Viveiros de Castro: ‘sociedades tradicionais podem servir de exemplo’
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Eduardo Viveiros (à esquerda), o reitor Jaime Ramírez e o professor Eduardo Vargas. Foto:
Raíssa César / UFMG

Eduardo Viveiros (à esquerda), o reitor Jaime Ramírez e o professor Eduardo Vargas. Foto:
Raíssa César / UFMG

 

Em conferência, pesquisador defendeu uma antropologia menos dependente dos modelos impostos pelas forças dominantes.

Por Ferdinando Marcos

 

“Saberes tradicionais, como os produzidos e disseminados por povos indígenas ou por camponeses, são exemplos de sensibilidade e de como viver em paz com o mundo neste século”, afirmou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, na conferência O modelo e o exemplo: dois modos de mudar o mundo, realizada na tarde de ontem, 9, no Centro de Atividades Didáticas de Ciências Humanas (CAD 2). O evento integrou o ciclo de conferência que comemora os 90 anos da UFMG.

Apresentado pelo professor Eduardo Vargas, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Fafich, Viveiros de Castro lembrou, em suas primeiras considerações, que a ideia da distinção entre modelo e exemplo – mote de sua apresentação na UFMG – surgiu em entrevista concedida a uma jornalista portuguesa, na qual foi questionado se povos indígenas podem servir de modelo às sociedades modernas no tocante a sua relação com a natureza. Sua resposta já indicava a distinção: “Não podem servir de modelo para nós, mas certamente podem servir de exemplo”, afirmou ele, que é professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Lançada a semente do conceito, novos exemplos, como o Movimento Zapatista, vieram à cabeça do antropólogo em suas reflexões sobre a dicotomia exemplo-modelo. Para ele, o movimento mexicano – fortemente associado à questão indígena e aos grupos que se opunham ao acordo de livre comércio do Nafta –, desenvolveu-se não como um modelo, mas como exemplo de luta, em que outros movimentos devem se espelhar, sem perder de vista suas peculiaridades sociais e geográficas.

Futuro mal distribuído

Refletir sobre novas direções para o Antropoceno (período definido pela influência humana no planeta Terra) é ponto fundamental para a análise do mundo contemporâneo, avalia Viveiros. Ele citou o escritor de ficção científica William Gibson, segundo o qual “o futuro já chegou, só não foi ainda homogeneamente distribuído”. E provocou: “certamente, para Gibson, esse futuro chegou ao Vale do Silício, mas, para mim, é justamente o contrário. Ele já chegou aos povos africanos e latinos, mas não chegou à Califórnia”.

A justificativa para essa “inversão” proposta pelo antropólogo é a necessidade de se contrapor à realidade contemporânea forjada pelos grandes estados-nação e marcada pela crescente escassez de tempo e de espaço, pelo estado de incerteza em relação às mudanças climáticas e pelo consumo de matéria e energia sem precedentes na história humana. “Vivemos o que outros já chamaram de ‘grande desarranjo’, um notável descompasso ‘ecopolítico’, entre os planos de imanência natural e do pensamento, segundo distinção proposta por Gilles Deleuze e Félix Guatari”, comentou Viveiros de Castro.

Viveiros advoga uma antropologia mais humana, menos ocidentalizada e, consequentemente, menos dependente dos modelos impostos pelas forças dominantes e centralizadoras. “O pensamento humano ingressou na natureza de forma catastrófica. Sabemos que a ciência ‘sabe’, mas quem ‘faz’ é a política e os resultados disso são, em geral, desoladores”, criticou ele, para, em seguida, citar um exemplo brasileiro: “Vivemos justamente essa tensão entre política e ciência, que ultimamente vem-se manifestando por meio dos cortes orçamentários”.

‘Misantropologia’

Reconhecido por seus estudos sobre povos amazônicos, Eduardo Viveiros de Castro defende a incorporação de outros saberes, que não os dominantes, numa “misantropologia” (trocadilho com o prefixo mis, do inglês, que indica erro), que resiste às forças dominantes. Tais forças, segundo ele, reduzem outras formas de vida, como as indígenas, a concepções limitadas de pensamento, à categoria de “menos humanos”.

Viveiros de Castro inspirou-se na noção de 'bricoleur', o especialista em gambiarra, de Lévi-Strauss. Foto: Raíssa César / UFMG

Viveiros de Castro inspirou-se na noção de ‘bricoleur’, o especialista em gambiarra, de Lévi-Strauss. Foto: Raíssa César / UFMG

Como antídoto, Viveiros defende o “contraste entre exemplo e modelo como arma para se alcançar o ‘bom antropoceno’, para não depender de grandes projetos de geoengenharia, ou mesmo de engenharia planetária – uma possível colonização de outros planetas –, caso as coisas deem errado”.

Segundo o antropólogo, o pensamento por modelo é aquele fundado em uma apreensão científica do mundo, uma simplificação da realidade e uma forma de dominação política, quando empregado pelas forças econômicas e culturais do imperialismo. “Modelos são, por definição, uma simplificação da realidade. Modelos podem ser usados para entender a realidade (heurística) ou, de forma normativa, para moldar a realidade, o que sempre é uma simplificação violenta sobre o mundo e a vida em sociedade. O modelo normativo impõe e sempre esteve na raiz do projeto modernista de achatar os muitos mundos, de modo a produzir um único nomos global”, explicou Eduardo Viveiros.

De acordo com o pesquisador, impostos a povos “menos modernos”, os modelos devem ser por eles copiados, o que maximiza a distância entre aqueles que “moldam a sociedade” e aqueles que são “modelados”. “É claro que nunca se consegue copiar o modelo como se deveria. Os modelados produzem um simulacro, que subverte o modelo original que nos é enfiado goela abaixo”, comentou.

Os exemplos, ao contrário, são uma estrutura de pensamento calcada na experiência prática, em seu aspecto sensível. A ideia de bricoleur, “o especialista em gambiarra”, desenvolvida por Lévi-Strauss, foi a inspiração para o reconhecimento de outros modos de pensar, que não apenas os dos “engenheiros”, baseados numa apreensão científica do mundo (os modelos). O bricoleur, por sua vez, tem seu conhecimento fundado no exemplo e depende do que está a seu dispor, valendo-se dessas limitações para encontrar novas possibilidades. “Enquanto o modelo é imposto verticalmente (FMI, EUA, governos centrais), o exemplo se difunde horizontalmente. O modelo dá ordens, o exemplo oferece pistas”, refletiu.

Cumplicidade

Viveiros de Castro sustenta que os “menos humanizados” povos amazônicos foram, na verdade, muito mais bem-sucedidos em sua relação de cumplicidade com a natureza do que as sociedades eurocentradas: “Hoje, sabemos que povos indígenas que viveram na região amazônica não foram prejudiciais ao seu ambiente. Pelo contrário: estudos indicam que a composição da Floresta Amazônica foi diretamente influenciada pelos homens que há milhares de anos nela viveram. O cultivo de culturas comestíveis de plantas e frutas, por exemplo, contribuiu para aumentar e diversificar as fontes alimentícias não só para os humanos como também para todas demais espécies”.

Outro exemplo destacado por Viveiros na sua defesa do pensamento por exemplo está no semiárido nordestino, ameaçado por uma simplificação violenta de agronegócio e monocultura de algodão. É nesse cenário que emerge o movimento das Agricultoras e Agricultores Experimentadores do Semiárido, que luta pela recuperação do solo desertificado pelo plantio da monocultura.

Auditório nobre do CAD2 ficou lotado; conferência foi transmitida para o auditório da Reitoria. Foto: Raíssa César / UFMG

Auditório nobre do CAD2 ficou lotado; conferência foi transmitida para o auditório da Reitoria. Foto: Raíssa César / UFMG

“Após a invenção de um sistema de cisternas por um agricultor de Sergipe, esse movimento está conseguindo recuperar o solo e armazenar água sem depender de grandes projetos hídricos, como a transposição do Rio São Francisco. O governo começou, num pensamento por modelo aliado às empresas amigas, a tentar replicar o sistema, porém utilizaram cisternas de plástico. Então, o que era óbvio para qualquer agricultor local começou a virar realidade: as cisternas de plástico simplesmente derreteram nas suas partes externas”, relatou Viveiros.

Antes da conferência, Eduardo Viveiros de Castro conversou com a reportagem da TV UFMG sobre a distinção entre modelo e exemplo. Assista ao vídeo:

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