Revista Diversa

Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 5 - nº. 11 - Maio de 2007

Educação

Obcecados por uma meta

Algumas das principais experiências educacionais em curso no país nasceram na UFMG

Qualquer um que tente reunir, em poucas páginas, o elenco de especialistas que saíram da UFMG para ajudar a mudar o rumo da história da educação no Brasil vai constatar rapidamente que essa tarefa é das mais ingratas. A Faculdade de Educação, por exemplo, celeiro natural de professores, possui uma lista considerável de docentes, sem contar os profissionais de outras unidades que priorizaram o ensino em seu percurso acadêmico. No entanto, há pelo menos um traço comum na biografia dessas personagens: todos trabalham – ou trabalharam – pela democratização do acesso à educação.

O compromisso com a escola pública, a idéia de inclusão e a aproximação com os movimentos sociais sempre estiveram presentes nos projetos pedagógicos que nasceram na UFMG. No caso da Faculdade de Educação (FaE), “as duas grandes marcas são a valorização e o compromisso com a educação pública e a inserção dos movimentos sociais como um campo de pesquisa fundamental”, ressalta a professora Antônia Vitória Soares Aranha, atual diretora da Unidade.

A professora lembra que duas experiências desenvolvidas na FaE – Pedagogia da Terra e Licenciatura Indígena – foram usadas como referência pelo governo federal para criação de dois projetos nacionais, atualmente coordenados pelo Ministério da Educação: Educação do Campo e Educação Escolar Indígena. Além disso, a FaE conta, hoje, com grupos de pesquisas em áreas como Educação de Jovens e Adultos, Educação Inclusiva e Ações Afirmativas.

A Faculdade de Educação da UFMG foi criada em meio a um turbilhão de mudanças no ensino brasileiro, provocado pela Reforma Universitária de 1968 e pela reestruturação do ensino básico, que desencadearam um movimento no sentido de se repensar a educação numa perspectiva crítica. Mais tarde, essa corrente seria consolidada em fóruns – como a Associação Nacional de Pós- Graduação e Pesquisa em Educação e as Conferências Brasileiras de Educação –, que chegaram a reunir de três a quatro mil educadores.

Engajamento Formado em Ciências Sociais, mestre em Ciência Política pela UFMG e doutor em Políticas de Educação pela Stanford University, Miguel Arroyo lembra que não só os cursos de graduação e de pós-graduação da FaE mas de várias partes do Brasil adotaram, na época, uma postura engajada. A partir dessa linha, o movimento dividiu-se em duas tendências: uma, de análise crítica da Educação a partir do Estado autoritário, e outra, a partir dos movimentos sociais. “Eu me identifiquei mais com a segunda linha, porque a intenção era a de destacar as contribuições dos movimentos sociais para a reformulação do sistema educacional brasileiro e as políticas públicas de educação”, revela Arroyo, Professor Emérito da FaE.

A Faculdade de Educação não passaria incólume por esse caldeirão. O seu mestrado começou a receber uma grande quantidade de candidatos oriundos de movimentos sociais, o que o obrigou a redefinir seu programa. Arroyo frisa que a pós-graduação na Unidade se tornou uma espécie de “fronteira” com outros cursos, ao abrigar docentes de Medicina, Arquitetura, Comunicação e Direito, entre outros.

Escola Plural Segundo o professor Arroyo, a FaE teve papel crucial, também, em outro processo de transformação do ensino: o da rede pública municipal. Em 1993, ele foi convidado pela Prefeitura de Belo Horizonte para conduzir a implantação de nova proposta político-pedagógica. Ao assumir a empreitada, Arroyo constatou que havia solo fértil para mudanças, porque as escolas já estavam muito marcadas por experiências nascidas na UFMG e era dotada de professores politizados, qualificados e com perfil inovador.

Ele percebeu que, em vez de partir dos problemas, precisaria se dedicar às soluções já experimentadas pelos professores em suas escolas. Daí nasceram os eixos do que viria a ser a proposta da Escola Plural, que recebeu esse nome, segundo Arroyo, justamente para dar conta da pluralidade de dimensões que compõem a formação do humano.

Nesse ambiente de novas idéias, surgiu a proposta mais polêmica: a substituição da velha lógica seqüencial, marcada por reprovações e traumas, por uma organização em ciclos, que respeita os tempos de formação. Calejado pelos anos dedicados à educação, o professor Arroyo garante que não se surpreendeu com a violenta reação à novidade. “Ainda há uma cultura muito arraigada e uma visão muito seletiva, antidemocrática e meritocrática do ensino no Brasil, que não é concebido para garantir o direito à educação, mas para classificar e segmentar os jovens. A prova é a síntese disso”, critica Arroyo.

Da Rússia para Minas

Acervo Projeto República/1970
Helena Antipoff, pioneira na psicologia educacional na UFMG (1970)
Helena Antipoff, pioneira na psicologia educacional na UFMG (1970)

A preocupação dos educadores da UFMG com a inclusão começou antes mesmo de a FaE existir. Em 1929, uma professora russa chegou ao Brasil, a convite do governo mineiro, para colaborar na reforma do ensino vigente à época e começou a lecionar Psicologia na recém-criada Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte. Na bagagem, ela trazia as conclusões de suas pesquisas realizadas na Rússia, França e Suíça.

Em 1940, Helena Antipoff fundou, na ainda UMG, a cadeira de Psicologia Educacional, que foi absorvida pela FaE, em 1968, por ocasião de sua criação. Assim como Antipoff, muitos outros educadores, médicos e religiosos da época estavam preocupados com as crianças excepcionais e, juntos, criaram a Sociedade Pestalozzi de Belo Horizonte. A entidade tinha a missão não só de cuidar dessas crianças, mas também de auxiliar os professores de classes especiais. Mais tarde, a Pestalozzi inaugurou a Escola Fazenda do Rosário, em Ibirité, para educar crianças excepcionais ou abandonadas, usando os métodos da Escola Ativa, proposta pedagógica baseada na expressão espontânea dos alunos.

A partir dessa experiência, a professora desenvolveu várias pesquisas, principalmente nas áreas de educação especial e rural. Ela defendia o envolvimento de alunos e professores em atividades práticas como os serviços domésticos e do campo. Além disso, a pedagogia semeada por essa educadora, diferentemente do tradicional modelo de competição, era fundamentada num ambiente de cooperação.

A par da psicologia experimental, a educação excepcional e rural, a professora Antipoff também deixou uma importante contribuição para a descoberta e o incentivo dos “bem-dotados”, alunos talentosos, que, muitas vezes, ficavam escondidos ou apagados no seio da população pobre e do meio rural, por falta de oportunidade.

A obra deixada pela professora emérita da FaE/UFMG é tão rica que deu origem ao Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff e à Fundação que também leva seu nome, em Ibirité, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde foi instalado um museu em memória dela. Esses documentos testemunham todas as grandes questões que inquietaram a professora Helena Antipoff.

A física que todo mundo leu

Os desafios impostos aos estudantes pelo modelo tradicional de ensino sempre atormentaram professores de diversas áreas. A física, uma das disciplinas mais complexas do currículo escolar foi alvo, a partir da década de 1950, de um movimento internacional que visava a simplificar o ensino da matéria. No Brasil, Beatriz Alvarenga, professora formada em Engenharia Civil pela Universidade de Minas Gerais foi uma das responsáveis por revolucionar o estudo dessa disciplina. Ela publicou, juntamente com o também professor da UFMG, Antônio Máximo, o livro Curso de Física, espécie de best-seller dos livros didáticos.

Anos antes, porém, de deixar essa marca na educação brasileira, a professora Beatriz dava aulas de física em dois colégios, na Escola de Farmácia e, mais tarde, no Colégio Universitário, criado na UFMG para dar aos alunos base para o vestibular. Como muitos outros docentes da época, ela se sentia incomodada com as condições de trabalho vigentes. “Os laboratórios dos colégios eram muito ultrapassados e não havia livros didáticos adequados ao ensino da matéria, porque as obras continham, basicamente, descrições de aparelhos e trabalhavam muito pouco a parte conceitual da ciência”, relembra a professora.

Ela recorda que, na época, o ensino das Ciências estava no centro das discussões em vários países. Uma das iniciativas que canalizaram essa preocupação no Brasil foi o 1º Encontro sobre o Ensino da Física realizado nos anos 1950 pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São Paulo. A idéia era aprimorar a visão dos educadores em relação à ciência nas salas de aula. Segundo Beatriz, esse encontro foi determinante para mudar a concepção dos professores que participaram do evento. “Descobrimos que era preciso dar mais ênfase à parte experimental, nos fenômenos da física, e mostrar as aplicações da Ciência e sua importância para outras áreas do conhecimento”, constata.

Beatriz Alvarenga também aponta outros dois momentos decisivos para a aplicação da física em sala de aula: o lançamento do Physical Science Study Committee (PSSC), nos Estados Unidos, e a criação de uma comissão específica nessa área pelo International Union of Pure and Applied Physics (IUPAP), com sede na França, que comanda, até hoje, as maiores pesquisas na área no mundo. Esses comitês dispunham de verba para financiar programas, contratar cientistas, publicar livros e treinar docentes.

Os primeiros profissionais que haviam feito pós-graduação em Física no exterior voltaram ao Brasil fascinados com aquelas idéias inovadoras. “Foi uma luta inglória e absurda pôr as idéias em prática. Nossos professores tentaram aplicar o que aprenderam nos Estados Unidos e isso era impossível. No Colégio Universitário, nós usamos tudo do PSSC: laboratório, filmes de qualidade, material novo. Era muita pretensão mesmo”, diz ela, ao reconhecer o fracasso da experiência. “A gente percebeu que o Colégio Universitário absorvia uma parte muito pequena dos alunos que precisavam de tudo aquilo. Os professores do Colégio Estadual, coitados, todos entusiasmados com aquilo, tentavam usar, mas não conseguiam. Na verdade não era aplicável nem nos Estados Unidos, porque era muito caro e poucas escolas podiam manter aquilo.”

A professora Beatriz viu de perto o fracasso da experiência do PSSC, no próprio berço, quando esteve nos Estados Unidos. Ela fez questão de visitar escolas de regiões mais pobres do país e constatou que nelas os professores também não conseguiam aplicar o programa. Na volta, concluiu o que, hoje, parece óbvio: o Brasil precisava produzir seus próprios livros.

Apostila mimeografada Embalado por essa certeza, o projeto do livro Curso de Física foi ganhando forma. Sua primeira versão foi uma apostila mimeografada produzida pelo Centro de Ensino de Ciências e Matemática, vinculado à FaE. “Rodamos 700 cópias e acabou tudo. Os alunos ficaram sabendo e foram lá querendo mais. Imagina bater tudo de novo, fazer todos aqueles desenhos. Aí decidimos fazê-lo numa editora”, revela a professora.

É difícil encontrar alguém que não tenha estudado no Curso de Física, de Antônio Máximo e Beatriz Alvarenga, obra em três volumes, que passou por três editoras – na última está na sexta edição – e lida por milhares de estudantes. O livro traz exercícios simples, muitas ilustrações e aplicações da física no dia a dia. De acordo com a professora Beatriz, as edições são alteradas freqüentemente e, recentemente, eles condensaram a obra em apenas um volume, a pedido das escolas públicas, que não tinham condições de suportar o custo do livro em três partes nem a carga horária necessária para aplicá-lo.

Aos 84 anos, Beatriz Alvarenga desenvolve um trabalho voluntário em seu escritório. Ela recebe alunos, professores e até leigos curiosos interessados em entender a física. Seus “brinquedinhos”, como ela define as engenhocas que construiu, são inspirados em peças de museus científicos, e podem ser aplicados em atividades lúdicas relacionadas à ciência. Entre óculos de plástico, lâmpadas, miniaturas e caixinhas de música, ela prova que ensinar Física depende mais de criatividade que de recursos mirabolantes.

Muito além de juntar letras e palavras

Não basta juntar letras para formar palavras e reunir palavras para constituir frases. Essa habilidade deve vir acrescida da capacidade de compreender o que se leu, de assimilar diferentes tipos de textos e de estabelecer conexões entre eles. Chama-se letramento a noção ampliada de leitura e escrita, que se constitui numa grande preocupação daqueles que se debruçam sobre o ensino da língua portuguesa.

Foca Lisboa
Magda Becker Soares foi responsável pela difusão do conceito de letramento
Magda Becker Soares foi responsável pela difusão do conceito de letramento

Uma das mais respeitadas especialistas no assunto é a professora Magda Becker Soares, da Faculdade de Educação. Considerada a precursora das pesquisas sobre letramento no Brasil, ela escreveu mais de 20 livros sobre o ensino do Português – entre eles Letramento: um tema em três gêneros, Alfabetização e Letramento e Português: uma proposta para o letramento –, que se tornaram referências obrigatórias para professores e pesquisadores da área.

Apesar de alvo de vários estudos, o conceito de letramento ainda não foi incluído em todos os dicionários nem na linguagem da mídia, porque só recentemente conquistou adeptos no país. Para se ter uma idéia, nos anos 1970 a Unesco já havia recomendado o uso da expressão “analfabetismo funcional” para designar quem sabe apenas ler e escrever, sem conseguir utilizar essas técnicas no diaa- dia. No Brasil, só se passou a usar essa terminologia a partir de 1990.

Magda Soares, ressalta, porém, que letramento não é um conceito novo, mas, no entanto, apenas o reconhecimento de um fenômeno social que era ofuscado por outro problema: o analfabetismo. Segundo a educadora, depois que o analfabetismo diminuiu no país, os professores perceberam que era hora de atingir outro patamar. “A escola tem que ensinar a criança ou o adulto a fazer uso da tecnologia da leitura e da escrita. O aluno precisa entender o que leu, saber ler diferentes gêneros de textos, avaliar, refletir e questionar”, explica a professora.

Para entender o tamanho do desafio nessa área, no Brasil, a autora recorre a uma análise feita pelo Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF), realizada para avaliar os níveis de letramento da população brasileira, compilados no livro Letramento no Brasil, lançado pelo Instituto Paulo Montenegro/IBOPE e a ONG Ação Educativa. O estudo revela o abismo que ainda existe entre a alfabetização e o letramento dos brasileiros.

Ceale Na tentativa de socializar o conhecimento produzido pela Universidade nessa área, a professora Magda Soares fundou, em 1990, o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), na Faculdade de Educação. O núcleo desenvolve projetos integrados de pesquisa sobre a alfabetização e o letramento, bem como sobre problemas relacionados à prática da escrita e leitura. O Ceale elabora projetos para as redes públicas de ensino e participa da Rede Nacional de Centros de Formação Continuada e Desenvolvimento da Educação, criada pelo Ministério da Educação, para aprimorar a formação continuada de professores no Brasil. Além disso, integra o grupo de trabalho responsável pela análise dos livros de língua portuguesa, distribuídos para as escolas públicas do país pelo Programa Nacional do Livro Didático.

Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 6 - nº. 11 - maio de 2007