Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 5 - nº. 10- outubro de 2006

Editorial

Entrevista
Evando Mirra de Paula e Silva

Patentes
Do laboratório à linha de produção


Propriedade intelectual e inovação na UFMG
Rubén Dario Sinisterra Milan

Incubadoras
Chocando futuras empresas

Empreendedorismo
Pequenas que trabalham como gente grande

Saúde Pública
Na captura do Aedes aegypti

A lei de inovação e sua repercussão nas
instituições científicas e tecnológicas

Edson Paiva Rezende, José Lúcio de Paiva Júnior, Maria Romanina Velloso Martins Botelho, Nícia Pontes Gouveia e Vinícius Furst Silva

Aeronáutica
Inventores de vôos

Paramec
Tecnologia a serviço da inclusão

Inovação na biotecnologia
Erna Geessien Kroon


Acessibilidade
Bengala eletrônica

Sistemas nacionais de inovação e desenvolvimento
Eduardo da Motta e Albuquerque

Nanotecnologia
Viagem ao país dos “nanos”

Conhecimento e riqueza
Ana Maria Serrão, Lívia Furtado, Mari Takeda Barbosa, Rochel Monteiro Lago, Lin Chih Cheng e Solange Leonel

Solidariedade
Da pura técnica à tecnologia social


Tecnologia social: um conceito em construção
Carlos Roberto Horta

Expediente

Outras edições

 

brasão

 

Entrevista

Um Brasil maduro para a inovação

Evando Mirra de Paula e Silva

Especialista advoga a necessidade de integração de esforços entre as áreas acadêmica e produtiva

Se a questão da inovação tecnológica no Brasil passa pela interlocução entre vários atores sociais, desde os representantes da comunidade científica aos do empresariado, do governo e da sociedade civil, não há dúvida que Evando Mirra de Paula e Silva é um dos interlocutores mais qualificados nesse debate por sua sólida formação científica, por sua experiência como gestor acadêmico e governamental e com não menos razão, por sua vasta cultura humanística e sensibilidade social.

Sua carreira acadêmica começou na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) onde se graduou em Engenharia Metalúrgica, foi professor, pró-reitor e vice-reitor e, finalmente, agraciado com o título de professor emérito.

No setor público, foi presidente do Centro Tecnológico de Minas Gerais (Cetec-MG) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), tendo ocupado, desde sua fundação, a presidência do Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE), organização social que tem como finalidade a promoção do desenvolvimento em ciência e tecnologia. O fato de estar, hoje, à frente da estratégica Diretoria de Inovação da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) coloca-o em posição privilegiada para falar sobre essa questão crucial para o futuro do País.

É o que faz nesta entrevista, concedida com exclusividade a DIVERSA. Nela, Mirra aprofunda alguns pontos de vista sobre as questões mais candentes relacionadas ao tema da inovação, colocadas enfaticamente na ordem do dia. E revela-se um analista perspicaz das realidades acadêmica e empresarial brasileiras, cuja interação começa a ganhar músculos para um impulso definitivo em favor do desenvolvimento econômico e social do País.

Vlad Eugen Poenaru

Há muitas formas de conceituar inovação, mas o essencial é que se trata, sempre, de alguma coisa nova introduzida no mercado ou na prática social

DIVERSA - Por que, atualmente, se fala tanto em “inovação”? Como conceituá-la?

Evando Mirra – Há muitas formas de conceituar inovação, mas o essencial é que se trata, sempre, de alguma coisa nova introduzida no mercado ou na prática social. Nesse espírito, a chamada Lei da Inovação (Lei no 10. 973, de 2 de dezembro de 2004), define-a como “introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social que resulte em novos produtos, processos ou serviços”. De qualquer forma, é verdade que se começa a falar, com maior insistência, da inovação, mas não tenho certeza de que se trate apenas de um modismo. Do simples ponto de vista contábil, os números são impressionantes: a Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) estima que a inovação responde por cerca da metade do crescimento econômico de longo prazo dos países industrializados! Da mesma forma, um estudo abrangente, realizado recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostra que, no Brasil, embora sejam minoritárias, as empresas inovadoras respondem por 75% do valor agregado da indústria brasileira, além de serem mais produtivas, empregarem mais e pagarem o triplo do salário pago por empresas não-inovadoras. No entanto, além da geração de riqueza, o fato de a inovação fundar-se no conhecimento tem conseqüências interessantes. Primeiro, exige maior grau de escolaridade, promove a educação em todos os níveis. Em segundo lugar, estimula a pesquisa, não só no ambiente empresarial, mas também nas universidades e nos institutos. E gera, por toda parte, atividades interessantes, uma cultura viva e mais dinâmica. Para nos limitarmos a alguns exemplos recentes em que a UFMG esteve diretamente implicada, basta ver o processo que envolveu o Departamento de Ciência da Computação e a Akwan, para gerarem o primeiro laboratório de pesquisa da Google no Hemisfério Sul; a verdadeira transformação da indústria siderúrgica brasileira, hoje das mais competitivas do mundo, em que o Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais teve papel decisivo; ou, para explorarmos um exemplo saboroso, a criação da indústria do pão de queijo em Minas, hoje internacionalizada, em que nossa Faculdade de Farmácia desempenhou papel fundamental, ao lado da Universidade Federal de Viçosa e dos empresários do setor.

DIVERSA – Que relação se pode estabelecer entre a proposta de inovar e o processo de globalização, que exacerbou a competição econômica entre as nações?

Vlad Eugen Poenaru

A Lei de Inovação brasileira, como em outros países, procura construir um ambiente mais acolhedor para o trabalho cooperativo, dimensão essencial na inovação

Mirra – Acho que temos não apenas uma forte competição entre as nações, mas também uma distribuição das atividades de pesquisa e de produção nas nações que se dispõem a entrar, de fato, no jogo. E não se trata apenas dos componentes de microeletrônica produzidos em Taiwan ou Singapura para toda a indústria eletrônica mundial. Uma empresa como a Rolls-Royce realiza suas atividades de pesquisa em 27 centros distribuídos pelo Reino Unido, na Europa continental, na Ásia, nos Estados Unidos, e iniciou, agora, negociações para instalar um centro no Brasil; a empresa monta componentes oriundos de diferentes regiões e opera em 120 países. Uma simples camisa pode ser feita de algodão plantado em um país e trabalhado em outro, utilizar botões feitos em um terceiro lugar e assim por diante. O fenômeno, meio estranho, é, na verdade, avassalador. Nesse contexto, o impulso inovador deve muito às tecnologias de informação e comunicação, mas, sem dúvida, permeia hoje toda a economia.

DIVERSA – O que o senhor acha do modelo brasileiro para a inovação estabelecido em lei? Ele próprio é inovador ou estamos ainda reinventando a roda?

Mirra – Em todos os países, o processo de inovação tem foco na empresa, mas é conduzido numa espécie de mutirão que envolve toda a sociedade e tem presença marcante do Estado. Por isso, é fortemente dependente do sistema de ensino e de pesquisa, do marco legal que ordena as relações de trabalho e da convivência entre o público e o privado, a propriedade intelectual, e do próprio entendimento coletivo de como essas coisas devem ser conduzidas. Nossa Lei da Inovação foi elaborada, inicialmente, em um amplo processo coletivo, que envolveu as universidades, as sociedades científicas, o sistema de produção e os setores políticos, ao longo dos anos 2000 e 2001. Foi levada a consulta pública entre 2001 e 2002, tramitou, em seguida, no Congresso sob diferentes formulações, foi redesenhada e reencaminhada no governo atual, sendo, finalmente, aprovada em dezembro de 2004 e regulamentada recentemente. Essa consulta ampla e esses prazos longos são típicos de processos que exigem muito diálogo e toda a paciência para a construção de um entendimento compartilhado. A Lei de Inovação brasileira, como em outros países, procura construir um ambiente mais acolhedor para o trabalho cooperativo, dimensão essencial na inovação. “Colaborar para competir” pode parecer um mote estranho, mas é assim mesmo. E não se trata apenas da cooperação universidade-empresa, mas da cooperação em todas as suas formas, o que inclui, obviamente, a colaboração empresa-empresa, ainda muito frágil no Brasil. Assim, embora a matriz da Lei tenha um arcabouço universal, sua eficácia dependerá do fato de ser ou não capaz de lidar com a cultura local, e com a transformação modernizadora dessa cultura.

Vlad Eugen Poenaru

DIVERSA – Dentro desse modelo, que papel está atribuído à Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI)? Como surgiu e como está estruturado o órgão?

Mirra – O projeto de criação da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial surgiu no próprio processo de elaboração da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), no início deste governo. Sabemos que uma política dessa envergadura não se implanta por decreto, nem surge da noite para o dia. Pelo contrário, exige um imenso trabalho de articulação e de entendimento, com presença sinalizadora e ordenadora do Estado e amplo envolvimento de empresas, órgãos financiadores, universidades e institutos de pesquisa, enfim de toda a sociedade civil. Com a entrada em cena da Lei de Inovação, agregou-se uma nova dimensão a esse processo e reforçou-se a necessidade de contar com uma instituição dedicada permanentemente às novas tarefas. A ABDI foi criada nesse contexto, com a missão de promover o desenvolvimento industrial e tecnológico brasileiro, pelo aumento da competitividade e da inovação, articulando as ações desenvolvidas no âmbito da PITCE e da Lei de Inovação, em interação com os órgãos públicos e com a iniciativa privada. A Agência opera de forma colegiada, com forte integração entre suas áreas, e está formalmente estruturada em duas diretorias. A Diretoria de Desenvolvimento Industrial procura abordar os problemas e as oportunidades que se apresentam, hoje, nos diversos setores da economia e tem como principal instrumento os Planos de Desenvolvimento Setoriais, negociados, caso a caso, com os diferentes setores. A Diretoria de Inovação visa, fundamentalmente, ao futuro e trabalha com os Planos Tecnológicos Setoriais, que compreendem estudos prospectivos e o desenho de rotas tecnológicas, além de iniciativas em linhas portadoras de futuro – como biotecnologia, nanotecnologia e biomassa. É claro que essas agendas compreendem um grande substrato comum e que as duas diretorias trabalham permanentemente articuladas. A Agência conta, ainda, com uma Gerência voltada prioritariamente para as opções estratégicas definidas na PITCE – semicondutores, software, bens de capital, fármacos e medicamentos. Finalmente, uma Gerência Geral cuida de uma gama de atividades transversais, compreendendo, por exemplo, um Portal de Inovação, a promoção de Jornadas de Inovação pelo País e outras atividades dessa natureza.

DIVERSA – Que chances tem esta política de dar certo, sabendo-se que a indústria brasileira tem sido historicamente refratária à inovação?

Mirra – Bem, a história do Brasil ainda não está pronta... É verdade que o desenvolvimento tecnológico autóctone e a inovação não foram preocupações primordiais da indústria brasileira até recentemente. Contudo, é também verdade que muita coisa já mudou, em especial nos últimos 15 anos, e que essas mudanças parecem ingressar, agora, em uma nova fase. O que talvez seja mais marcante é o nítido contraste entre a postura conservadora, ainda dominante no tecido industrial brasileiro, e a existência de sucessos notáveis em diversos setores inovadores, que geram benefícios extraordinários para a sociedade brasileira e colocam esses setores em posição de destaque no plano mundial. O Brasil é, hoje, líder mundial inconteste em energias renováveis e sua competência em biomassa, notadamente na produção de bioetanol, está abrindo oportunidades inéditas para o País, no momento em que o mundo parece estar, finalmente, despertando para a urgência de substituição da energia de combustíveis fósseis por formas sustentáveis de energia. No terreno mais tradicional do petróleo, é notória a liderança mundial da Petrobras em tecnologias de águas profundas, que a qualificam não apenas como um dos atores essenciais nesse domínio, mas lhe conferem ainda um lugar privilegiado no novo cenário das companhias de energia com um portfólio energético diversificado. O sucesso de nossa agricultura tropical foi construído com intenso desenvolvimento tecnológico e inovações sofisticadas em todos os seus domínios. A automação bancária brasileira adiantou-se à dos países mais desenvolvidos e está na vanguarda em muitas áreas. A eleição eletrônica no País é um sucesso sem precedentes, dada a complexidade e as exigências do processo e as dimensões continentais do Brasil. A biotecnologia transformou um ritual familiar como o do pão de queijo em uma indústria multiforme que gera empregos, riqueza e divisas para Minas e para o País. A aposta na tecnologia e na ocupação inteligente do mercado transformou uma pequena cidade rural do interior de Minas no Pólo Tecnológico de Santa Rita do Sapucaí, com lugar de destaque no nosso parque de informática e de telecomunicações. Poderíamos fazer um inventário exaustivo, mas não é isso o que nos interessa aqui. O que nos interessa é lembrar como, nos espaços onde, de fato, apostamos na inteligência e na engenhosidade, tivemos sempre a demonstração cabal de nossa competência e de nossa competitividade. Não me parece ser um sonho vão o de expandir esses sucessos para além dos limites em que se encontram ainda confinados. Pelo contrário, com a desenvoltura crescente de muitos setores empresariais e com a base expandida de conhecimento de que dispomos, hoje, no Brasil, mudaram as nossas possibilidades. Podemos agora o que não podíamos antes e temos demonstrações abundantes de que é possível fazê-lo. Não devemos ignorar, é claro, as imensas dificuldades e as armadilhas que se distribuem pelo caminho, nem o imenso esforço que é necessário despender. Temos, porém, chances concretas de vencer o desafio.

DIVERSA – Que obstáculos existem, no Brasil, para que se cumpra a transferência de conhecimento das instituições de pesquisa para a esfera produtiva, rotineira em outros países?

Mirra – Há dificuldades institucionais, relacionadas à organização de nossas instituições de pesquisa e de nossas empresas, mas os principais obstáculos são, ainda, históricos, de natureza cultural, oriundos da forma como se constituíram, por um lado, o nosso parque industrial e, por outro lado, a nossa competência em pesquisa. Contrariamente ao que ocorreu nos países avançados, onde sempre existiram formas diversas de convivência entre esses universos, suas trajetórias, no Brasil, ocorreram, por longo tempo, sem pontos de contato, sem que se estabelecesse alguma forma rotineira de diálogo. Numa visão simplificada, poderíamos dizer que, por um lado, constituiu-se uma indústria que procurava aprender a fazer o que os países industrializados já faziam, enquanto, por outro lado, nossas universidades buscavam introduzir a pesquisa no seu cotidiano, a partir da transformação institucional e do aprendizado de nossos jovens em centros mais avançados. Nos dois casos, o Brasil registrou sucessos. O parque industrial brasileiro é, hoje, diversificado e competente, em muitos casos, em sintonia com o que se faz de melhor internacionalmente. Nossa universidade também se transformou, apropriou-se da cultura da pesquisa e apresenta, hoje, em muitos dos seus espaços, competência científica e tecnológica de primeira linha, comparável ao que de melhor se faz no mundo. No entanto, foram processos essencialmente isolados, que não se beneficiaram dos avanços mútuos nem estabeleceram alianças capazes de impulsionar, simultaneamente, ambos os projetos. Esse quadro começou a se transformar há cerca de 15 ou 20 anos, quando dificuldades diversas começaram a dar visibilidade ao artificialismo dessa situação, começaram a mostrar que não é possível crescer, em um e outro desses domínios, de forma estanque. Do ponto de vista industrial, embora a substituição de importações tenha tido sucesso, ao esgotamento desse modelo somaram-se as grandes mudanças que foram tomando corpo no ambiente internacional do final do século passado, com transformações notáveis nos paradigmas de organização da atividade industrial e de produção. Quando o Brasil completou a instalação do setor industrial, o mundo tinha-se movimentado em nova direção, construindo novos padrões, entre os quais se destaca o paradigma tecnológico e da inovação. A intensificação do ritmo de incorporação de progresso técnico é uma das características marcantes desse novo modelo de industrialização. Justamente nesse ponto, a indústria brasileira começou a mostrar sua vulnerabilidade. Comprar tecnologia lá fora passou a não ser mais tão fácil; competir, mesmo internamente, com os produtos gerados internacionalmente nessa nova lógica passou a ser crescentemente mais difícil. Do ponto de vista do sistema de pesquisa, começou a ficar claro que o simples fato de aumentar sua participação na produção mundial de conhecimento e de multiplicar sua capacidade de formar mestres e doutores não bastava; que o fato de crescer privado do diálogo estimulante com a dinâmica de produção não garantia ao projeto acadêmico nem o acesso a questões que lhe interessam, nem a possibilidade de inserir, em um novo mercado de trabalho, os recursos humanos altamente qualificados que passou a formar em quantidade crescente. Nesse contexto, devemos reconhecer que um ativo importante de realizações começa a se construir. Todas as conquistas inovadoras citadas anteriormente trazem a marca da cooperação entre as empresas e o ambiente acadêmico. Para ficarmos apenas no exemplo da Petrobras, uma consulta à Plataforma Lattes mostra que cerca de 150 grupos de pesquisa das universidades e institutos brasileiros registram nela programas cooperativos com essa empresa. Distribuídos por todas as regiões do País, esses grupos envolvem mais de dois mil pesquisadores de um leque extenso de disciplinas, que, de diferentes maneiras, contribuíram para o desenvolvimento tecnológico, o equacionamento e a solução de questões ambientais e, até mesmo, para a formulação de políticas. Uma das intenções centrais da Lei da Inovação é a de facilitar a reinvenção dessas estratégias em um número crescente de atividades produtivas que mobilizam a inteligência e a capacidade de pesquisa do Brasil.

DIVERSA - O senhor acha que a universidade brasileira, dentro do modelo atual, está apta a responder ao desafio da inovação?

Talvez seja importante lembrar que a universidade é uma instituição específica, que tem a missão de preservar, participar da elaboração e transmitir a cultura de um país, e que sua missão formadora de recursos humanos do mais alto nível é, ainda, sua marca distintiva de maior relevo. Ela tem, portanto, um projeto próprio e de muitas dimensões. Sua participação no esforço coletivo pela inovação deve ser pensada dentro desse contexto. Deve-se lembrar, mais uma vez, que o foco da inovação se encontra na empresa e que é ali que tomam forma e se materializam as ações inovadoras. Dito de outra forma, a universidade interessa-se pela inovação a partir de seu projeto acadêmico. As parcerias universidade-empresa, nos projetos inovativos, devem ser aquelas que enriquecem o projeto acadêmico, ao mesmo tempo que contribuem para a inovação. O fato de a excelência acadêmica ser irmã da competitividade industrial é talvez a lição mais luminosa da experiência dos países avançados. Quero dizer com isso que a universidade, sem prejuízo de suas outras funções, não apenas está apta a participar do esforço coletivo de inovação, mas ainda tem um forte interesse nesse campo. É que, embora centrada na empresa, a cultura inovativa movimenta malha ampla, complexa e difusa em toda a sociedade, estimula a educação em todos os níveis, demanda a pesquisa e desafia a criatividade, torna o próprio mercado um terreno de embate e exercício da cidadania. É um fato social total, se quisermos empregar a expressão do antropólogo Marcel Mauss. O respeito à especificidade do projeto acadêmico não significa que a universidade deva ficar indiferente à realidade que a cerca. E se a inovação permeia, com essa intensidade, o mundo econômico, o universo do trabalho, o espaço cultural, ela se torna, para a universidade, não apenas objeto de estudo, mas também fonte de oportunidades.

DIVERSA – Os críticos do comprometimento da universidade com o setor produtivo temem que a pesquisa universitária venha a ser dirigida pelos interesses empresariais. O senhor concorda com esse juízo?

Mirra – É verdade, como nos ensinou o grande filósofo Toquinho, que são demais os perigos dessa vida... Além disso, todas essas questões são polêmicas e devem, legitimamente, ser objeto de análise e debate. Sabemos que o financiamento à pesquisa universitária é recente e que as agências de fomento, criadas depois da Segunda Guerra Mundial, como a National Science Foundation (NSF) nos Estados Unidos, foram inicialmente rejeitadas nos planos político, acadêmico e empresarial. As universidades, em especial, reagiram muito mal ao que qualificavam como inaceitável ingerência externa em seus programas. Foram necessárias memoráveis batalhas, no início dos anos 1950, para que um protocolo de entendimento fosse negociado, tendo ficado famosos, em especial, os grandes debates nacionais promovidos pelo Rensselaer Polytechnic Institute, em Nova York, e pela Universidade da Califórnia, em Berkeley. Quando essa polêmica parecia se acalmar, surgiu outra de grande envergadura, associada ao fato de que, durante a guerra fria, parte considerável da chamada pesquisa básica foi financiada pelos interesses militares, notadamente, nos Estados Unidos, pelo Department of Defense (DoD) e pela Nasa. De forma que o debate atual tem raízes históricas e é bem-vindo.

DIVERSA – Fredric Jameson acusa as grandes corporações de estabelecerem a agenda das universidades e, inclusive, de reorganizar disciplinas e trabalhos práticos para, segundo ele, “desqualificar as formas mais puras de experimentação científica, com objetivo de lucro financeiro.”

Mirra – Ao lado da necessidade real de se examinarem os múltiplos aspectos dessas questões e de se avaliar, com clareza, as formas de cooperação efetivamente interessantes e suas implicações, há, pelo menos, dois aspectos desse tipo de postura que me parecem curiosos. O primeiro deles é o pressuposto de uma espécie de dialética entre um Lobo Mau, monolítico e onipotente, de um lado, e uma inocente e indefesa Chapeuzinho Vermelho, do outro lado. A vida tem-se mostrado mais complexa e cheia de contradições e a universidade mais sólida e sábia – e muito menos inocente – do que parecem supor esses defensores de sua angélica candura. A universidade é uma das mais antigas instituições existentes sobre a face da Terra. Diferentemente de outras instituições coetâneas, que foram varridas pelo tempo, a universidade construiu sua longevidade pelas suas metamorfoses, por sua capacidade de se reinventar e de absorver, em seu tecido acadêmico, as novas figuras geradas pela História. Foi assim com a pesquisa, introduzida apenas no século XIX – e, no século XX, com a extensão – para ficarmos apenas em alguns dos momentos mais marcantes em que o aparente inimigo foi cooptado e redesenhado para se transformar numa das fontes de vitalidade da instituição.

Assim, embora insistindo na exigência de discernimento e na postura atenta e informada para se estruturarem as relações adequadas da universidade com a inovação, continuo acreditando na necessidade de uma visão mais objetiva e mais fiel à força e aos interesses da universidade.

DIVERSA – Outro intelectual, o brasileiro Nicolau Sevcenko, entende que é preciso tirar a tecnologia do plano estrito da economia e colocá-la, também, de forma mais ampla, como um dos fundamentos de transformação do campo social. Isso seria possível no quadro do capitalismo contemporâneo?

Mirra – Sevcenko tem absoluta razão. De resto, um dos textos mais belos e mais fundamentais para se investigarem a natureza e o alcance do fato tecnológico em nossas vidas é a tese de doutorado em filosofia de Gilbert Simondon – Du Mode d´existence des objets techniques, absolutamente essencial, na minha opinião, para se pensar as estratégias e as implicações da inovação. Foi, também, o etnólogo francês André Leroi-Ghouran, ainda nos anos 1940, quem cunhou o conceito de “convergência tecnológica”, hoje tão essencial para se avaliarem os fenômenos de convergência, em especial entre biotecnologia, nanotecnologia, tecnologias da informação e comunicação e as neurociências e suas implicações. O poder de transformação da inovação no campo social tem sido objeto de trabalho intenso na União Européia, notadamente em suas estratégias de integração da Europa do Sul com os países do Leste. No Brasil, o Ministério da Ciência e Tecnologia organizou uma Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação para Inclusão Social, que articula suas ações nesse domínio. Essa tem sido, também, uma das preocupações permanentes da ABDI, presente em muitos dos seus programas – como as ações mobilizadoras em energias renováveis, notadamente em bioetanol e biodiesel, e nas tecnologias de informação e comunicação.

DIVERSA – A partir de sua experiência como presidente do CNPq e do CGGE, a quem compete o financiamento da pesquisa de ponta no Brasil: ao Estado ou à iniciativa privada?

Mirra – Acho que não existe, aí, nenhuma dúvida. A pesquisa de ponta deve ser financiada prioritariamente pelo Estado. O grande esforço que se realiza hoje no Brasil visa ao aumento do investimento privado em pesquisa e desenvolvimento de novos processos e produtos; visa a promover o envolvimento maior desse setor na cultura de inovação. A própria presença do Estado nesse campo tem-se pautado pela busca de incentivos que alavanquem o investimento privado nos novos padrões de produção e de competitividade, fortemente ancorados na incorporação dos avanços tecnológicos. Isso não significa que a pesquisa de ponta não possa se beneficiar do investimento em inovação. Pelo contrário, uma das características do empreendimento científico nos países avançados é a compreensão de que uma linha de pesquisa representa, com freqüência, um compromisso entre o desejo e a oportunidade e que, nesse campo, marcadamente multi, inter e transdisciplinar, as fronteiras são muitas vezes difusas e a convivência entre projetos distintos se revela a fonte mais fecunda para a emergência do novo e do inesperado.