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As casas indígenas e o prédio mais sustentável das Américas

O que essas habitações tradicionais e o Centro Sebrae de Sustentabilidade, no Mato Grosso, têm em comum

 

19 de novembro de 2024

 

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“Cada moradia deveria ser arquitetada com material local, essa é uma primeira grande questão. Todo bioma, todo ambiente, todo lugar nos oferta as condições para viver ali.” (Bispo, 2023: 37-38). 

 

A frase do livro “A terra dá, a terra quer”, do filósofo quilombola Nego Bispo, sintetiza perfeitamente o tema da arquitetura vernacular, que consiste no uso de saberes tradicionais e materiais locais para a construção de habitações. Esse tipo de construção pode ser encontrada no mundo todo, em diferentes biomas, e com os povos indígenas aqui no Brasil não seria diferente. As casas indígenas, apesar de se diferenciarem em todo o país (devido às variações culturais e condições climáticas), possuem semelhanças, como a presença de grande espaço sem divisórias, estruturas de madeira e coberturas de palha.

 

De cima para baixo, as imagens demonstram uma casa comunal do povo Yawalapiti; casa do povo Xavante e casa tradicional do povo Tuyuka. (Créditos: Mirim).

 

A ausência de um engenheiro ou arquiteto por trás do projeto (característica importante na arquitetura vernacular) não impediu que essas técnicas seculares tivessem um ótimo desempenho em sua função, sustentabilidade e conforto. E é exatamente esse tópico que é estudado no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Tecnologias Indígenas (Tecnoíndia), da Universidade Federal do Mato Grosso. Os professores José Afonso Portocarrero e Maria Fátima Machado criaram o Núcleo com o objetivo de lançar “um olhar sobre a capacidade de povos indígenas de produzir conhecimento e tecnologia”, como ressalta Machado. 

 

“O desenho das casas indígenas não pode ser considerado como uma coisa que já passou, que não interessa… ele interessa e é muito importante. Respeitá-las, ver o valor e aprender com elas. Exatamente nesse momento em que a gente fala tanto de tecnologia, de avanço, de inovação, muitas vezes há um excesso de uso dessa tecnologia, que é cara também, que custa energia, enquanto as moradias ancestrais utilizam apenas energia natural. O vento, a insolação, enfim, é esse desenho que a casa indígena traz para a gente nesse mundo contemporâneo”, conta Portocarrero em entrevista para o programa UFMT Ciência.

 

Estudo de campo em uma hatí, casa tradicional do povo Paresí-Haliti. (Créditos: Tecnoíndia).

 

Juntamente com Jucimar Ipaikire, primeiro indígena a se formar em arquitetura, as pesquisas do Tecnoíndia já permitiram a construção de diversos projetos inspirados nas habitações indígenas e no seu desempenho, como o próprio espaço do Núcleo na UFMT e o Centro Sebrae de Sustentabilidade no Mato Grosso (CSS). Jucimar Ipaikire é um colaborador voluntário do Núcleo de Pesquisas Tecnoíndia há vários anos, confeccionando maquetes de habitações de várias etnias de Mato Grosso. Ele é descendente dos antigos Bakairi do Xingu e nasceu na aldeia Pakuera, no município de Paranatinga (MT), onde mantém fortes vínculos familiares.

 

 

Jucimar Ipaikire participou da concepção do projeto do CSS, e opina: “Acredito que a cultura é transformação; precisamos evoluir sem esquecer nossa ancestralidade. O Centro Sebrae de Sustentabilidade é um exemplo disso, mostrando a junção entre o tradicional e o tecnológico, algo que aprendi ao conversar com o professor José Afonso durante sua construção. Essa experiência me mostrou como a arquitetura pode se adaptar às necessidades tradicionais, utilizando tecnologias modernas sem perder nossa identidade cultural”.

 

Interior do Centro de Sebrae de Sustentabilidade (CSS). (Créditos: Sebrae).

 

O Centro Sebrae de Sustentabilidade (CSS), anexo da sede do Sebrae/MT, possui formato ogival e foi inspirado principalmente na tradição do povo Yawalapiti, no Parque do Xingu. Mas mais do que o formato, o projeto aprofunda as diversas tecnologias indígenas presentes nas suas construções. Vamos conhecer abaixo algumas das características da construção: 

 

  • Conforto térmico

A edificação foi feita com duas camadas, assim como as camadas de madeira e de palha que permitem a circulação de ar, proporcionando uma proteção térmica de até menos 5ºC que a temperatura externa. A camada análoga à palha funciona como brises reguláveis manualmente, elementos para proteção solar, que permitem às pessoas controlarem a entrada de luz solar ou sombra desejada ao longo do dia. A posição do edifício no terreno também foi pensada estrategicamente para ter mais sombra possível, de acordo com a posição do Sol.

 

Brises solares e camada dupla da edificação. (Créditos: Sebrae).

 

  • Captação de água da chuva

A camada externa do CSS, além de regular a sombra, possui tecnologia para absorver e armazenar a água da chuva! Dessa forma, a água captada refresca o prédio e é reutilizada na limpeza dos espaços e na irrigação das inúmeras plantas nativas ao redor.

 

  • Iluminação natural

Outro princípio marcante na edificação do CSS é a iluminação máxima natural. Além dos brises laterais que permitem a escolha da entrada de luz disponível, na parte mais alta do prédio foram construídos canos de luz espelhados internamente, que iluminam a área de trabalho com tanta potência quanto luminárias elétricas.

Luminárias solares. (Créditos: Sebrae).

 

  • Ações sustentáveis

Por fim, para além da construção, o Centro colabora com ações sustentáveis em sua manutenção, como a instalação de microusinas fotovoltaicas, que abastecem 80% da energia do prédio, hortas comunitárias com alimentos locais e uma composteira que transforma todo lixo orgânico em adubo (direcionado para a horta e para o cultivo das plantas nativas do projeto paisagístico).

 

Instalação de compostagem e Microusina Fotovoltaica do CSS. (Créditos: Sebrae).

 

A edificação é a primeira a conquistar duas “etiquetas A” do selo Procel Edifica, um certificado voluntário de eficiência energética para edificações do Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica, conquistando a nota 5,6 em um total de 06.

 

Além disso, o CSS é a única edificação nas Américas a conquistar o nível “Excelente” no prêmio BREEAM Awards 2018 – Building Research Establishment’s Environmental Assessment Method (Método de avaliação ambiental da Building Research Establishment Ltd.) sendo avaliado nos aspectos desempenho, gestão da edificação e gestão de uso, e o mais votado pelo público. A BRE, empresa britânica responsável pelo prêmio, é a maior referência de certificação de construção sustentável no mundo.

 

O objetivo de Portocarrero com o projeto nunca foi alcançar alguma premiação, mas essa é a maior prova de que temos muito a aprender com os povos tradicionais e suas técnicas.

 

[Texto de autoria de Laura de Souza, estudante do curso de Arquitetura e Urbanismo e bolsista de extensão do Núcleo de Ações Educativas e Acessibilidade]

 

Referências

Arquitetura indígena inspirou a construção do moderno Centro Sebrae de Sustentabilidade

Arquitetura Vernacular: aprendendo com uma técnica milenar

Projeto brasileiro vence prêmio de Melhor Edifício Sustentável das Américas

Povos Indígenas no Brasil Mirim.

Centro Sebrae de Sustentabilidade (CSS)

Livro reúne pesquisa sobre arquiteturas e tecnologias indígenas em Mato Grosso.

Técnicas Construtivas: Quando arquitetura e sustentabilidade caminham lado a lado.

SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023, p. 37-38.

UFMT CIÊNCIA. Conversa com Pesquisador: José Portocarrero (Arquitetura). YouTube, 26 de jul. de 2013. 10min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-yy9c3rMkOE>. Acesso em 27 ago. 2024.