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Nº 1550 - Ano 32
2.10.2006

Falta um Mozart digital*

Jaron Lanier**


ale do Silício, perto de onde moro, na Califórnia, é o primeiro grande centro de poder e de dinheiro na história que não usa sua força para se tornar um lugar mais belo, mais culto ou mesmo mais ritualizado. É um espaço sem vida, cada vez mais feio conforme os anos passam. E isso não se deve ao desenvolvimento industrial – mas, sim, a uma generalizada falta de textura nas coisas. Não há arquitetura; não há tradições interessantes; não há senso de estilo nenhum.

É curioso, mas esse mesmo fenômeno pode ser observado na música. O que vou dizer é extremamente parcial – e tenho curiosidade para saber se as coisas são diferentes no Brasil –, mas a música que ouvimos nos Estados Unidos foi dominada por uma nova forma de composição. Ela é regular demais e avançou pouco desde a chegada das ferramentas de produção digital. O andamento, por exemplo, agora varia de maneira menos interessante e rica do que costumava ocorrer. O ritmo parece ser sempre pautado pelo básico e elementar quatro por quatro.

Por outro lado, a música foi recheada por todas as fontes imagináveis de som, também como conseqüência da chegada de novos recursos digitais, como o sampler (aparelho que permite copiar trechos de músicas e reciclá-los depois, fartamente usado em composições eletrônicas e por DJs). O que eu temia está acontecendo. As ferramentas que estamos usando para fazer música começam a ter certas idéias embutidas.

É fácil adicionar sons a um editor de música digital, mas é difícil mudar um ritmo. É por isso que digo que nossa música está sendo crescentemente ditada por nossas ferramentas. Obviamente, elas sempre influenciam o que fazemos, mas os recursos digitais têm a péssima qualidade de produzir um resultado desastroso se tudo não estiver absolutamente certo segundo a sua lógica matemática. Logo, parece-me que a qualidade da influência das ferramentas digitais na arte tem um potencial mais frágil do que aquela que encontrávamos em meios antigos como pianos e microfones.

Nos Estados Unidos, o único gênero que emergiu com sucesso desde a introdução dos recursos digitais foi o hip hop. Na verdade, acredito que ele use a frágil qualidade da produção digital como uma forma de protesto social. Uma das coisas que está errada com a produção da música digital é que o som gravado no sampler sai sempre igual quando é repetido na música. É por isso que há menos textura no conjunto. Da mesma forma que acontece com o Vale do Silício. Um som se repete de novo e de novo, e as únicas emoções reais que podem ser associadas com ele são de frustração e raiva.

Assim, temos uma cultura digital para a qual ainda falta delicadeza. Não há nenhum Tom Jobim digital até agora. Um dia haverá? A resposta não é nem sim nem não. A tecnologia digital, em tese, tem potencial para contribuir para a estética, mas não na forma como a estamos usando. Precisamos achar uma maneira de melhorá-la em muitos níveis para fazê-la menos frágil, mais suave e macia. A pergunta, portanto, não pode ser respondida pela razão, mas somente via engenharia e empirismo. Minha expectativa é de que alguns séculos se passarão antes que tenhamos uma resposta. É divertido desfrutar os prazeres e benefícios do mundo digital, mas também é importante não levá-los muito a sério antes que tenhamos completado esse experimento.

* Publicado em edição especial sobre tecnologia da revista Veja,
em julho de 2006
**Cientista da computação, compositor e artista plástico. Cunhou o termo “realidade virtual” no início da década de 80 e fundou uma das primeiras empresas do ramo


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