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Nº 1907 - Ano 41
08.06.2015

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Encarte

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Eu, repórter

Pesquisa da Comunicação analisa estratégias e sentidos da narração em primeira pessoa nas reportagens contemporâneas

Itamar Rigueira Jr.

A reportagem escrita em primeira pessoa não é novidade, nem mesmo no Brasil – João do Rio já fazia isso há um século. Mas ainda inspira certo estranhamento, sobretudo quando se pensa no jornalismo como suposto reduto da objetividade e do distanciamento, mais afinado com o texto em terceira pessoa. Certo mesmo é que o modelo de narrativa em que o repórter “aparece” para o leitor precisa ser melhor entendido. Foi o que moveu a pesquisa do jornalista Igor Lage Araújo Alves, que acaba de defender a dissertação Eu, repórter – Narradores em primeira pessoa nas reportagens de Trip, Tpm e Rolling Stone, no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Fafich.

Igor Lage logo superou a tentação inicial de comparar os dois modelos. “Meu intuito foi compreender o narrador em primeira pessoa em seus próprios termos, considerando as relações que ele se propõe a estabelecer com as realidades investigadas, com as mídias nas quais seu texto se inscreve, com o jornalismo, com os sujeitos envolvidos no processo de apuração e com o próprio leitor”, afirma o pesquisador.

Para fins de análise, Igor definiu quatro formas de o repórter se colocar nos textos, que ele chamou de “manifestações”. Em uma delas, o narrador é o foco da narrativa e conta a história de sua própria perspectiva, assumindo retórica de cunho testemunhal. É o caso, por exemplo, do jornalista que passa uma temporada como morador de uma comunidade violenta.

“O repórter quer ‘ver de dentro’, mas só consegue ‘ver de perto’. A própria condição de repórter o impede de penetrar a outra realidade. Será sempre um estrangeiro, alguém que não pertence àquele lugar”, explica o jornalista, que escolheu a Trip, a Tpm e a Rolling Stone em razão de contato anterior com as publicações e pela recorrência de matérias longas sobre cultura e comportamento.

Discrição e credibilidade

Em outras situações, a referência do repórter a si mesmo visa apenas revelar presença na cena do acontecimento – o foco está no entrevistado. O objetivo, então, é dar mais legitimidade e credibilidade ao relato, revelando o processo de apuração, entre outros recursos. “Essa primeira pessoa é mais discreta, mas não deixa de ser testemunhal. E demonstra que o testemunho do repórter não precisa ser profundamente autorreferencial”, explica o pesquisador.

Igor Lage destaca também a “primeira pessoa da autoria”. Ele recorreu a Barthes e a Foucault para refletir sobre o lugar de autor. “Nesses casos, a assinatura do jornalista pode desempenhar funções de autor na medida em que opera como um lugar de agrupamento e de classificação dos textos e também de familiaridade para o leitor.” Ele encontra uma possível relação de tensão entre o nome do repórter e o da revista. “Essa disputa é um jogo de comadres, estratégia para fortalecer a imagem do repórter e, ao mesmo tempo, a da mídia jornalística”, diz Igor Lage.

O último tipo de primeira pessoa definido pela pesquisa é a do plural. O narrador-repórter diz nós tanto para propor compartilhamento de algo com o leitor, quanto para se referir a seus colegas de revista, realçando um discurso autorreferente da própria publicação, sempre com a ideia de aproximação do leitor. “O nós inclusivo sugere que o leitor veja algo de si na revista; a primeira pessoa exclusiva possibilita que a publicação reforce sua identidade, como forma de se tornar mais atrativa”, explica.

Testemunho

Igor Lage lança mão, entre outras, de referência à revalorização do discurso testemunhal após o holocausto judeu, destacada pela crítica literária argentina Beatriz Sarlo. Ele relaciona os relatos dos sobreviventes, consideradas as devidas proporções, com o testemunho do narrador em primeira pessoa do jornalismo. “O testemunho dos sobreviventes parece ter assumido posição de exemplaridade. Os relatos do holocausto gozam de certa blindagem ética e moral, e isso pode estar sendo apropriado por outras modalidades de testemunho, como o jornalístico”, explica o autor da dissertação.

O jornalista salienta que um de seus intuitos ao abordar a narração em primeira pessoa como estratégia textual foi mostrar a pluralidade dos modos de narrar do jornalismo. “Essa característica pode apontar para uma pluralidade também dos modos de produzir conhecimento e de investigar o mundo”, diz. “Vejo a primeira pessoa não como algo excepcional, um gesto de resistência ou um grito criativo do repórter. É mais uma forma legítima de narrar jornalisticamente o mundo. É importante entender a potencialidade desse e de outros recursos para que o jornalismo possa contar cada vez melhor suas histórias”, conclui Igor Lage.



Dissertação: Eu, repórter: Narradores em primeira pessoa nas reportagens de Trip, Tpm e Rolling Stone
De Igor Lage Araújo Alves
Orientador: Bruno Souza Leal
Defesa em 25 de maio, no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social