao

Um lugar para viver o imprevisível

Marcos Hill*

Falar do Centro Cultural UFMG no contexto de seu vigésimo quinto aniversário é como revisitar momentos importantes da minha trajetória como professor e como propositor de práticas desviantes que, durante quase uma década, garantiram territórios de experimentação e de realização pessoal para mim e para muitos alunos que compartilharam esses momentos.

Tive, durante a década de 1990, a oportunidade de contar com o acolhimento desse Centro que, muito mais do que um espaço, caracterizou-se como ambiente propício para a vivência do imprevisível, do extracurricular, do experimental, do processual, enfim, estados de necessidade e desejo fundamentais nos múltiplos processos de invenção artística.

Durante esse período, além das galerias do sobrado de dois andares localizado na avenida Santos Dumont, contávamos com o empréstimo generoso, solidário e constante do Galpão Guaicurus, complexo de amplos galpões, que pertencendo à Escola de Engenharia da UFMG, nos oferecia uma experiência arquitetônica ímpar, com edificações anteriormente adequadas a um maquinário que havia servido à primeira escola de engenharia da cidade.

No Galpão Guaicurus, mais de uma geração de profissionais da imagem foi formada através de iniciativas, em grande parte propostas e coordenadas por mim, sempre com o apoio incondicional da direção e da equipe de técnicos e administrativos que constituía o quadro funcional desse Centro.

Sempre incentivando e acolhendo propostas impossíveis de serem realizadas em outros espaços culturais de Belo Horizonte, muitas vezes coordenei eventos que só faziam crescer o Centro tanto do ponto de vista espacial (com as inúmeras agregações do Galpão Guaicurus como espaço expositivo) quanto do ponto de vista simbólico. É o caso de dois eventos que ali testemunhei, o primeiro como espectador e o outro como propositor.

O primeiro foi uma interessantíssima exposição do ceramista Máximo Soalheiro, na qual se montou um sistema de queima de racú, e realizada no momento da abertura do evento, que contou ainda com um maravilhoso solo de Sílvia Klein, jovem cantora lírica de incontestável qualidade. Enquanto ela nos brindava com sua linda voz, Soalheiro, à meia luz, retirava suas peças incandescentes de um forno montado ali, passando-as pela serragem e, em seguida, pela água contida em reservatório aberto no chão do Galpão.

O segundo foi a exposição Daqui a um século, que concebi, e curada por mim, pelo artista Marco Túlio Rezende e pelo historiador da arte Ronan Couto. Idealizada em 1997 para celebrar o centenário de Belo Horizonte, Daqui esteve fora de qualquer calendário institucional. Essa, aliás, foi minha principal motivação. Várias exposições que narravam parte da história da arte inventada na capital mineira, desde sua fundação, não prestavam a devida atenção a uma enorme efervescência criativa que pulsava nas duas escolas de arte belo-horizontinas (EBA/UFMG e Guignard).

Coube a nós, professores dessas escolas, a tarefa de identificar o que acontecia sob nossos olhos, mas não era percebido pelo poder público responsável pela comemoração. O fato é que preenchemos todos os espaços expositivos e não expositivos com manifestações artísticas dos alunos. Desde os muros externos do prédio, passando pela calçada, os saguões, os vãos da escadaria de madeira, as galerias dos dois pisos, o pátio interno e todo o Galpão Guaicurus. Dentre as linguagens, acolhemos todas, da pintura à performance, da fotografia à instalação. Além disso, cotizamos entre os artistas participantes e trouxemos Sônia Salzstein e Agnaldo Faria, de São Paulo, para conhecer as propostas expostas e estabelecer interlocução com seus autores e com o público.

Curioso é perceber como o fervor propositivo dos jovens alunos dos anos 1990 foi arrefecendo com a entrada do século 21. Curei inúmeras exposições ocorridas nas galerias do Centro Cultural UFMG, sempre encaminhadas pelos próprios alunos, o que permitia um processo constante de amadurecimento profissional, através de vivências cheias de entusiasmo experimental. É igualmente notório o adensamento burocrático sofrido pela instituição universitária ao longo do mesmo período, o que, aos poucos, foi tolhendo o ímpeto criativo sempre tão bem acolhido pelas sucessivas gestões do nosso Centro.

Como poderia ser pensada hoje a fixação de uma tela de pintura, com 12 metros de comprimento, na fachada que dá para a Praça da Estação, a partir do telhado? A tela era do então aluno Marcelino Peixoto. A diretora a quem sempre serei grato por ter encarado o desafio era a professora Neiva Ferreira Pinto. Precisou até da intervenção do corpo de bombeiros, mas a tela foi fixada.

Mudaram-se os tempos e os tempos mudarão. As administrações do Centro sucederam-se. O Galpão Guaicurus foi vendido sem nenhuma possibilidade de aproveitamento do imenso espaço tão intensamente utilizado por alunos, professores e outros artistas da cidade.

Fica uma sensação ambígua em toda essa vivência acumulada. Se, por um lado, foi decisivo o reconhecimento da importância do Centro Cultural da UFMG como espaço apto ao apoio de projetos experimentais e desafiadores, por outro, sempre me pareceu que as instâncias superiores da Universidade tinham alguma dificuldade em reconhecer a mesma importância para a comunidade acadêmica e para as várias comunidades urbanas de Belo Horizonte. Sou testemunho de lutas solitárias por parte de diretores que por ali passaram no sentido de legitimar o trabalho fundamental de toda a equipe.

No entanto, seria interessante destacar uma benéfica convergência de interesses nas duas últimas gestões comandadas pelas professoras Sônia Queiroz e Maria Inês de Almeida. Elas conseguiram propiciar momentos institucionais mais proveitosos em que seu entusiasmo e garra aliaram-se a escutas mais sensíveis que não as deixaram falando sozinhas. Os resultados dessas interlocuções são visíveis a começar por importantes processos de restauração do prédio e pela implantação de projetos institucionais que hoje transformam o Centro Cultural UFMG numa das mais importantes referências culturais e artísticas de Belo Horizonte.

*Professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Belas-Artes