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Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 7, nº 13 - fevereiro de 2008

Vanguarda

Admirável Mundo Novo

ANA MARIA VIEIRA

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Tiago Megale

É fato que, para a ciência, não faltam meios para extrair deduções ou delinear cenários de um tempo futuro sobre questões diversas. É mesmo provável que na simulação desses mundos possíveis caibam a arte, a natureza e o comportamento humano. Dela, porém, ausenta-se a própria ciência, pois falar sobre futuro, para esse campo, significa criar ficções. A qualquer momento, um caminho que se percorre pode sofrer mudanças decorrentes de novos paradigmas, condições de produção ou configurações políticas e técnicas, e todas as projeções se esvaem.

Mas se estranhamente não é possível identificar tudo o que ainda não se sabe, vislumbram-se fortes tendências sobre um modo de fazer ciência, que, progressivamente, se mostram presentes na Universidade: o trabalho colaborativo em redes internacionais de pesquisa e a convergência entre áreas disciplinares no enfrentamento de problemas complexos.

Cidades, clima, sistemas orgânicos, genética, consciência, computador biológico ou o comportamento da matéria em escalas inimaginavelmente grandes e pequenas são apenas algumas dessas questões identificadas como complexas. Presentes na natureza e em sistemas artificiais, englobam conjuntos tão extensos de variáveis que sua compreensão não é tarefa de um homem só, ou de disciplina única.

“A pesquisa do futuro é inerentemente multidisciplinar e interdisciplinar”, projeta Carlos Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordenador dessa modalidade de investigação na Capes. Reconhecendo, em entrevista concedida ao Boletim da UFMG, o crescimento desse modo de operação em programas de pós-graduação e grupos de pesquisa em todo o país, Nobre ressalva, no entanto, que “há um longo caminho a ser percorrido para tornar a qualidade dessa pós-graduação realmente excelente”.

Entre as exceções figuram trabalhos da equipe do departamento de Física relacionados a investigações de temas de fronteira complexos. Capazes de abrir caminhos para diversos campos do conhecimento, elas envolvem temas que abrangem desde a nanociência e a ótica quântica até os estudos de hidrodinâmica e de biofísica, que incluem pesquisas interdisciplinares sobre o DNA e os processos de fagocitose. “Nessas áreas, os trabalhos têm impacto na literatura mundial e a UFMG está à frente de qualquer universidade brasileira”, observa Alaor Chaves, professor do departamento de Física.

O dinamismo do grupo pode ser exemplificado pelas repercussões da pesquisa em área portadora de futuro, a nanociência – especialmente na síntese de nanotubos de carbono e em suas aplicações que abrangem tanto a indústria aeroespacial como nanodispositivos contra a hipertensão e o câncer. Uma das mais recentes patentes do grupo é o biocompósito formado por gel de colágeno e nanotubos, destinado a implantes ósseos e à engenharia de tecidos. Projeto essencialmente multidisciplinar, o biocompósito contou com a parceria das áreas de Fisiologia, Odontologia, Morfologia, Biofísica e Química.

Para além do esforço de desenvolver produtos nanoestruturados, a comunidade científica do setor encontra-se diante do desafio de compreender, em nível básico, o comportamento da matéria na dimensão nanométrica – um bilionésimo do metro. Acredita-se que apenas a partir do desvendamento dessa fronteira será possível criar produtos com características consideradas revolucionárias. Desafio correlato do grupo da UFMG consiste no aperfeiçoamento da técnica de síntese de nanotubos de carbono em escala industrial, para viabilizar a disseminação dessa nova classe de materiais.

Corrida científica

Um aspecto estratégico da pesquisa em nanociência para o desenvolvimento tecnológico do país pode ser verificado pela corrida científica na área, estimulada por projeções de recursos que alcançarão, até 2014 em todo o mundo, 2,4 trilhões de dólares ao ano, para produtos nanoestruturados. A oportunidade torna-se mais evidente diante do fato de o Brasil ser responsável por apenas 2% da ciência e 1% da tecnologia mundiais, conforme dados do Instituto para Informação Científica (ISI) e do Escritório de Patentes e Marcas dos Estados Unidos.

Apesar da baixa participação nacional no cenário mundial de inovação científica, estudo divulgado no ano passado sobre depósito de patentes das universidades brasileiras entre 1979 e 2004, realizado por Luciano Póvoa, então doutorando em Economia pela Faculdade de Ciências Econômicas (Face), indicava que as instituições nacionais “atuam em áreas de alta tecnologia, contribuindo significativamente para produção do conhecimento tecnológico em biotecnologia e química orgânica”.

Este cenário é mais evidente na Universidade, pólo avançado no campo de biotecnologia. “Atualmente, a Instituição detém o maior número de patentes entre as universidades federais, e 51% delas são da área de biotecnologia”, relata o professor do departamento de Química, Rubén Dario Sinisterra, diretor da Coordenadoria de Transferência e Inovação Tecnológica e pró-reitor adjunto de Pesquisa.

“O campo de fronteira de maior expressão entre os especialistas da UFMG, na área de Biologia, é o genoma”, reforça Paulo Sérgio Beirão, professor do departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB). Parte das biotecnologias advém desse campo. É por esse motivo que a elaboração de biomateriais, de vacinas e de produtos transgênicos como a insulina e as formulações de fármacos e kits diagnósticos integram lista dessa modalidade de pesquisa de grande repercussão na UFMG, conforme indicam os dados sobre patentes.

O mérito acadêmico da área convive, por sua vez, com a indução de investimentos públicos em C&T específicos para ela e outros segmentos considerados de maior competência e que propiciam grande retorno ao país. Segundo Sinisterra, diagnósticos realizados pelo governo estão abrindo caminhos para as universidades baseados no incremento da pesquisa em nanotecnologia, biotecnologia, biocombustíveis, energias alternativas e tecnologias ambientais. A hipótese decorrente da ação diretiva do poder público é que áreas de fronteira da Instituição podem estar sendo consolidadas e estimuladas por mecanismos de financiamento portadores de impactos social e tecnológico.

Desmonte da matéria

Exemplo extremo e inverso da questão do financiamento da pesquisa de ponta incide em áreas que os físicos denominam estudos do muito pequeno, e que hoje alcançam o bilionésimo do átomo. “A investigação do universo do muito pequeno é um processo de desmonte da matéria e a Física se encontra longe de alcançar o limite teórico nesse campo”, diz Alaor Chaves. Os experimentos ocorrem em aceleradores de partículas, cujo custo de manutenção anual pode atingir a cifra de 400 milhões de euros. Um dos mais sofisticados encontra-se instalado em Genebra, na Suíça. A engenhoca, de formato circular, possui 8,5 quilômetros de diâmetro, dimensão que soa paradoxal para algo associado a um universo tão diminuto.

A aquisição de máquinas similares é inviável para países como o Brasil. O fato, provavelmente, repercute na pesquisa básica praticada aqui. A UFMG conta com reduzido número de pesquisadores nessa área – também considerada de fronteira. Desenvolvendo investigações marcadamente teóricas, eles conseguem, no entanto, compartilhar dados com grupos internacionais, que dispõem de tais equipamentos.

Por outro lado, existem áreas avançadas que comportam promessas mais imediatas para aplicações tecnológicas, porém se articulam de modo mais lento. Na UFMG, é possível identificar esse cenário entre pesquisas sobre células-tronco. Um dos poucos grupos existentes realiza experimentos visando a produzir biomateriais com essa classe de célula. O trabalho reúne pesquisadores da Biologia e da Engenharia de Materiais. “Podemos expandir as investigações nessa área”, observa Paulo Sérgio Beirão.

A outra via

Países como o Brasil, que ainda possuem um sistema imaturo de inovação científica e tecnológica, sofrem, historicamente, com fatores adversos na produção da pesquisa. Uma lista bastante conhecida incluiria a baixa interação dos agentes de inovação – universidades, empresas e setor público –; a timidez dos investimentos financeiros para projetos, a escassez de recursos humanos e infra-estrutura laboratorial; a excessiva burocracia alfandegária para importação de material para a pesquisa, além da falta de uma cultura científica entre a população.

Se o panorama se mostra desfavorável para a investigação nos moldes tradicionais, quais seriam os grandes desafios oriundos da produção mais avançada, envolvendo temas de fronteira?

“Os projetos dos pesquisadores são julgados nas agências de fomento pelos pares da própria área. Logo, questões que transcendem campos específicos encontram dificuldades para aprovação”, destaca um deles, o professor Virgílio Fernandes Almeida, do departamento de Ciência da Computação. Uma hipótese sobre as conseqüências dessa prática é que temas multidisciplinares estejam, na prática, sendo desestimulados pelas agências oficiais, pois a avaliação dos projetos induz os pesquisadores a focalizar investigações em suas áreas. O imperativo publish or perish (publique ou pereça) existente no meio exige dos especialistas o desenvolvimento contínuo de pesquisas. Logo, eles não conseguem fugir das regras do jogo disciplinar.

“Os problemas difíceis requerem abordagens múltiplas, mas os temas de pesquisa continuam sendo atacados pelas disciplinas, e o trânsito que procuramos entre elas ainda não predomina na Universidade”, reforça Virgílio Almeida. Experiência recente do professor mostra, no entanto, que há brechas no sistema oficial de fomento na formação de comitês de pesquisa multidisciplinares destinados a confrontar questões complexas. Em 2006, ele participou de exercício proposto pela Sociedade Brasileira de Computação (SBC), em que a entidade solicitou a especialistas apontar desafios para a área até 2016. O processo contou com apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e foi aberta chamada pública para identificação dos problemas de fronteira para a computação no Brasil. Um ano após a realização do evento, o MCT lançou edital para financiar pesquisas sobre os cinco temas selecionados.

Um dos aspectos inovadores das propostas residiu na identificação do acesso participativo e universal dos brasileiros ao conhecimento, como um desafio científico da área. Aparentemente um problema da esfera política, ele remete à pesquisa sobre a interação homem-computador e ultrapassa questões de acesso aos equipamentos. “Absorver populações heterogêneas no processo informacional é um problema tecnológico de difícil resolução, mas é do ponto de vista do resultado que ele deve ser visto como uma questão de fronteira”, reflete Virgílio Almeida.

Atentos a uma série de dispositivos eletrônicos no cotidiano das pessoas, especialistas se perguntam como desenvolver aplicações e serviços para grupos populacionais de perfis econômico, cultural e educacional diversos, garantindo-lhes o que denominam acesso participativo. Esta última palavra é a chave para compreender a complexidade do problema. “Isso significa que a construção do conhecimento não viria apenas de quem projeta esses meios, mas também de quem os utiliza”, explica o professor da UFMG. Um desafio real, quando se sabe que pelo menos 15% da população brasileira é analfabeta.

Ainda segundo a avaliação do pesquisador, o desafio é tipicamente nacional, mesmo que ele ressalve não considerá-lo exclusivo do país. A questão foi provocada pelo coordenador de iniciativa correlata promovida nos Estados Unidos pela National Science Foundation (NSF), que desejou saber em que aspectos os problemas brasileiros diferiam dos deles. Para Virgílio Almeida – um dos dois estrangeiros convidados a participar do esforço norte-americano, em 2003 –, a diferença inclui tanto o acesso participativo como o desenvolvimento de sistemas de computação e informação que colaborem na proteção ambiental da Amazônia. “Os norte-americanos também possuem desafios nesse campo, mas na Amazônia eles se encontram concentrados”, esclarece.

A questão abrange o que os especialistas denominaram como gestão da informação em grandes volumes de dados multimídias distribuídos, na lista da SBC. As investigações se destinam a recuperar informações sob a forma de imagem, texto, voz e vídeo. Suas repercussões para o meio ambiente deverão ocorrer a partir do desenvolvimento de microssensores que, instalados em aviões de monitoramento, captem informações distribuídas, posteriormente, para uma rede. O conjunto dos dados permitiria identificar, por exemplo, a diminuição de espécies – procedimento hoje inviável com informações provenientes de satélites. A UFMG possui núcleos bastante estruturados e com trabalhos de repercussão na área.

Os demais desafios para os cientistas da computação no país são compartilhados por grupos internacionais de pesquisa. Um tema relevante trata dos impactos da transição do silício para novas tecnologias, incluindo a nanotecnologia, os computadores biológico e quântico. A questão consiste em analisar como os programas serão projetados para conviver com dispositivos que não se encontram estabelecidos. Outro tema da lista de desafios é a modelagem computacional dos sistemas complexos artificiais, naturais e socioculturais e da interação homem-natureza. Trata-se de recurso considerado imprescindível para a ciência moderna, já que põe em interação extensa gama de variáveis de um problema a partir do qual se pretende simular desdobramentos.

Outra linha de pesquisa aponta para o desenvolvimento tecnológico de qualidade, com sistemas disponíveis, corretos, seguros, escaláveis, persistentes e ubíquos. As investigações destinam-se a estudar, por exemplo, como os sistemas de computação presentes em todos os lugares podem aumentar seu grau de confiabilidade, evitando quedas e fraudes no funcionamento. Mundialmente, o tema ganhou destaque devido à necessidade de os governos prevenirem ações terroristas. Nessa área, a Universidade possui grupos de reconhecida competência na comunidade científica internacional.

O fator trans A conjunção dos campos de conhecimento para explorar espaços entre as disciplinas é, sob outra vertente, fato recorrente na história da ciência e, modernamente, produziu áreas interdisciplinares como a bioquímica, a biofísica e a geofísica. Freqüentemente, a estratégia de diálogo entre os especialistas que participam desse processo de interação tem sido a de recortar os problemas em fatias dos saberes.

“Percebo a Química em processos da Fisiologia, mas é necessária prudência para reconhecer no outro uma grande competência”, reflete Rubén Dario Sinisterra, que desenvolve pesquisas sobre nanodispositivos para o setor farmacêutico, em parceria com especialistas de outras áreas. Ele considera, no entanto, que essa interação requer de seus protagonistas conhecimentos sólidos do próprio campo. “Na pesquisa multidisciplinar o químico se torna mais químico, e o biólogo, mais biólogo”, exemplifica.

Para o professor Ricardo Valério Fenati, do departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), a questão encerra um paradoxo, pois frente ao acúmulo do conhecimento essa repartição é geradora de avanço. Muitas vezes, explica, o pesquisador abre mão de um interesse mais amplo e assim contribui em maior medida com o deslindamento de um tema, pois canaliza sua atenção em certa direção.

Sob outra perspectiva, questões complexas ou de fronteira põem a nu o que Fenati denomina de “pressão dos objetos de conhecimento contra as repartições disciplinares”. Ele observa que o desejo de transdisciplinaridade – um passo além das contribuições inter e multidisciplinares – se instala com a percepção da existência desses objetos em terreno anterior à visão disciplinar e que estão obstaculizados por ela. “A idéia é encontrar um método de trabalho que consiga romper essa barreira disciplinar e criar conceitos que atravessem as áreas. É uma tarefa dificílima”, reflete.

Segundo avaliação de Paulo Sérgio Beirão, a própria transdisciplinaridade é um problema de fronteira entre os pesquisadores. “Como enfrentar questões recorrendo a diferentes modos de olhar, diferentes tecnologias e métodos e encontrar uma solução que leve em conta essa multiplicidade?”, indaga.

Desafio nessa linha provavelmente já pode ser encontrado na UFMG, com a convergência de alunos das áreas de ciências exatas e biológicas no curso de doutorado em Bioinformática. Conforme relata Beirão, eles vivenciam choque de culturas produzido por formações disciplinares. “Linguagens e modos de pensar são diferentes entre esses campos”, diz. Um dos aspectos mais evidentes é a dificuldade dos grupos em compreender suas heranças acadêmicas: enquanto a Física busca extrair, na maior parte, leis gerais sobre a natureza, a Biologia se dedica a saber qual a vantagem de um organismo ser como é. “Provavelmente, a única teoria geral da Biologia é a da evolução das espécies”, diz Beirão.

“Apesar da política de flexibilização curricular adotada pela UFMG, parte dos alunos sai da Instituição com conhecimentos restritos da sua área”, constata Virgílio Almeida, referindo-se à dificuldade enfrentada pelos doutorandos de Bioinformática. Ele acredita que a alternativa para formar alunos com visão mais ampla sobre os problemas seria estender à graduação os projetos multi ou transdiciplinares do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat). “É mais fácil propiciar essa experiência múltipla nos estágios iniciais da formação”, diz Almeida. Essa avaliação é endossada por Fenati, para quem é preciso que os projetos do Instituto tenham repercussão curricular.

Investir nessa linha e na flexiblização curricular corresponde também à visão de Paulo Sérgio Beirão sobre o problema. Ele observa que a idéia de profissão, presente na origem da univesidade brasileira, tornou-se anacrônica. “A cada dia, surge uma nova profissão e deveríamos nos organizar para uma capacitação mais abrangente das pessoas”, ressalta.

Reflexo dos tempos, a busca por transdisplinaridade está semeando o diálogo em torno da criação do primeiro curso de graduação sob esse signo na UFMG: Inteligência Artificial. Trata-se de um arranjo acadêmico que envolverá a Fafich, por meio dos departamentos de Filosofia e Psicologia, e o ICEx, através do DCC. Sua proposta de criação está no escopo do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), com 40 vagas em oferta e previsão de início em 2010.

Um golpe nos alicerces da torre de marfim

O ataque terrorista ao World Trade Center, em Nova York, em 2001, produziu repercussões imediatas e poucas vezes imagináveis para a pesquisa nos Estados Unidos. Naquele ano, uma série de ações dos segmentos político e científico foram lançadas para estimular investigações que beneficiassem a defesa nacional. “Rapidamente, surgiram núcleos para estudar questões que iam da robótica à medicina”, relata Virgílio Almeida.

A flexibilidade mostrada pelas universidades norte-americanas, que responderam com rapidez a questões postas pela sociedade, residia exatamente na liberdade de organizar e desfazer núcleos de pesquisa multidisciplinar. Segundo o professor da UFMG, o objetivo dessas organizações é responder com maior agilidade a evoluções nos campos de conhecimento, sob o foco do governo, mas também dos pesquisadores. “Não há como mudar cursos para atender a essas transformações, mas é possível reagir a elas por meio de pesquisas”, analisa.

O modelo norte-americano não é inédito. Guardadas as proporções, historicamente, é curioso observar que a Europa, no século 17, também assistiu ao surgimento de grupos e instituições desejosos em produzir “conhecimento útil”, então ausente das estruturas rígidas das universidades. Organizadas sob as formas de sociedades científicas, academias, gabinetes de curiosidades, jardins botânicos, laboratórios e observatórios astronômicos, elas eram chamadas por Francis Bacon de “lugares e bases de cultura”.

Esses núcleos de pesquisa aglutinaram grupos de interesses e ofereceram “oportunidades para a inovação – novas idéias, novas abordagens, novos tópicos”, conforme analisa Peter Burke, em sua obra sobre a história social do conhecimento. Com o passar do tempo, a importância dessas estruturas independentes foi reconhecida pelas próprias universidades e pelos estados nacionais, que as absorveram ou simplesmente apoiaram-nas por meio de financiamento direto ou bolsas de estudo.

Outro exemplo histórico é revisitado pelo professor Francisco César de Sá Barreto, reitor da UFMG no período de 1998 a 2002. Junto com o colega do departamento de Física Alfredo Gontijo, prepara lançamento de livro com o título preliminar Universidade do amanhã, em que refletem sobre as mudanças experimentadas por essas organizações complexas e perguntam sobre tendências portadoras de futuro.

Lembram os autores que transformações são imprevisíveis e, para enfrentá-las positivamente, as instituições deveriam se estruturar sobre os eixos da flexibilidade e da diversidade. São essas dimensões que lhes permitirão relacionar-se e crescer de modo auto-organizado com a variabilidade do ambiente externo. As instituições do futuro, dizem os autores, são aquelas abertas às mudanças e que crescem em sua complexidade. Em sentido inverso, organizações rígidas e burocráticas tendem à extinção.

Esse é o modelo que os autores definem como a universidade do passado, situada no final do século 19, e associado à torre de marfim, ideal do saber puro e que definia com autonomia – confundida com soberania – suas áreas de conhecimento e conceitos auto-referenciados de excelência. Com o seu progressivo distanciamento da sociedade, esse sistema epistemologicamente fechado extinguiu-se, conforme escrevem os autores. Mas deixou como herança estrutura assentada sob “departamentos disciplinares operando pela lógica de cursos disciplinares”, na expressão dos professores Alfredo Gontijo e César Barreto.

De trilha a auto-estrada

O contraponto à experiência anacrônica seria a universidade do presente e se acentua quando, como assinalam, “a complexidade aumenta e a trilha vira auto-estrada”. Nesse contexto a relação entre o conhecimento e o produto nele baseado se estreita; amplia-se a demanda pela universalização da educação superior e, na seqüência, aumenta a pressão contra o isolamento da torre de marfim. A nova organização passa a submeter-se a imperativos de avaliação da sociedade. Porém, regulada pela lógica do mercado, expressa, cada vez mais, “a necessidade de fundamentar sua existência na excelência de indicadores”.

Nem sempre, no entanto, esses métodos expressam a real produção de conhecimento original nas academias. Exemplo apontado pelo professor César Sá Barreto é o método adotado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), referenciado no binômio avaliação-financiamento. “O sistema é produtivo, mas é preciso criar outro modelo que permita detectar o novo conhecimento, a criatividade”, reflete. Ele observa que o aspecto negativo do modelo adotado pela Capes é o fato de engessar os cursos de pós-graduação. Sua unidimensionalidade não comportaria a pesquisa multidisciplinar. Os programas cumprem metas na produção de teses e dissertações, mas não correm riscos. “Trabalha-se na linha de pesquisa que vai dar certo”, diz o professor. O resultado não é promissor, pois continua-se a caminhar na contramão da multidisciplinaridade.

O anacronismo representado pela lógica das organizações do passado – a estrutura departamental e cursos disciplinares – para abraçar formação ampla e questões complexas expostas pela ciência de fronteira também é objeto de crítica do professor Alaor Chaves. Um dos autores do projeto pedagógico da Universidade do ABC, ele lembra que a instituição possui três centros – Humanidades, Tecnologias e Ciências. Durante dois anos, o aluno passa por um ciclo fundamental, para então realizar a opção de curso.

As vagas, nessa etapa, são priorizadas a partir das notas obtidas por eles. Em contraposição ao modelo da universidade paulista, Alaor Chaves considera que, nas estruturas departamentais, as propostas curriculares permanecem enclausuradas, e quando a faculdade se confunde com corporações, como é comum na Europa, aumenta o anacronismo do ensino e da pesquisa. “Provavelmente, a melhor maneira de fomentar a colaboração em projetos multidisciplinares é a organização em centros”, reflete.

Fim dos departamentos

Experiências semelhantes aos núcleos norte-americanos também estão em curso na Europa. Na UFMG, o modelo que guarda maior similaridade é o da Faculdade de Letras (Fale), onde a estrutura departamental foi extinta em 2003. Entre as novidades surgidas estão os núcleos de estudos. “Formados por especialistas e alunos de diversas áreas, eles imprimiram novo dinamismo à pesquisa”, diz a professora Eliana Amarante, que, na direção da unidade entre os anos de 1998 e 2006, coordenou o processo de mudança organizacional.

As vantagens da nova estrutura se refletem no número de núcleos surgidos desde então: são 29, dedicados a pesquisas de caráter assumidamente, ou não, transdisciplinar. Conforme avalia Eliana Amarante, a transformação operada na Faculdade desburocratizou a administração e melhorou as condições de trabalho, pois repartiu recursos materiais e financeiros de modo igualitário entre os professores. A outra vertente de reorganização foi processada no currículo. A instituição implantou modelo de flexibilização proposto pela Reitoria. Nessa área, não há consenso sobre os resultados. “A proposta possui aspectos positivos, mas necessita de ajustes”, pontua Eliana Amarante.

Para o professor Marcus Vinícius de Freitas, a desvantagem das mudanças ocorridas na Fale é que, desvinculando docentes de seus departamentos, elas diluíram a correlação entre força de trabalho e sua produção. “Há desigualdade na distribuição de alunos entre os professores nas habilitações das áreas”, diz. Ele avalia ainda que a criação de campos de fronteira na pesquisa deveria ter como contrapartida nova responsabilidade didática para os professores.

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Revista Diversa nº 13
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