As bruxas estão à solta: histórias e representações do feminino – Espaço do Conhecimento UFMG
 
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As bruxas estão à solta: histórias e representações do feminino

As feiticeiras Hécate, Medeia e Circe nos permitirão conhecer um pouco mais sobre a imagem da bruxa e sua ligação com o feminino! 

 

05 de novembro de 2024

 

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Se eu te perguntar o que é uma bruxa, qual é a primeira imagem que vem a sua mente? Vamos nos esforçar nesse exercício de imaginação… Talvez uma senhora corcunda, vivendo reclusa no meio da floresta à espera de alguma criancinha distraída se perder de seu caminho? No seu rosto, um nariz anguloso e pontiagudo, junto a uma ou duas verrugas bem proeminentes? Há quem possa esbarrar também em outras faces: uma mulher jovem e sedutora, sua beleza eternizada com feitiços e poções onde fervem ingredientes incomuns. Teria ela uma varinha de condão, um caldeirão ou uma vassoura? Na janela de sua casa, sob os livros de magia, será que encontraríamos um gato preto ou, quem sabe, um corvo falante? Ou seria ela uma avó ou mãe curandeira, que pode ver e agir para além do véu do suposto “real”?

 

A caracterização da bruxa, personagem comum nas telas do cinema e da TV, pode assumir formas diversas. Geralmente, repete elementos como a vassoura, o caldeirão e os chapéus pontiagudos.

 

Bom, sendo esta ou aquela representação (ou tudo mais que pode surgir a partir delas), figuras como estas, mulheres associadas à magia e/ou forças obscuras são parte de uma quantidade considerável das histórias estruturantes do léxico mitológico de culturas por todo o mundo. Seja em contos clássicos como a vilã de quem a princesa foge mas acaba por cair diretamente em suas garras, aceitando uma maçã envenenada ou espetando o dedo em uma roca afiada, ou nos livros de história como vítimas de terríveis perseguições medievais, as bruxas estão sempre por aí. Desde que o mundo é mundo, ou pelo menos desde que o conhecemos enquanto uma ordem social comum ao que é hoje, bruxas, feiticeiras, magas, necromantes e todas as demais denominações existiram habitando o lado oposto daquilo visto como o “bem”.

 

Mas como essas representações surgiram? Da mesma forma que existem hoje ou foram mudando de rostos, lugares e habilidades ao longo do tempo? Esta é uma história bem longa, mais do que você imagina!

 

A civilização da Deusa

Por séculos e séculos, muito antes do surgimento da maior parte das religiões monoteístas cultuadas pelo globo, muitas eram as figuras femininas de caráter divino por quais povos inteiros se viam amparados, muitas vezes como a divindade central. Na Antiga Babilônia, por exemplo, Tiamat é uma deusa ancestral ligada ao mar primordial e às águas salgadas, considerada a mãe ou avó de todos os demais deuses. Já Aserá ou Astarte são nomes de uma deusa canaanita adorada pelos antigos hebreus antes mesmo da criação do texto bíblico. A deusa Ishtar personificava as características do amor e da guerra para os babilônios, enquanto, na Suméria, Inanna adquiria todas essas características, acrescida dos aspectos do poder político e de Rainha da Noite ou governante do céu e da terra. Já para os gregos, Gaia é a própria deusa-mãe, o corpo da terra, precedendo qualquer outro deus masculino. 

 

Estatueta da Vênus de Willendorf, encontrada às margens do Rio Danúbio, na Europa Central. (Créditos: Bjørn Christian Tørrissen).

 

Essas mulheres-deusas tinham poderes sobre o mundo e a terra, com agência sobre a vida da humanidade e encarnando muitas das características que, com o passar dos tempos, foram atribuídas à condição de feitiçaria e ostracizadas da ordem do sagrado como algo nocivo e condenável pelos novos ordenamentos sociais.                                                                                                                                                                                                                                                        

 

Que tal conhecer um pouco das raízes destas figuras na representação ocidental, especialmente na cultura grega, o início do que identificamos como a literatura ocidental? Ir além da superfície e descobrir as forças e mistérios que estas mulheres, sejam elas de fato temíveis ou meras vítimas de culturas centradas no poder e nas formas masculinas de conhecer, carregam dentro de si? 

 

Hécate: a magia dos caminhos possíveis e do trânsito entre mundos

Deusa da magia e da noite, sua origem é difusa pela história do mundo arcaico e poucas são as certezas de sua primeira aparição. Em virtude das constantes assimilações culturais derivadas das conquistas de território e subjugação de povos distintos, muitas divindades acabam adquirindo características de outras e tornam-se figuras multifacetadas, com as quais diferentes povos esparsos no tempo e no espaço possuem laços de identificação. Hécate é uma delas. 

 

A teoria mais aceita localiza sua origem na Cária, a oeste da Ásia Menor, precedendo o que entendemos enquanto cultura grega. Por lá, seu culto era relacionado à cura e aos mistérios da vida e da morte. 

 

Sua primeira aparição textual (ou pelo menos a mais antiga que chegou até nós) advém da Teogonia do poeta grego Hesíodo. Na obra, ele narra o nascimento dos deuses e, consequentemente, do cosmos, já que as divindades helênicas (helênico é aquilo relativo ao povo grego) costumam representar elementos do mundo natural e dos corpos celestes. A narrativa conta como Zeus venceu os Titãs, a geração anterior que governava o mundo, e condenou-os ao Tártaro, profundezas de um vazio nas dependências do deus Hades, o rei dos mortos e governante do Mundo Inferior. Entretanto, Hesíodo conta como a figura de Hécate parece preceder a derrota dos titãs e a era dos deuses, sendo uma figura de honroso respeito e admiração. Essa ideia é reforçada pelo fato de que, ao invés de condená-la às sombras e ao esquecimento, Zeus concedeu-a diversas dádivas, como transitar entre diversos reinos (esferas do real) e “ter parte da terra e do mar ruidoso. Ela também partilhou a honra do céu estrelado” (Hesíodo, Teogonia).

 

Foi a união de Gaia, deusa-Terra, e Urano, a abóbada celeste, que deu origem a era do titã Cronos, posteriormente derrotado pelo deus olimpiano Zeus (Créditos: Ana Valvassori/Divulgação Espaço do Conhecimento UFMG).

 

Hécate é conhecida por suas diferentes facetas, sendo constantemente representada como uma figura triádica (de 3 lados/faces) e acumulando características e virtudes atribuídas a diferentes “arquétipos” (a donzela, a mãe e a anciã) ou fases da vida. Esta representação múltipla também se manifesta em sua associação com as fases da Lua e, mitologicamente, com as fronteiras borradas entre esta deusa dos caminhos e outras deidades femininas, como a deusa Selene, outra personificação da Lua. Sobre Hécate, a pesquisadora de Filosofia Antiga Julia Myara escreve, em sua obra “Deusas, Bruxas e Feiticeiras: histórias de quando Deus era mulher”,

 

“É sábia, ponderada e conselheira, como uma anciã; mas também é potente, geradora de riquezas e nutridora de crianças, além de, na condição de condutora de almas, aparecer como uma espécie de senhora dos mortos e dos andarilhos, dos buscadores, dos eremitas etc.” (Myara, 2024).

 

Esta sábia conselheira, já que colhe sabedoria de seu trânsito entre mundos, personifica também a encruzilhada. É associada aos caminhos possíveis, à magia, à feitiçaria e à luz que ilumina a escuridão. Além das três faces, ou dos três corpos, Hécate pode ser encontrada por aí representada como uma como uma mulher poderosa, portando tochas, chaves ou serpentes em suas mãos. Para a religião neo-paganista Wicca, Hécate é a guardiã dos mistérios, uma mentora espiritual protetora das bruxas cuja conexão “traz uma profunda compreensão dos segredos da magia, da intuição e do poder feminino.”

 

Hécate acompanhada de todos os símbolos que caracterizam sua representação: a Lua, a serpente, a tocha, a luz que ilumina o caminho e às três faces (Créditos: Reprodução/Segredos do Mundo).

 

No período arcaico grego, suas menções mais famosas estão na Teogonia, de Hesíodo (c. 750-650 a.C.), e no Hino Homérico a Deméter (c. século VI a.C.), onde auxilia Perséfone, recém introduzida ao título de rainha do submundo, a subir e descer entre os mundos inferior e superior para passar uma temporada com Hades, rei dos mortos. Já em Idílio 2 de Teócrito (c. 310-250 a.C.), poeta helenístico, a deusa é invocada pela eu lírica do poema para ajudá-la a trazer de volta o seu marido por meio de um encantamento. Sua associação à magia, ao uso de feitiços e preparo de poções pode ser visto, ainda, em Macbeth, uma peça de Shakespeare escrita em meados de 1600, onde é acionada nos ritos mágicos de Lady Macbeth.

 

Medeia: a vingança de uma feiticeira estrangeira 

Uma das figuras preferidas entre os poetas trágicos por sua história bastante infortúnia, Medeia é tido como filha de um poderoso rei, governante do reino da Cólquida, e neta do deus Hélio, o próprio Sol. Por seu mito, passa o herói Jasão e seus companheiros de navio, os Argonautas, admirado justamente pelo feito que se passa na cidade natal de Medeia: o roubo do velocino de ouro. Este artefato mágico foi feito da lã de um carneiro alado, cuja pelagem era inteiramente de fios de ouro, com poderes inigualáveis em todo o mundo. 

 

A tragicidade da história de Medeia se inicia justamente quando se apaixona pelo herói e o ajuda a vencer as missões impostas por seu pai, atual detentor e protetor do tão poderoso velocino. Era conhecedora de magia e bruxaria e detentora de poções mágicas que curavam feridas e transformavam inimigos em animais grosseiros e horripilantes. Hécate, inclusive, era a protetora e deusa guia de Medeia, com a qual compartilhava a força do espírito feminino e a prática da magia. A jovem passa a Jasão seus conhecimentos mágicos e ensina-lhe rituais sagrados que o favorecem aos olhos e proteção da grande deusa.

 

Na pintura de 1907 de John William Waterhouse, Medeia é retratada favorecendo o herói Jasão com suas poções mágicas.

 

Assim, o herói sai vitorioso de todas as provas impostas pelo colérico Eetes, rei de Cólquida e pai de Medeia, que ainda não parece disposto a ceder seu precioso artefato. Ela e o amado roubam o velocino de ouro e fogem diretamente para a Grécia, terra natal do herói, com a promessa de se casarem. Ao fugir da ira do rei, Medeia acaba matando o próprio irmão, que buscava trazê-la à força e puni-la por traição. 

 

Jasão jura diante dos deuses que, saindo vitorioso dos desafios, tomaria Medeia como sua esposa e com ela viveria em sua pátria. Devido a um hiato de tempo entre os registros que narram a história do casal, só os encontramos novamente na cidade de Corinto, governados pelo rei Creonte e já pais de duas crianças. O herói, vaidoso e ambicioso, não se contenta com a vida de pai e esposo e seduz a jovem Glauce, herdeira de Corinto e filha do rei Creonte, visando um casamento real e a possibilidade de um futuro trono. Deslumbrado pelas possibilidades de uma vida em riqueza e poder, ele rejeita Medeia e ordena que ela estabeleça moradia fora dos muros de Corinto. A existência da feiticeira, detentora de um “espírito perigoso que não suportará sofrimento” e de um “caráter selvagem, temeroso, de ânimo indomável”, se torna um empecilho aos novos objetivos de Jasão. Descartada por ser “indócil” e “insubmissa” e rejeitada pelas demais mulheres de Corinto, a mulher é colocada em uma situação de extrema vulnerabilidade. 

 

Na tragédia de Eurípides, outro poeta grego, sua personagem Medeia expõe a condição feminina na Antiguidade (que ainda alcança nossa vivência contemporânea), monologando sobre o isolamento da mulher estrangeira, mãe e insubmissa. Sua maneira de se colocar no mundo, enquanto descendente de deuses feiticeiros, é incomum e ostracizada por uma sociedade que espera das mulheres somente a docilidade. É daí que vem a escolha hedionda da mulher: matar os próprios filhos e privar Jasão de sua descendência. Envenenando também a nova esposa de Jasão, ela pune suas aspirações egoístas e impossibilita qualquer chance de um casamento real e de poder político.

 

O pintor francês Charles-André van Loo retratou a vingança de Medeia contra Jasão na pintura em exposição no Musee des Beaux-Arts.

 

Este desfecho trágico é exclusivo da peça de Eurípides, onde termina solene e majestosa de volta à carruagem alada de Hélio, deus Sol e avó de Medeia. Segundo uma versão da própria cidade de Corinto, Medeia se torna a governante oficial deste povo, com Jasão como seu rei consorte, e geram juntos 14 crianças. Posteriormente, um ato de revolta dos coríntios mata todos os descendentes da rainha, motivado talvez por esta ser mulher, feiticeira ou os dois, uma combinação altamente subversiva na Antiguidade.

 

Circe: a perigosa bruxa alquimista da ilha de Eana

Circe pode ser considerada a primeira praticante de magia na produção clássica antiga, figurando na Odisseia, obra do poeta Homero que narra a turbulenta volta do herói Odisseu para sua terra natal depois de longos anos de batalha na Guerra de Troia. Ao longo desta jornada de retorno, Odisseu (ou Ulisses, na tradição romana) enfrenta diversos obstáculos para encontrar seu caminho até Ítaca, cidade onde é o governante. Entre monstros marinhos, ciclopes canibais e sereias assassinas, o guerreiro enfrenta uma grande oponente em uma ilha reclusa, onde leoas e lobas guardam a casa da filha do titã Hélio, o deus-Sol, e da ninfa Perseis. Sendo assim, pensando em um parentesco divino, Circe seria parente de Medeia por parte de seu pai. 

 

Como muitas outras divindades da cultura grega antiga, “tinha uma natureza dualista: era deusa da Lua Nova, do amor físico, dos encantamentos e sonhos que revelam o futuro, mas também das vinganças, maldições e da magia negra”.

 

Circe invidiosa, de John William Waterhouse (1892).

 

A Ilha de Eana é uma das paradas da tripulação de Odisseu, e de alguns outros heróis e humanos aparentemente, onde sofrem com um destino terrível. Circe dominava a alquimia e a produção de venenos e poções, uma habilidade conhecida como phármakon. Vivendo sozinha em uma ilha isolada, a feiticeira pune homens invasores ou ameaças com transformações nos mais diversos animais.

 

Nela, o vocábulo grego φάρμακοn podia significar tanto um medicamento feito com ervas quanto uma poção mágica ou veneno. Em Homero esse termo aparece em, pelo menos, cinco incidentes sem conotações negativas quando sendo utilizado por um homem. É apenas com Circe que esse conhecimento e uso de ervas adquire caráter pejorativo e malicioso (TURKILSEN, 2016).

 

Circe, por Wright Barker (1889) – o palácio da feiticeira é cercada por animais selvagens, supostamente homens transformados por suas poções mágicas.

 

Os homens de Odisseu, ordenados pelo herói, atracam o navio e se embrenham pela ilha para verificar o local onde passariam a noite. Buscando por um anfitrião que pudessem oferecê-los  banhos e refeições, eles acabaram recebidos pelas feras de Circe – que, na verdade, eram homens enfeitiçados – e conduzidos para as dependências da misteriosa deusa. 

 

Após desfrutarem de um banquete, Circe usa de seus conhecimentos mágicos e, com uma poção e um toque de sua varinha, eles foram transformados em porcos, mas ainda com suas consciências humanas. Avisado pelo deus Hermes sobre os perigos que rondavam a ilha e sua única moradora, Odisseu decide adentrar o palácio da feiticeira tendo em mãos um antídoto para a magia da deusa. Assim, ele subjuga a maga que, de repente, cai de amores pelos homens e o ajuda na missão de retornar à terra pátria, devolvendo a humanidade aos seus tripulantes. 

 

Não é surpresa que, em uma sociedade como a daquele período, voltada ao culto aos heróis e a obediência imposta às mulheres, especialmente quanto aos seus objetos de paixão, a resposta que mais fazia sentido ou a vista como correta para o pensamento da época se encontrasse na subserviência imediata mesmo da mais temida feiticeira de todas.

 

[Texto de autoria de Maria Eduarda Abreu, estudante de Jornalismo e estagiária do Núcleo de Comunicação]

 

Referências

Hécate: quem é, origem, atributos e relação com a Wicca

Circe, a poderosa deusa da feitiçaria que transformava homens em animais

Circe: Uma história de força, coragem e liberdade

As bruxas do passado e do presente – Revista Ciência Hoje

Tiamat: a grande mãe da Babilônia

XXXVIII ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 2019, Universidade Federal do Ceará. DE LILITH À HÉCATE: A RECEPÇÃO DO FOLCLORE HEBRAICO À CULTURA GREGA […]. [S. l.: s. n.], 2019. Disponível em http://www.periodicos.ufc.br/eu/article/view/58602.

CARVALHO, T. R. Hécate, deusa da magia: representação em Macbeth. Revista Caletroscópio, Universidade Federal de Ouro Preto, v. 6, ed. 1, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufop.br/caletroscopio/article/view/3825. Acesso em: 23 out. 2024.

HOMERO. Odisseia. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2013.

MYARA, J. Deusas, bruxas e feiticeiras: histórias de quando Deus era mulher. 1. ed. [S. l.]: Planeta, 2024. 208 p. ISBN 978-8542227123.