Revista Diversa

Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 5 - nº. 11 - Maio de 2007

Artigo

Emílio Moura: as amizades eletivas

Fábio Lucas
Escritor, ensaísta e crítico literário, foi colega e amigo de Emílio, quando docentes da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG

Acervo de família
O poeta Emílio Moura
O poeta Emílio Moura

Quando o Suplemento Literário do Minas Gerais dedicou dois números especiais a Emílio Moura, em artigo, chamei a atenção para o seu culto da amizade, traço, a meu ver, comum à sua geração, mas elevado a dogma pelo poeta. Algum tempo depois, em encontro acidental com Carlos Drummond de Andrade, este comentou o meu depoimento, assinalando: “Gostei especialmente da lembrança de que, para o Emílio, o amigo não tem defeito”. O artigo Emílio Moura saíra em 19 de abril de 1969.

No Suplemento anterior, de 12 de abril de 1969, Carlos Drummond proclama, no poema Emílio Moura de Dores do Indaiá (p. 3): “Amizade, teu doce apelido é Emílio”. Na mesma página, Hélio Pelegrino registra em Um poeta de corpo inteiro: “É mineiro de quatrocentos anos, no físico como no metafísico.” E assinala: “Jamais escreveu cartas aos amigos, mesmo aos amigos queridos, embora saiba dedicar-lhes uma fidelidade sem limites.”

Na sua obra, reunida no volume Itinerário Poético, temos apontado, entre os temas recorrentes, o da carência amorosa. Ou, mais especificamente, o culto da amada ausente. Só para recordar alguns versos, vejamos o final de Quantas vezes, poema de O Espelho e a Musa” (1947-1948): “Só em sonhos é que já foste minha:/ só nos momentos de solidão absoluta é que realmente te encontro”. Observemos, agora, os derradeiros versos do soneto À luz da tarde, de Desaparição do Mito (1949-1951): “Quem és tu que te esvais, trêmula, trêmula/ diante do amor que neste amor te invento?”

Muitos analistas de sua produção lírica confundiram-se com o excesso de perguntas constantes dos seus versos. Ao mito da distante mulher idealizada, acrescentou-se o princípio das indagações sem resposta. O “eu lírico” se exasperava na tessitura infinita de questionamentos. Emílio Moura se defendeu: não entenderam que as perguntas constituem um processo estilístico. Assim o vejo na interminável busca do indizível: a amada, a morte, o ser, o destino, a solidão. A metafísica incurável do seu neoplatonismo. No fim da vida e da obra, como no poema Só agora, lamenta a dispersão em que se perdeu: “Onde estou, não sou./ Nunca sou totalmente./ E é um ficar, sem deter-me, e um partir, sem levar-me.” Ou, na contemplação do nada, no primeiro verso do poema Eu, no tempo: “Meu espírito caminha irreversivelmente para a irrealidade de tudo.”

Além da amada ausente, Emílio Moura se derrama na louvação do pai, da mãe, dos filhos, dos netos e da casa em que viveu os anos da infância. Não especifica a amizade como assunto poético, a não ser quando esta se insinua nas variadas dedicatórias de composições a escritores. E em alguns poemas de evocação dos mortos. De qualquer forma, o poeta não se descuidava de reverenciar Aníbal Machado, Guilhermino César, Pedro Nava, Ciro dos Anjos, Fritz Teixeira de Salles, Dantas Mota, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Hélio Pelegrino, Otto Lara Resende, Marco Aurélio de Moura Matos, Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Di Cavalcanti, Murilo Mendes, César Leal, Ciro Pimentel. Uma legião de companheiros de ofício.

Mas não explora o tema fulcral do seu devotamento afetivo à amizade, que, segundo penso, para a amizade, sólida e definitiva, Emílio Moura já possuía a resposta. A perfeição do laço de envolvimento amistoso não lhe permitiria o processo da dúvida, da indagação sucessiva em direção da essência.

Tomemos o exemplo de sua ligação a Drummond. O primeiro filho de Emílio Moura, nascido em 1931, teve o nome de Carlos Eloy. Traduzo: Carlos, de Carlos Drummond de Andrade, Eloy, nome do pai de Emílio, avô de Carlos Eloy. Para o quarto filho, Emílio Moura reservou o nome de Carlos Alberto: Carlos, mais uma vez, de CDA e Alberto, de Alberto Campos. O segundo filho se chamou Alberto Luís, mais uma evocação a Alberto Campos, intelectual cedo demais falecido. No arquivo de Emílio Moura, surpreende no jornal Minas Gerais a notícia do enterro de Alberto Campos, em 19 de junho de 1933 (Minas Gerais de 20/6/1933).

Não cessa aí o enredo da amizade. Emílio Moura se distribuía num semnúmero de relações afetivas. Parentes próximos ou conterrâneos de Dores do Indaiá se repartiram em múltiplos ramais. A família Fiúza, por exemplo, me foi introduzida por ele. Os Caetanos ficaram num de seus últimos poemas, lido entre sorrisos por ele e Antônio Luís (terceiro filho) no leito do hospital. Contrariando sua determinação, incluí o poema Ser Caetano na antologia que preparei sobre ele, com ensaio biobibliográfico. Assim como reproduzi bela Elegia na revista da Academia Mineira de Letras (julho/ agosto de 2004, p. 53) procedente do suplemento literário Letras e Artes de A Manhã (Rio) de 4 de setembro de 1949. Por Emílio, fui apresentado a Gustavo Capanema e Gabriel Passos.

A meu ver, no território das letras, Carlos Drummond de Andrade e Antônio Cândido representaram a sua mais calorosa admiração. Em seguida, pelo número de referências, Abgar Renault e Marques Rebelo. Certa vez, quando lhe foi prestada homenagem, em ocasião já marcada pela saúde em declínio, comuniquei a todos esses a iniciativa do evento. Antônio Cândido, na sua dimensão ética inenarrável, deslocou-se de São Paulo e lá esteve para visitar o amigo. Dedicara sua mais recente obra de então, Vários Escritos (1970) a Emílio, “grande poeta e grande amigo”.

Emílio Moura não era afeito a manter correspondência com escritores. Mas sustentava relativo diálogo epistolográfico com certos companheiros. Além dos amigos da juventude, Drummond, Nava, Capanema, lembro-me de Lyvia Ferreira Santos, autora de vários estudos acerca da lírica emiliana, Dantas Mota, Oscar Mendes, alguns outros. Mário de Andrade ficou meio resmungão com ele e exprimiu seu desgosto a Drummond. Motivo: falta de respostas.

Mais que todos, na vida do poeta Emílio, em termos de convivência demorada, de confiança mútua, convém lembrar João Alphonsus, notável contista, poeta e jornalista, falecido em 23 de maio de 1944. Quando percorro parcela dos guardados de Emílio Moura, a todo momento tropeço em recortes, anotações e esboços que têm João Alphonsus como foco. Nas conversas íntimas, quanta revelação sobre o contista eu tive. João Alphonsus confiou a Emílio Moura uma parcela dos documentos deixados pelo velho Alphonsus de Guimaraens. Emílio, a seguir, os repassou a Alphonsus de Guimaraens Filho. Emílio Moura havia publicado uma série de artigos sobre o nosso simbolista e tencionava escrever um ensaio sobre ele, mas acabou desistindo do projeto.

Capítulo especial poderia ser dedicado à sua convivência com Cristiano Martins, poeta, ensaísta e tradutor. Homem austero e comedido, reservado ao extremo, acompanhava sempre Emílio às livrarias e aos campos de futebol. Somente depois de anos de ida aos estádios (Emílio a glorificar o Clube Atlético Mineiro), é que o poeta descobriu que Cristiano Martins torcia pelo América Futebol Clube.

Não posso omitir que Emílio Moura guardava especial apreço pelos escritores novos, aos quais tratava com afeto, abertura e alto nível de atenção, como se fossem velhos conhecidos. Tinha horror, sim, de jornalistas que, intencionalmente ou por displicência, deformavam o seu pensamento.

Daí a legião de amigos que Emílio Moura colecionou ao longo da vida. Quanto a mim, cultivei sua presença por 18 anos de convivência quase diária. Ninguém esteve tão próximo de mim nas pompas e desastres da vida. Interagimos em momentos cruciais de nosso destino. Quando nos afastamos geograficamente e fui para o exterior, tive dele cartas e manifestações. Acompanhei sua enfermidade a distância, sempre sonhando com o reencontro pessoal, o que não foi possível.

Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 6 - nº. 11 - maio de 2007