Revista Diversa

Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 5 - nº. 11 - Maio de 2007

Artigo

Um bravo e insubmisso professor-cientista

João Amílcar Salgado
Professor Titular de Clínica Médica e pesquisador de História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais

Em 2007, comemoramos o centenário de três símbolos da ciência mineira e brasileira: o scholar Amílcar Vianna Martins, o venerando Instituto Ezequiel Dias, onde Martins se iniciou como cientista, e a histórica cidadã Berenice, paciente inaugural da doença de Chagas, encaminhada, em 1961, pelo mesmo Martins, para completo estudo clínico na UFMG. Demais, ora se dá o 80o aniversário desta Universidade, onde Martins se graduou em 1929, num dos períodos em que a Faculdade de Medicina apresentou a Minas e ao Brasil inigualável plêiade de docentes e egressos. Tratarei, aqui, da magnífica figura do primeiro aniversariante, sendo os outros apreciados em textos separados.

Em meu livro de memórias, O riso dourado da vila (2003), descrevo o Amílcar Martins que conheci. Foi ele o primeiro luminar da ciência com quem conversei, quando recebi dele palavras de estímulo e de orientação, às vésperas do exame vestibular. Nos meus 17 anos de idade, observei: “Como um célebre catedrático pode ser assim tão simples, tão amigo e tão bondoso?” A seguir, nesse livro, refiro vários episódios de sua vida, dos quais seleciono aqui o caso da invasão da Faculdade em 1968, bem como seu entusiasmo com a criação do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, que, no presente ano, também aniversaria, festejando seus 30 anos.

Em 3 de maio de1968, no mesmo dia em que, na França, a Sorbonne foi ocupada pelos estudantes, houve a ocupação de nossa Faculdade pelos estudantes de medicina. O diretor, em contraste com a atitude pró-estudantes dos diretores das demais Faculdades, autorizou a entrada das forças de repressão para desalojar os alunos. Só não houve resultado sangrento em virtude da intermediação de três heróicos docentes: Amílcar Vianna Martins, José de Noronha Peres e Carlos Ribeiro Diniz. Assim, a revolução estudantil de 1968, que, de modo inédito, explodiu, quase simultaneamente, em vários países: França (Sorbonne), EUA, México (Tlateloco), Alemanha e Brasil, teve em Belo Horizonte esse episódio digno de um livro exclusivo. E os nomes desses três desassombrados cientistas devem ser lembrados com todo o carinho, por não terem medido conseqüências, no instante em que, sem vacilação, decidiram posicionar-se ao lado da juventude conflagrada. E o ex-expedicionário Amílcar Martins – ali, esguio, determinado e grave, em meio ao gás lacrimogêneo, aos estilhaços de vidro e ao som de tosses, gritos e bombas – se via no segundo campo de batalha, depois do primeiro, na Itália. Sim, era-lhe o mesmo teatro de luta, apesar da distância de décadas, pois o inimigo, sem dúvida, era também o mesmo: o redivivo cadáver do nazi-fascismo!

Quando foi criado o Centro de Memória, Martins veio nos aplaudir e, freqüentemente, aparecia para conferir a rápida expansão do acervo, oferecendo várias sugestões – uma delas a de que cuidássemos também das memórias do Instituto Ezequiel Dias e da Faculdade de Farmácia. Um belo dia, ele chegou mais apressado e nos disse: “Se vocês não documentarem o que, de fato, ocorreu em Minas por ocasião da campanha da Fundação Rockefeller contra a ancilostomose, a criação deste Centro terá sido em vão.” Podemos dizer que, hoje, em seu centenário, temos reunidos os principais dados da resposta a seu forte desafio, embora nos faltem pormenores – naturais obstáculos de desmemória, adrede colocados ao longo das décadas.

Certo dia, Amílcar Martins nos observou que o acervo de Borges da Costa, seu sogro, talvez fosse o menos dilapidado. Com o auxílio dele próprio, de sua esposa, dona Beatriz, dos irmãos desta e dos discípulos Haroldo Pereira, Alisson de Abreu e Paulo Lodi, bem como com o precioso apoio de José Caetano Cançado, foi inaugurada a Sala Borges da Costa, em 1980. Parecia que a elite político-intelectual mineira estava ávida por uma oportunidade como essa. Era o desejo reprimido de abrir uma fresta de velhos bons tempos sob o céu de chumbo da ditadura. Bem antes do horário, chegou Tancredo Neves e logo começou a confabular pelos cantos. Depois vieram os outros, muitos dos quais, mais tarde, engrossariam a campanha das “Diretas já”. De fato, não é exagero dizer que, naquela inauguração, nasceram o inacabado governo estadual e o frustrado governo federal de Tancredo. Na preparação deste último, participei dos arranjos para a saúde e a educação, quando Amílcar Martins aceitou ser o mentor, sem qualquer cargo, de inovadora política de pesquisas para o país. Incluía recursos ilimitados à pesquisa básica e aplicada, vigoroso estímulo à precoce iniciação científica e meios inteligentes para impedir que o financiamento de projetos lesasse a autonomia universitária.

Em nossas conversas, a cada dia era maior a surpresa oferecida por sua sintonia com a ciência e com a medicina em geral, bem assim por sua preocupação com os destinos da humanidade. Parecia que nada ficava fora do alcance de seu espírito sagaz, sempre permeado de ética. Recusava-se, entretanto, a prometer livro de memórias ou a escrever sobre pessoas ou instituições, até que, de tão cobrado, nos presenteou com o delicioso texto sobre a história do Instituto Ezequiel Dias, publicado pela Fundação Ezequiel Dias. Deveríamos terlhe cobrado outras e outras páginas de informação inestimável. Exemplo disso seria nos relatar a disputa pelo Centro Acadêmico, na Faculdade, quando o forte grupo da Turma de 1927 – Kubitschek, Nava, Behrens, Rafael Santos – deixou espaço para sua liderança. Temos um flagrante dessa transição na revista Semana Illustrada, de 21 de abril de 1928, que traz uma foto do simpático quintanista, circundada pelo texto intitulado Uma palestra com Amílcar Martins, candidato à presidência do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina. Sua primeira frase surpreendeu o entrevistador: “Como candidato, nada prometo fazer. É original, confesso. Mas é o resultado imediato de minha sinceridade.” Este já era o criador de várias frases memoráveis.

O atual coordenador do Centro de Memória da Medicina, Ajax Pinto Ferreira, coincide ser um dos ex-ocupantes do prédio da Faculdade em 1968 e um dos que o fizeram paraninfo da turma de 1971. Assim, no final de 1971, a Faculdade de Medicina era um dos focos antiditadura mais vigiados do país e a reação contra a eleição de Amílcar Martins para paraninfo foi imediata. O então novo diretor chamou os formandos para convencê-los de que aquilo era loucura. Não obtendo êxito, sugeriu, então, que a solenidade ocorresse sem discursos. Os formandos não cederam e o que os repressores não queriam aconteceu: Amílcar Martins falou. Favoreceu tal desfecho o fato de que o reitor era o médico e parasitologista Marcelo Vasconcelos Coelho, destemido discípulo de Amílcar Martins e o melhor reitor desta Universidade desde Otaviano de Almeida.

Seu discurso é verdadeiro tapade- luva nos ouvidos – e nos diversos gravadores de som do auditório –, prontos para, depois, retaliar, explorando desaforos, diatribes e provocações, provindos de quem era mais temido que conhecido. Em vez disso, ouviram serena e belíssima lição de moral.

Nos mesmos dias desse emocionado discurso, estava sendo preparado o 8º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, a ser realizado em nossa Faculdade, em fevereiro de 1972. Para conhecer como foi montada cerrada barreira contra qualquer manifestação antiditadura, basta examinar o programa oficial, onde aparece uma singular “Comissão de Honra”. Nela, entre apropriadas autoridades civis e eclesiásticas, surge, vigilante e ameaçador, o nome de três generais, um brigadeiro e um coronel, além do chefe da delegacia do Serviço Nacional de Informações. Na extensão de todo o programa e com tanta honra distribuída tão generosamente, brilhava pela ausência, e com intenso brilho, o nome da principal figura em Minas relacionada à medicina tropical: o nome do bravo e insubmisso – professor, cientista, patriota e humanista – Amílcar Vianna Martins.

Acervo Centro de Memória da Medicina/UFMG
Carteira de identidade estudantil do aluno Amílcar Vianna Martins (1927)
Carteira de identidade estudantil do aluno Amílcar Vianna Martins (1927)
Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 6 - nº. 11 - maio de 2007