Em conferência que integra as comemorações dos 90 anos da UFMG, o matemático e cientista político alemão Michael Heinrich, da Universidade de Ciências Aplicadas de Berlim, abordou a atemporalidade da obra O capital, de Karl Marx. Um dos maiores conhecedores da obra, cuja primeira edição completa 150 anos em 2017, o especialista faz parte do Projeto Mega, que tem o objetivo de pesquisar e publicar os manuscritos e obras de Marx.
Na contramão de economistas e sociólogos que afirmam que a sociedade mudou e que o livro não deve servir como parâmetro para os estudos da sociedade capitalista contemporânea, Heinrich destacou a atualidade da obra. Segundo o pesquisador, O capital ainda é uma chave para se compreender o funcionamento da sociedade porque não aborda apenas o capitalismo da época em que foi publicado, mas apresenta estruturas e dinâmicas básicas do sistema que continuam vigorando nos dias atuais.
“Já no prefácio do primeiro volume de O capital, Marx utiliza exemplos da Inglaterra do século 19 para apresentar características gerais do modo de produção capitalista. Ao apresentar esses exemplos, fica claro que o objeto de análise do livro não é o capitalismo em si, mas as leis e a estrutura por trás desse regime. O capitalismo mudou, mas O capital nos fornece os elementos básicos para a condução de pesquisas atuais da área”, disse.
O especialista destacou que a obra de Marx também questiona pensadores anteriores, como o inglês Adam Smith. No primeiro capítulo do volume inaugural de O capital, Marx analisa o motivo de a mão de obra se assumir como uma forma de valor. Até então, esse questionamento não fora feito por outros pensadores. “Esse é um questionamento importante porque precisamos saber se a produção de valor é algo natural do ser humano. Além disso, Marx é o primeiro a descrever as figuras do capitalismo. Para ele, as pessoas são personificações de categorias econômicas”, explicou.
Para o pesquisador, a visão do indivíduo como personificação de categorias econômicas tem consequências importantes na obra de Karl Marx, uma vez que as mercadorias são vistas por ele como possuidoras de valor de uso e de troca. “As pessoas e suas ações são importantes porque a mercadoria não chega sozinha ao mercado. Marx, no entanto, não analisa as pessoas, que são os capitalistas. Seu objeto de interesse foi a lógica e a estrutura de produção capitalista. Para ele, não importa quem são os indivíduos envolvidos no processo”, disse.
Michael Heinrich defende a ideia de que a exploração existe em todas as sociedades, não está restrita às sociedades capitalistas modernas. Para ele, o formato das regras que ditam a formação de classes é interessante para os estudos de quem se dedica ao entendimento do capitalismo.
“A exploração não é exclusividade do capitalismo. A diferença entre a exploração da sociedade capitalista moderna e aquela observada nas sociedades escravocratas, por exemplo, é que agora não existe mais a dependência pessoal. Hoje, as pessoas são cidadãos livres”, explicou.
O pesquisador, no entanto, ressaltou que essa liberdade não impede que a exploração ocorra. ”Marx demonstra que a dependência pessoal é substituída por uma regra impessoal. Ele insiste que o trabalhador não vende o seu trabalho, que não é uma mercadoria, mas, sim, o seu poder de trabalho, que é tudo que ele tem. O trabalhador é forçado a se submeter ao capital, e assim se dá a exploração.”
Ao mesmo tempo, o conferencista destacou que, além dos trabalhadores, os capitalistas também sofrem exploração ao serem pressionados pela concorrência. “Para sobreviver como capitalista, é preciso que a pessoa maximize seus lucros. Dessa maneira, os capitalistas, que formam a classe dominante, também não são livres”, afirmou.
Para Michael Heinrich, as teorias sobre formas de dominação são consideradas essenciais para compreender esse fenômeno. “Quando se quer mudar algo na sociedade capitalista, é necessário entender as especificidades das classes e da exploração existente nos tempos modernos. Por isso, precisamos nos debruçar sobre os três volumes da obra, e não apenas no primeiro volume, o mais conhecido.”
Segundo o professor Hugo da Gama Cerqueira, professor do Departamento de Ciências Econômicas da Face, os estudos sobre a obra de Marx devem ser contínuos, uma vez que ela é fundamental para compreender o capitalismo. “Não podemos pensar em ciências sociais sem falar de Karl Marx. Sartre já dizia que O capital era uma obra insuperável porque enfrentava os problemas de seu tempo. É interessante notarmos que ainda hoje ela é capaz de enfrentar os novos problemas”, disse Cerqueira, que é pró-reitor de Planejamento da UFMG.
Michael Heinrich também alertou sobre as diferenças que podem ser observadas na versão de O capital editada pelo parceiro intelectual de Marx, Friedrich Engels, e nos manuscritos deixados pelo autor. Para ele, essas diferenças indicam a necessidade de mais estudos sobre a obra.
“Engels reformulou várias anotações de Marx, buscando oferecer explicações para pensamentos não concluídos do autor. A Teoria da Crise, por exemplo, foi desenvolvida por Engels, e não por Marx. O fato de Marx não ter finalizado sua obra mostra que devemos estudar os dois textos para compreendê-los melhor.”
A atuação como ativista político e seu debilitado estado de saúde foram alguns dos motivos que impediram Marx de finalizar O capital. Porém, foi outra a razão principal para a não finalização da obra. “Com as crises políticas da época e todas as transformações que ocorriam na sociedade, Marx percebeu que seria necessário acrescentar muita coisa à obra que ele estava escrevendo. Naquele momento, o capitalismo assumiu formas diferentes, e ele sentiu que precisava expandir seu escopo de pesquisa, o que não teve tempo de fazer porque morreu aos 64 anos. Precisamos reconhecer Marx como um produtor de fragmentos, e não de uma obra fechada”, concluiu.
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