UFMG caminha rumo à descolonização, avalia Boaventura de Sousa Santos em conferência
O intelectual português foi homenageado em ritual protagonizado por estudantes da formação intercultural de educadores indígenas. Foto: Foca Lisboa/ UFMG
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As formações transversais, o programa intercultural de educadores indígenas, a licenciatura no campo, a criação de vagas suplementares para representantes de povos indígenas e a instituição de cotas na pós-graduação são importantes passos que a UFMG vem dando rumo à descolonização, processo relacionado com a valorização do conhecimento produzido sob a perspectiva de grupos não hegemônicos. A avaliação foi feita pelo intelectual português Boaventura de Sousa Santos, na tarde desta terça-feira, dia 25, durante a conferência As epistemologias do Sul e a descolonização da universidade, que integrou o ciclo UFMG, 90 – desafios contemporâneos.

“Esta universidade segue um bom caminho, e espero que a minha palestra ajude a aprofundar esse processo e a transformar a UFMG em exemplo de descolonização e democratização”, disse Boaventura, diretor do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

Parceiro de longa data de grupos acadêmicos da UFMG, como o Ações Afirmativas, Boaventura de Sousa Santos teve uma recepção compatível com sua atuação intelectual. Ele foi homenageado por estudantes da formação intercultural indígena pertencentes a vários povos, como os pataxós, os xakriabás e os maxakalis. Boaventura foi cercado pelo grupo, que formou um corredor humano. “Sinto-me em casa nesta casa”, disse o intelectual a uma plateia de cerca de 1,2 mil pessoas que lotou dois auditórios no campus Pampulha – o do CAD1, onde ele estava presencialmente, e o da Reitoria, para o qual a conferência foi transmitida.

Antes de entrar no tema de sua conferência, Boaventura chamou atenção para a data de 25 de abril, aniversário da Revolução dos Cravos, que, em 1974, pôs fim a uma ditadura de 48 anos em Portugal. “É uma data importante, principalmente porque vivemos um momento em que os inimigos da democracia estão nos rodeando”, afirmou ele, numa alusão à recente onda autoritária que alcança várias partes do mundo.

Em vez de cravos, a flor símbolo do movimento português, Boaventura distribuiu rosas ao reitor Jaime Ramírez e à professora Nilma Lino Gomes, que compunham a mesa, e à professora Shirley Miranda, coordenadora do Programa Ações Afirmativas, que recentemente desenvolveu estudos de pós-doutoramento no CES. “Como não estamos na estação dos cravos no Brasil, entrego rosas”, justificou ele, que dedicou a conferência ao cacique Rodrigão Xakriabá, morto há exatos 14 anos (25 de abril de 2003), e a Silvino Nunes Gouveia, líder do MST assassinado neste mês, em Periquito, no Vale do Rio Doce.

Boaventura, Jaime Ramírez e Nilma Lino Gomes compuseram a mesa. Foto: Foca Lisboa/ UFMG

Boaventura, Jaime Ramírez e Nilma Lino Gomes compuseram a mesa. Foto: Foca Lisboa/ UFMG

Em seu pronunciamento, o reitor Jaime Ramírez agradeceu aos alunos indígenas que, “de forma muito calorosa e especial”, deram boas-vindas a Boaventura e passou, em seguida, a palavra à professora Nilma Lino Gomes, encarregada de apresentar o professor português, a quem definiu como um intelectual de “perfil inquietante, indagador e inovador”.

Foto: Foca Lisboa/ UFMG

Nilma Lino Gomes lembrou a parceria de mais de uma década entre o Programa Ações Afirmativas da UFMG e o CES, dirigido por Boaventura de Sousa Santos. E acrescentou que ele é “fonte de inspiração” para os trabalhos do grupo do qual participa na UFMG, principalmente em razão de suas reflexões sobre as epistemologias do Sul.

“Apesar de geograficamente localizados no eixo sul do mundo, o Brasil e a universidade brasileira ainda têm muito de Norte dentro de si. O próprio Boaventura é quem nos lembra disso. E por mais que já tenhamos políticas de ações afirmativas que possibilitam a presença de negros, indígenas, estudantes de escolas públicas, estudantes com deficiência, sabemos que ainda existem linhas abissais que separam o conhecimento científico dos outros conhecimentos produzidos pelos diferentes sujeitos, integrantes de coletivos sociais diversos transformados em desiguais”, afirmou Nilma, ao citar algumas ideias recorrentes no pensamento do professor.

Movimento mundial

Na visão de Boaventura de Sousa Santos, a descolonização universitária ocorre em várias partes do mundo: “África do Sul e Inglaterra, por exemplo, vivem esse processo”. No caso do país sul-africano, ele lembrou as manifestações estudantis na Universidade da Cidade do Cabo (UCT), uma das mais importantes do país. “Há um entendimento entre os estudantes negros de que lá não houve uma transição do apartheid para o pós-apartheid. O que existe lá é um neoapartheid”, definiu.

Na Inglaterra, a onda de descolonização alcançou a tradicional Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS, na sigla em inglês), que formou importante contingente de administradores coloniais. Lá, os estudantes passaram a reivindicar a inclusão do pensamento de filósofos africanos nas grades curriculares dos programas de ensino.

O diretor do CES também analisou o processo global de neoliberalização das universidades, caracterizado por cursos tratados como mercadorias por instituições de ensino superior organizadas como empresas e, mais recentemente, pelo advento dos rankings, que, em sua visão, são formas de estabelecer uma valoração monetária para os serviços prestados por elas.

“Esse movimento de globalização fez com que os filhos das elites de países periféricos passassem a ser formados nas universidades de classe internacional, bem ranqueadas, sediadas, principalmente, nos Estados Unidos e na Inglaterra”, explicou ele, acrescentando que as crises por que passam as universidades de países do Hemisfério Sul são, em certa medida, provocadas pelas elites, que deixaram de investir nelas.

Boaventura: formas de sociabilidade metropolitana e colonial. Foto: Foca Lisboa/ UFMG

Boaventura: formas de sociabilidade metropolitana e colonial. Foto: Foca Lisboa/ UFMG

Ciências sociais

Boaventura também contextualizou o papel das ciências sociais no processo de colonização universitária. Segundo ele, esse campo do conhecimento nasce no século 19 exatamente para compreender e buscar respostas para o esgarçamento do tecido social provocado pelas crises no campo e nas cidades europeias. “Até então, eram os escritores que lidavam com a temática social, como Émile Zola, na França, Charles Dickens, na Inglaterra, Eça de Queiroz, em Portugal, e Machado de Assis, no Brasil.

Desse processo, continuou ele, adveio, por exemplo, a ideia de desenvolvimento, que se insere no arcabouço ideológico da colonização. “Havia cinco ou seis países desenvolvidos na época. Portanto, o restante era subdesenvolvido, de acordo com essa visão eurocêntrica. E isso implicava também a desvalorização da religião, da história, da cultura, das instituições e do direito dessas nações ditas não desenvolvidas”, afirmou ele, lembrando que a dicotomia desenvolvido-subdesenvolvido se manifesta, inclusive, por meio de sutis diferenciações terminológicas e conceituais. “Na Europa, é filosofia; na África é cosmogonia. Por que não falar em uma filosofia africana?”, provocou ele.

A chamada “linha abissal”, um dos principais conceitos da lavra de Boaventura de Sousa Santos, também foi abordada durante a conferência. “Trata-se de uma linha tão importante que ninguém a vê”, disse. Essa divisória tênue separa grupos sociais e reforça dominações políticas, econômicas e culturais, mesmo com o fim da colonização. “Acabaram-se as sociedades metropolitanas e coloniais, mas permaneceram as formas de sociabilidade metropolitana e colonial”, distinguiu.

Para ilustrar seu raciocínio, ele citou dois exemplos hipotéticos bem concretos: o negro que estuda em uma universidade, mas que pode ser morto pela polícia ao atravessar a rua, e a cozinheira, que sai do trabalho e também se arrisca a ser assassinada pelo companheiro ao chegar em casa. “No primeiro ambiente [na universidade ou no trabalho], os dois são sujeitos com direitos, mas quando saem para a rua ou retornam para casa, transformam-se em suburbanos [cidadãos de segunda classe].”

Nesse contexto, descolonizar a universidade passa, segundo Boaventura, por remover a linha abissal. “Veja o caso do racismo. Só poderemos destruí-lo em nossas relações se formos capazes de reconhecer a sua existência.”

Plateia lotou os auditórios do CAD1 e da Reitoria. Foto: Foca Lisboa/ UFMG

Plateia lotou os auditórios do CAD1 e da Reitoria. Foto: Foca Lisboa/ UFMG

Sociologia das ausências

Ao fim da conferência, o professor de Coimbra afirmou que uma universidade descolonizada é aquela que reconhece a sociologia das ausências, ou seja, que é capaz de denunciar a invisibilidade de que são vítimas os movimentos sociais e os grupos indígenas, quilombolas e de mulheres. “A Universidade é a história do conhecimento contado pelos vencedores. Os vencidos raramente chegaram aqui”, lembrou.

Segundo ele, a descolonização da universidade também envolve a adoção de currículos mais fluidos e abertos, num processo que compara ao curso do rio e da lava do vulcão, que “é criativo e contingente”. “O problema é que nossos currículos foram estruturados como a linha de montagem de uma fábrica. Com esse curso, não será possível descolonizar. Descolonizar é praticar a ecologia de saberes. Um médico tradicional da Amazônia não tem o mesmo ritmo de um acadêmico. Ele tem seu ritual, seu silêncio. Isso precisa ser respeitado”, defendeu.

Após a conferência, o diretor do CES e o reitor da UFMG assinaram termo de cooperação que prevê o intercâmbio de estudantes e pesquisadores entre as duas instituições. Boaventura também autografou livros de sua autoria, como A difícil democracia – reinventar as esquerdas, lançado no ano passado.

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