Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 5 - nº. 10- outubro de 2006

Editorial

Entrevista
Evando Mirra de Paula e Silva

Patentes
Do laboratório à linha de produção


Propriedade intelectual e inovação na UFMG
Rubén Dario Sinisterra Milan

Incubadoras
Chocando futuras empresas

Empreendedorismo
Pequenas que trabalham como gente grande

Saúde Pública
Na captura do Aedes aegypti

A lei de inovação e sua repercussão nas
instituições científicas e tecnológicas

Edson Paiva Rezende, José Lúcio de Paiva Júnior, Maria Romanina Velloso Martins Botelho, Nícia Pontes Gouveia e Vinícius Furst Silva

Aeronáutica
Inventores de vôos

Paramec
Tecnologia a serviço da inclusão

Inovação na biotecnologia
Erna Geessien Kroon


Acessibilidade
Bengala eletrônica

Sistemas nacionais de inovação e desenvolvimento
Eduardo da Motta e Albuquerque

Nanotecnologia
Viagem ao país dos “nanos”

Conhecimento e riqueza
Ana Maria Serrão, Lívia Furtado, Mari Takeda Barbosa, Rochel Monteiro Lago, Lin Chih Cheng e Solange Leonel

Solidariedade
Da pura técnica à tecnologia social


Tecnologia social: um conceito em construção
Carlos Roberto Horta

Expediente

Outras edições

 

brasão

 

Solidariedade

Da pura técnica à tecnologia social

A sociedade pode beneficiar-se de know-how desenvolvido por pesquisadores universitários com o objetivo de qualificar cidadãos de comunidades marginalizadas

Conceição Bicalho

Ao longo de dez anos, o modelista e artesão Aélson Pereira dos Santos, 39 anos, sobreviveu com a venda de bolsas e de calçados que ele mesmo fabrica. Hoje, “Cheiro”, como Aélson é conhecido, continua vivendo da fabricação de bolsas e de calçados, mas sua realidade está completamente mudada. A oficina onde sempre trabalhou, no bairro Petrópolis, em Belo Horizonte, antes espaço de produção solitária, abriga, agora, a Courosin – uma cooperativa de artigos de couro e sintéticos formada por oito novos artesãos, cuja maioria, até muito pouco tempo atrás, não se conhecia nem tinha qualquer ligação com o mundo do artesanato.
A Courosin é um dos milhares de empreendimentos que vêm surgindo no Brasil, nos últimos 15 anos, com a força da chamada economia solidária – um movimento que cresce em todos os continentes e propõe a construção de uma nova organização das relações econômicas e de trabalho como forma de resistência à agravada exclusão social.

No processo de sua formação, em 2002, a Courosin foi assessorada pelo Núcleo de Estudos do Trabalho Humano (Nesth). Criado há mais de duas décadas, no Departamento de Ciências Políticas (DCP) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, o Nesth foi, ao longo dos anos, um observador atuante e privilegiado das grandes transformações que têm acontecido nas relações de trabalho.

O Núcleo reúne professores e alunos de graduação e de pós-graduação de diferentes cursos e ostenta substancial produção científica. Com raízes no Laboratório de Movimentos Sociais Urbanos, criado no próprio DCP, em 1979, o Nesth surgiu, como tal, em 1984. Tem sido responsável por cursos de extensão, seminários, pesquisas voltadas para a melhor compreensão da organização do trabalho nas mais diferentes esferas de produção e projetos de intervenção em movimentos sociais e em grupos organizados.

Experiência “O Nesth consolidou uma grande experiência nessa área estando sempre junto do seu foco de estudo. O trabalhador e o trabalho foram nosso alvo todos esses anos”, diz o professor Carlos Roberto Horta, o Bebeto, um dos fundadores do Núcleo e seu atual coordenador. No ano passado, o Nesth ampliou sua maneira de atuar e estabeleceu duas novas vertentes de ação, inaugurando a Incubadora de Socioeconomia Solidária e o Observatório do Trabalho.

Este último congrega as iniciativas de pesquisa e produção científica existentes em torno do trabalho na Universidade e outros instituições, como os sindicatos, com o objetivo principal de ser fonte de promoção dos direitos dos trabalhadores. O Observatório tem parcerias com instituições nacionais e internacionais e pretende interferir em políticas e ações, em diferentes níveis, de garantia das melhores condições trabalho.

A Incubadora de Socioeconomia Solidária, criada como atividade de extensão, é fruto da experiência do Nesth, em 2002, com o curso Formação de lideranças sociais, realizado pelo Centro Nacional de Formação Comunitária (Cenafoco), um programa instituído pelo governo federal, no âmbito da Secretaria de Estado de Assistência Social e do Plano de Nacional de Segurança Pública.

Em Belo Horizonte, sete turmas do Cenafoco optaram por montar empreendimentos solidários, sendo quatro delas auxiliadas pelo Nesth, um dos organismos executores do Cenafoco.

Trabalho cooperativo Entre os novos empreendimentos estava a Courosin. A cooperativa, conta “Cheiro”, foi formada “na cara e na coragem”, porque dos 15 participantes só ele tinha experiência em confecção de calçados e bolsas e ninguém sabia como montar uma cooperativa e traballhar nela. “Mas queríamos muito fazer alguma coisa para geração de trabalho e renda”, diz o artesão, destacando que, nesse processo, o Nesth foi muito importante. “O pessoal que trabalhou com a gente ajudou muito. Os técnicos entram ensinando a cortar caminho”, afirma. Para “Cheiro”, sem a capacitação, a Courosin “talvez nem tivesse começado”.

Com capacidade para fabricar de 1,8 mil a duas mil peças, as maiores encomendas que a Courosin recebeu foram feitas justamente feitas por organismos que participam da rede de economia solidária. Ainda assim, “Cheiro” destaca que não tem sido nada fácil para o grupo manter a cooperativa viva.

“Ninguém precisa achar que cooperativa é solução para tudo. É muito difícil, porque você parece diferente, mas acaba tendo que lutar é no mercado como todo mundo”, diz “Cheiro”. A reclamação do artesão é um dos principais desafios para os milhões de trabalhadores inseridos na economia solidária em todo o mundo, atesta o coordenador do Nesth, lembrando que as práticas que envolvem relações de geração de renda e de trabalho nesse contexto dependem, também, de uma sólida rede que comungue com os princípios da economia solidária.

Incubadoras como a de Socioeconomia Solidária criada pelo Nesth, explica Bebeto, é uma das faces dessa rede, que precisa ser apoiada e fortalecida em todas as ações que envolvem o sistema solidário, desde a formação das práticas de produção até o consumo.

A Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), do Ministério do Trabalho e Emprego, mostrou que o setor vem se expandindo em ritmo célere. Mapeamento realizado, sob a coordenação da Senaes, identificou que a economia solidária, no País, teve um forte impulso entre 1990 e 2005, quando foram criados cerca de 15 mil empreendimentos.

Nesses empreendimentos, estão envolvidos 750 mil trabalhadores. Nos Estados do Nordeste, estão instalados 22% desses empreendimentos. Os Estados do Sul ocupam o segundo lugar nessa lista, com 20% dos empreendimentos. As formas de organização predominantes são associações (60%), grupos sem formalização (22%) e cooperativas (15%).

Ainda que em crescimento constante nos últimos anos, a existência de mecanismos de apoio aos projetos da economia solidária ainda são frágeis – o País não conseguiu, por exemplo, criar um marco regulatório para o sistema –, mas existem várias entidades, instituições e organismos, como a Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária, envolvidas no amadurecimento desse sistema.

Segundo o professor, no final do mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, havia apenas seis projetos de incubadoras sociais apoiados pelo governo. “Hoje, são mais de 50”, diz, o que mostra que a rede de apoio também se amplia, apesar das carências, como, por exemplo, de financiamento.

A Incubadora de Socioeconomia Solidária do Nesth trabalhou, até o ano passado, com os quatro grupos advindos dos cursos do Cenafoco, mas também de forma solidária, porque não havia recursos para a continuidade do trabalho. O Nesth atendeu, ainda, outras quatro iniciativas patrocinadas pelo Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares (Proninc), resultante de uma parceria entre a Senaes e órgãos como a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a Fundação Banco do Brasil, o Comitê de Entidades de Combate à Fome e pela Vida.

A tecnologia desenvolvida pelo Nesth para disseminação nos projetos encampados pela Incubadora de Socioeconomia Solidária adota diferentes vertentes, que abordam desde a formação político-cidadã dos participantes até atividades de apoio à produção. Para isso, o Nesth conta com parcerias firmadas com outros grupos de pesquisa e extensão da UFMG, em Unidades como a Faculdade de Engenharia e a Faculdade de Ciências Econômicas.

“Projetos dessa natureza fazem parte da nossa história”, salienta o coordenador do Nesth, destacando que o Núcleo sedia e coordena, na UFMG, a Unitrabalho, parceira da Incubadora de Socioeconomia Solidária. A Unitrabalho, criada há 11 anos, é uma rede universitária nacional, que reúne 92 universidades e Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), exatamente com o objetivo de apoiar e estimular projetos, pesquisas e práticas de capacitação de trabalhadores.

Em parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte, o Nesth participa do Programa Multissetorial Integrado do Aglomerado da Serra (Vila Viva), que visa à urbanização de favelas e vilas. No âmbito do Vila Viva, uma iniciativa de incubação atenderá a cerca de cem moradores. O projeto está em execução, com três turmas formadas – duas voltadas para a capacitação no ramo de confecção e uma para a área da construção civil. A idéia é a de que os produtos (uniformes) e os serviços (mão-de-obra) dessas turmas sejam absorvidos pelas que realizam as obras do programa Vila Viva.

Uma outra realização do Nesth é o projeto de transferência de tecnologia social – no caso, a de incubação de projetos de economia solidária. “É um programa de intervenção direta com os grupos que vão atuar nas incubadoras”, explica o psicólogo Júlio Jáder. Professores e pesquisadores da recentemente criada Universidade Federal dos Vale do Jequitinhonha e Mucuri vão ser os primeiros beneficiados. “Está sendo implantada, lá, uma incubadora solidária e o Nesth, juntamente com a Unitrabalho, vai capacitar o pessoal”, salienta Júlio.

Em Contagem, o Nesth coordenará o Laboratório de Tecnologias Sociais, um programa recém-criado, com o apoio da prefeitura local, que envolverá os pesquisadores da UFMG em duas ações distintas: a primeira delas é a capacitação de 80 jovens pertencentes a famílias que participam do Programa Bolsa Família, do governo federa; a segunda é, novamente, de transferência de tecnologia para os integrantes do Conselho Gestor do Centro Público de Contagem, onde o próprio Laboratório vai funcionar. O estabelecimento de um Centro Público é uma das estratégias estimuladas nacionalmente pela Senaes. O local funciona como um espaço de fomento à organização de iniciativas próprias da economia solidária.