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Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 7, nº 13 - fevereiro de 2008

Artigo

Os índios, inclusive

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Luciana Rothberg Vieira

Maria Inês de Almeida
Professora da Faculdade de Letras da UFMG e coordenadora do Eixo Múltiplas Linguagens, do Curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas (Fiei), e do Núcleo de Pesquisas Literaterras

O Curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas (Fiei), iniciado na Faculdade de Educação (FaE) em 2006, traz para a Universidade um novo pensamento sobre as formas de inclusão social. Primeiro, porque propõe um ensino sem modelo e padrões pré-estabelecidos. Será que o saber deve ser sempre extraído do mesmo lugar? A razão ocidental é a única dona da verdade? Não seríamos mais ricos e felizes se pudéssemos igualmente viver na diferença?

Tais questões surgiram ao tentarmos responder à demanda colocada pelas lideranças indígenas de Minas Gerais, em 1999, por uma formação de nível superior para seus estudantes. Com isso, ao longo dos últimos sete anos, fomos construindo uma proposta de curriculum (etimologia trajetória), não como grade, mas como “percurso”, resgatando a pedagogia na acepção de caminhada com o mestre. Os projetos de pesquisa, antes intervenções sociais, de educação na comunidade, orientam os percursos e são as linhas-mestras que dão rumo aos percursos acadêmicos. Isto faz toda a diferença na formação intercultural de educadores indígenas.

Estruturamos o curso em torno dos percursos acadêmicos – as inúmeras atividades curriculares dos alunos e dos eixos temáticos –, as grandes áreas de atuação dos envolvidos nos projetos Escola e seus sujeitos, coordenado por Lúcia Helena Alvarez (da Faculdade de Educação); Conhecimento socioambiental, coordenado por Ana Maria Gomes Rabelo (também da FaE) e José Antonio de Deus (Instituto de Geociências); Múltiplas linguagens, coordenado por Maria Inês de Almeida (Faculdade de Letras). Cada eixo conta com quatro monitores, pesquisadores em pós-graduação. Esta equipe, mais a coordenadora-geral, Márcia Spyer Resende, e os monitores da Secretaria de Educação de Minas Gerais, têm caráter permanente, até que se implante institucionalmente o curso.

A vida acadêmica é regida por um colegiado, composto paritariamente por representantes de todos os setores, e pela Assembléia, realizada todas as semanas nos momentos intensivos presenciais do curso: etapas de maio e setembro, quando todas as atividades se concentram no campus da UFMG. Os discentes são das etnias Xacriabá, Krenak, Maxakali, Pataxó, Kaxixó, Xukuru-kariri, Aranã. Convidados em sua maioria entre os professores da UFMG das diversas unidades, os docentes são contratados com recursos do Programa de Apoio à Implantação e Desenvolvimento de Cursos de Licenciatura para Formação de Professores Indígenas (Prolind)/MEC – que supre grande parte dos gastos. A Secretaria de Estado de Educação, as fundações Nacional do Índio (Funai), Nacional de Saúde (FNS) e Universitária Mendes Pimentel (Fump) são parceiras que garantem a infra-estrutura básica necessária para as etapas do curso.

A experiência com os índios tem propiciado uma reflexão significativa aos estudantes e pesquisadores da UFMG, no sentido de que antevemos com ela a possibilidade de o Brasil transpor o grande fosso entre rural e urbano, favela e asfalto, oral e escrito, selvagem e científico – exemplos da separação que existe entre os mundos. O que chamamos intercultural é uma ponte que se constrói para ampliar os caminhos do conhecimento. E de qual conhecimento estamos tratando? Não apenas o dos livros, mas sobretudo o do universo. Daí que a universidade possa ser compreendida como a escola que abarca todas as formas – não a que torna universal uma forma.

Portanto, a idéia de inclusão que queremos semear com o Fiei é a de que não se inclui para uniformizar, mas para permitir que qualquer tipo de pessoa tenha condições de inscrever sua singularidade no campo dos saberes que conduzem a sociedade nacional. A finalidade do ensino é chegar ao mestre, que vai sempre mais adiante, por isso o caminho não tem fim e por isso também nós, os professores universitários, seremos os maiores beneficiados, caso os caminhos se abram. Ao formar educadores interculturais, experimentamos uma metodologia adequada à inclusão das diferentes formas de pensar e de fazer ciências, que servirá afinal para garantir a permanência de estudantes diferentes nos demais cursos da Universidade.

Cada um dos 141 professores indígenas, que nos acompanham nos percursos por eles apontados, tem a oportunidade de trazer para o saber universitário um traço marcante de sua aldeia, o que constitui um enorme laboratório de criação para os grupos de pesquisa envolvidos com o curso. Exemplo: ao longo de seus primeiros semestres de formação, o professor Itamar Krenak realizou um filme que lhe permitiu exercitar a escrita da língua krenak e o desenho e aprender a manipular computador e editores de imagens. Por meio da animação, ele revelou aspectos da vida numa mata atlântica que não existe mais, em um ritual de caça. Este filme vai alimentar uma série de estudos em torno da relação entre o ambiente, a linguagem, a nutrição, o sonho, a escola.

Já os professores Pinheiro, Isael e Rafael Maxakali escrevem um livro para “ensinar os médicos brancos a lidarem com os doentes maxakalis”. Para isso, mobilizamos um grupo de especialistas que se propôs a assessorá-los ao longo de inúmeras oficinas de registros, escrita, tradução, leitura, edição e ilustração, na tentativa de sistematização e publicação de aspectos importantes da medicina tradicional maxakali. Toda a equipe tem experimentado o mais alto nível de compreensão sobre os processos de adoecimento e cura que, se não são universais, acontecem com todos que, hoje, se vêem invadidos e em conflito com culturas dominantes, como a representada pela medicina baseada na farmacologia.

O que gostaríamos de ressaltar é que, com a entrada de grupos étnicos e sociais diversificados na UFMG, temos a esperança de que os pobres do Brasil (Isaac Ashaninka, docente indígena do Fiei, trouxe-nos a reflexão sobre a riqueza de ser pobre numa sociedade de consumo. Pensemos no devir pobre, louco, índio, mulher, negro, criança: não são estas as saídas do homem livre?) possam ter um laboratório em que tenham a oportunidade de produzir a experiência de transformar a falta em suplência. Não se trata de ajudá-los a acompanhar o modelo científico, já que eles seriam “tão defasados”, mas de, com a ajuda deles, percebermos as vantagens da outra lógica que preside a paisagem brasileira e que sempre esteve do lado de nossos mestres: Oswald de Andrade (“Só a antropofagia nos une”), Mário Schenberg (“A Física brasileira do futuro virá pelos atabaques da África”), Oscar Niemeyer (“...fazendo-a em curvas, de forma a permitir que a vegetação nela penetrasse, sem a separação ostensiva da linha reta”), Haroldo de Campos (“...que pelo torto fiz direito que quem faz cesto faz cento”) e Paulo Freire.

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