Revista Diversa

Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 5 - nº. 11 - Maio de 2007

Artigo

Compromisso com a ciência e a ética

Ramayana Gazzinelli
Professor emérito do Instituto de Ciências Exatas da UFMG e membro da Academia Brasileira de Ciências

A atividade científica depende de uma estrutura complexa que envolve pessoas bem qualificadas, laboratórios, bibliotecas, agências financiadoras, mas também certos hábitos e valores, que são transmitidos de geração em geração e que constituem a tradição científica de uma sociedade. A formação de cientistas só pode ser realizada, de forma quase artesanal, por outro cientista num ambiente que cultiva esses valores e mantém esses hábitos.

O realce de Francisco de Assis Magalhães Gomes (1906-1990) na história de nossa Universidade prende-se a sua luta para a criação desse ambiente nas ciências físicas em nosso Estado. Muito apropriadamente, é considerado um pioneiro das ciências físicas em Minas Gerais, apesar de não ter sido ele um pesquisador — um cientista stricto sensu.

A Escola de Minas de Ouro Preto, onde Magalhães Gomes diplomou-se, em 1928, não oferecia o ambiente a que nos referimos antes nas, assim chamadas, ciências exatas, como também não ofereciam outras instituições do país. Como primeiro aluno de sua turma, Magalhães Gomes foi agraciado com o prêmio de uma viagem à Europa. Devido às circunstâncias políticas, a merecida viagem não foi realizada e ele não pôde realizar suas expectativas de aperfeiçoamento num avançado centro de estudos. Arguto, era ciente da insuficiência de sua formação para realizar pesquisa científica e iria dedicar a parte mais produtiva de sua vida a criar o ambiente necessário ao desenvolvimento das ciências físicas e da tecnologia nuclear em nossa terra. Diante da resistência e incompreensão que, muitas vezes, encontrava, dizia a seus colegas: “Não podemos condenar esses moços à mesma formação acanhada de que fomos vítimas”.

Numa visão rápida, podemos dizer que as ciências exatas eram praticamente inexistentes no Brasil antes da criação, em 1934, da Universidade de São Paulo e de sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Uns poucos cientistas europeus convidados a integrar seu corpo docente plantaram sementes para o desenvolvimento dessas ciências no Brasil. Estudantes mais brilhantes, que tinham ido para estudos de pósgraduação nas melhores universidades norte-americanas e inglesas, ao retornarem depois da Segunda Guerra Mundial, começaram a constituir uma pequena comunidade de cientistas.

Raros nomes despontaram em matemática, física e química, antes dessa época, mas mesmo esses não chegaram a deixar obra reconhecida internacionalmente nem formaram discípulos que prosseguissem seus trabalhos. Pesquisas em ciências naturais e geografia estiveram, de forma esparsa e limitada, presentes no país desde o século XVIII. Destaca-se, entre essas, a notável e aventurosa viagem exploratória (1785- 1792) do médico baiano Alexandre Rodrigues Ferreira, cujos resultados foram reunidos no livro Viagem Philosophica. Algumas instituições científicas foram criadas desde o Reinado de João VI, esparsas no país, muitas vezes efêmeras, e de qualidade variável. A criação do Instituto Soroterápico de Manguinhos, em 1900, com a participação de Osvaldo Cruz, representou um marco para as ciências biológicas e da saúde, com conseqüências importantes para a ciência de Minas Gerais. Osvaldo Cruz, tendo-se aperfeiçoado no Instituto Pasteur de Paris, associava o combate aos problemas de saúde pública do país à pesquisa em ciência básica. Seguia a norma de Pasteur, segundo a qual, não há ciência pura e ciência aplicada, mas apenas ciência e aplicações da ciência.

Um grupo de professores procurou reproduzir, em Belo Horizonte, a experiência paulista e fundou, em 1939, a nossa Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Nela, Magalhães Gomes foi professor de Física Superior e de Física Teórica. A Faculdade, no entanto, ao contrário de sua congênere paulista, funcionou de maneira bastante precária, por ter um meio mais acanhado. Ela dedicou-se, nos primeiros anos, à formação de professores para o magistério secundário, ficando a pesquisa científica completamente ausente de suas atividades.

Até o final da década de 1940, a pesquisa nas ciências exatas continuava inexistente em todo o Estado. Podem ser citados alguns nomes, louváveis, tendose em vista a agrura do meio, mas que, de fato, praticaram a ciência de forma bissexta e não constituíram grupos de pesquisa. Nessa época, Geologia e Mineralogia já contavam com pesquisadores de relevo – não podemos deixar de mencionar Djalma Guimarães – e as ciências biológicas começavam a se firmar.

No Brasil, vários fatos relacionados à ciência ocorreram após a Segunda Guerra Mundial. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) foi fundada em 1948, mais de um século depois de suas congêneres da Inglaterra, Alemanha e EUA. No ano seguinte, criou-se no Rio de Janeiro, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, independente da Universidade, que, por seus hábitos e valores arcaicos, era um entrave à pesquisa científica. O Conselho Nacional de Pesquisas, de cujo conselho deliberativo Magalhães Gomes fez parte, foi fundado em 1951, com o objetivo de apoiar a pesquisa científica e o desenvolvimento da energia nuclear.

Acervo Projeto República UFMG/1970
Magalhães Gomes, pioneiro da pesquisa nuclear no país
Magalhães Gomes, pioneiro da pesquisa nuclear no país

Foi nesse contexto histórico que Magalhães Gomes liderou, em 1952, a organização do Instituto de Pesquisas Radioativas, na Escola de Engenharia de nossa Universidade. O Instituto deveria integrar as diferentes ciências e técnicas da área de energia nuclear, com o objetivo de desenvolver, no Estado, a produção e a utilização da energia nuclear, desde o levantamento geológico dos depósitos de urânio, sua purificação e metalurgia até, possivelmente, projetos de reatores nucleares. Podemos perceber nessa organização a visão – hoje se diria holística – de Magalhães Gomes.

Simultaneamente à instalação de laboratórios, iniciou-se um programa de formação de pessoal, com a criação de um curso de pós-graduação em Engenharia Nuclear, com estudantes bolsistas em tempo integral e o incentivo a membros do quadro para estudos e estágios em outros centros do país e do exterior. O Instituto consolidou-se pela instalação, em 1962, de um reator nuclear para treinamento de engenheiros nucleares e produção de radioisótopos.

Magalhães Gomes foi membro da Comissão Nacional de Energia Nuclear de 1962 a 1965, quando, desgostoso com atos arbitrários da ditadura militar, se afastou das atividades relativas à energia nuclear. Isso, no entanto, acabou dando- lhe oportunidade para prestar outro serviço à ciência em Minas Gerais, tão importante quanto o primeiro. Foi dos mais ativos membros do pequeno grupo de catedráticos que apoiou o Reitor Aluísio Pimenta em sua luta para instalar os Institutos Centrais de Biologia, Física, Matemática, Química e Ciências Humanas e, dessa forma, dar início à Reforma Universitária na Universidade.

As congregações das antigas faculdades pretendiam fazer um corte impensável numa Universidade moderna, limitando os Institutos Centrais à pesquisa e mantendo o ensino a cargo das faculdades. Houve todo tipo de resistência à transferência de laboratórios e acervos bibliográficos, que precisou ser vencida com argumentação paciente e persistente. Somente em 1968, esses problemas acabaram sendo vencidos por meio de decretos que aboliram as cátedras, reorganizaram as universidades em departamentos, declararam a inseparabilidade de ensino e pesquisa, criaram um sistema formal de pós-graduação e realizaram, finalmente, a Reforma Universitária, num modelo bem próximo do que era defendido por setores mais modernos do magistério superior.

Não se pode deixar de mencionar, ao lembrar Magalhães Gomes, que foi um homem das duas culturas – homem de ciência e homem de letras – membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Mineira de Letras. Humanista completo, não apenas no plano intelectual, engajado politicamente, democrata com elevado sentido de justiça social, foi um dos signatários do Manifesto dos Mineiros, contra a ditadura Vargas. Opôsse, também, à ditadura militar de 1964, garantindo um ambiente de relativa liberdade no Instituto que dirigia. Não se pode deixar de recordar seu caráter amigável na vida diária: esposa e filhos o amavam e os amigos mais próximos tinham grande afeição por ele. Os êxitos de professores mais jovens e estudantes eram sempre ampliados por seu julgamento generoso. Nos cargos que ocupou na Universidade sempre demonstrou ser a tolerância um de seus valores mais elevados.

O eixo da ética de Magalhães Gomes, relativa à sua visão de mundo como homem da ciência e da técnica, revela-se no pequeno trecho de um artigo de sua autoria publicado sob o título Humanismo e Tecnologia, que encerra essa curta nota biográfica:

“O filósofo, o humanista, o cientista podem continuar na sua torre de marfim para contribuir com as meditações que façam no seu gabinete, na sua biblioteca, no seu laboratório, para aumentar e enriquecer a inteligência e o espírito do homem. Essa torre, porém, deve ter uma janela de onde se observa o mundo e uma porta para, quando a ocasião o exija, eles participem das agruras de seus irmãos e os sirvam com sua sabedoria e seus conselhos. Compete a todos correrem o risco e a responsabilidade da condição humana. No convulsionado mundo de hoje, o engajamento não é só um imperativo moral, é também uma contingência.”

Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 6 - nº. 11 - maio de 2007