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Depois de título de notório saber, Ricardo Aleixo coordena curso na UFMG
As bougainvilles dão boas-vindas a quem chega à Estação Ecológica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no câmpus da Pampulha. Estão atrás de um portão de ferro que dá acesso a um ambiente arborizado que nem de longe parece uma sala de aula.
No entanto, não haveria lugar mais apropriado para abrigar uma pequena revolução no ambiente acadêmico. Na terça-feira (17/05), uma tarde de um dos outonos mais frios na capital, os cerca de 30 alunos sentam-se em roda para ouvir a professora do módulo no curso Saberes tradicionais – artes e poéticas ancestrais, Pedrina de Lourdes Santos, a capitã Pedrina do Reinado de Nossa Senhora das Mercês, de Oliveira. Oferecido pela Faculdade de Letras da UFMG, o curso está dividido em três módulos.
Antes de qualquer ensinamento, ela alerta que é preciso se conectar ao sagrado. “Negro reza, cantando”. E começa a entoar as toadas da tradição do Reinado – não são cantos nem cânticos, como enfatiza na primeira lição, são toadas.
O curso foi concebido e está sendo coordenado pelo poeta Ricardo Aleixo, que, desde 16 de dezembro de 2021, está apto a lecionar na universidade, quando recebeu o título de notório saber, equivalente ao doutorado. Ricardo é o primeiro escritor negro a receber o título de notório saber de uma universidade pública no Brasil. O escritor Nei Lopes recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidafe do Rio de Janeiro (Uerj) em março deste ano.
O título de notório saber concedido a Ricado Aleixo é um reconhecimento da contribuição intelectual do poeta, que completou 60 anos em 2021. Pesquisador da palavra em movimento, o poeta convidou para o curso “zeladores da palavra”, marcando posição em relação à força da tradição oral.
Ricardo estabelece a conexão entre os saberes popular e científico. Por entender o valor desse dois lugares, Ricardo, amplamente reconhecido por sua obra literária, fez questão de seguir os ritos acadêmicos. Apresentou um memorial que equivale a uma tese, em que apresentou aspectos biográficos e a memória de sua formação artística e intelectual. “Optei por escrever no formato do trabalho acadêmico. Tive como uma das bases um documento semelhante, elaborado, nos anos 1980, pelo maestro e compositor Gilberto Mendes”, afirma.
O maestro lecionava na PUC São Paulo. “Não tinha graduação, mas era o mais importante músico, era o decano da música de vanguarda no Brasil”, diz Ricardo sobre a referência.
No Memorial Artístico-Intelectual, como define o documento, Ricardo apresenta as referências bibliográficas e como foi a construção de conhecimento por quem não frequentou a escola formal. “Fui alfabetizado em casa, onde aprendi também caligrafia e a gostar de música. Tive aula de oratória com meu pai”, revela. Também listou as leituras que embasaram o processo de formação intelectual, o qual ainda esta em curso, conforme pontua.
A provocação da importância de Ricardo receber esse reconhecimento acadêmico foi feita pela professora titular da UFMG, Maria Aparecida Moura. “Ela sabia que eu já tinha dado aula de design sonoro por seis anos. No entanto, foi bem complicado. Eu não podia lançar nota, orientava trabalho de conclusão de curso, fazia tudo que um professor fazia, mas não podia assinar como professor.”
Em 2016, a comissão de notório saber constituída pela UFMG o procurou para convidá-lo a iniciar o processo. Ricardo considera que veio em um bom momento. “O modo que escolhi para me educar tornou-se obsoleto. Não temos pessoas que atuam no campo artístico e intelectual que, tendo oportunidade cursar desde a gradução até o pós-doc em arte, não tenham feito”, avalia. No entanto ele destaca que, no momento atual, o Brasil está bem-servido de formação acadêmica no campo das artes, mas não era assim quando ele começou a atuar como artista.
O memorial passou por várias comissões e por uma banca avaliadora até ter sido aprovado por unanimidade. Muito elogiado, o documento teve recomendação para ser publicado. “Queria fazer algo estritamente dentro do rigor acadêmico”, diz. Ricardo lamenta que não tenha passado pela arguição da banca. “Queria ter defendido, porque gosto do debate público e porque pude fazer uma leitura da minha obra e do que foi necessário para desenvolvê-la que não tinha tido oportunidade de fazer antes”, completa.
O poeta reconhece que teve muita obstinação para estudar por conta própria. Ricardo costuma contar que “fugiu da escola” antes de completar o ensino médio. Neste processo autodidata, contou com o apoio da irmã Fátima, que cursou letras na UFMG.
“De algum modo eu fiz o curso com ela. Foi a primeira vez que eu li teoria literária. Li livros de linguística, poética e semiótica. Tudo o que entendi que eu precisava para ser um escritor profissional , eu busquei. Sabia que não era fazendo o curso de letras, mas tinha que ter o repertório”, recorda-se. Então, montou,por conta própria um programa de estudos interdisciplinar que conflui com a linha de pesquisa ‘literatura, outras artes e mídia.
Curso ‘Artes e poéticas ancestrais’
Poéticas da voz é um assunto do interesse de Ricardo desde a infância. “Na minha casa sempre se cantou muito”, diz. Essa memória deverá fazer parte do livro “Campo Alegre”, da coleção BH. A cidade de cada um, que Ricardo está escrevendo. Ele cita para falar dessa atenção dada às poéticas da voz entrevistas que fez para o livro. “Tenho entrevistado as pessoas do bairro que são exímias contadoras de história. Elas ilustram com cantos, têm um gestual muito rico”, afirma.
Ricardo destaca que a maneira como as pessoas lidam com a palavra tem uma dimensão simbólica, estética, vocal, corporal, musical, cênica e espiritual. “Também tem a dimensão técnica que, em meu entendimento, é indissociável de tudo isso. Quando se escuta alguém, como a capitã Pedrina, entoando, procuramos entender não só como essas toadas foram criadas, mas como é que isso se dá como procedimento técnico ao longo do tempo”.
Interessa a Ricardo investigar como é o aprendizado da toada, por exemplo. “Uma roda é formada… a pessoa apura o ouvido, aprende a entoar, timidamente de início, ou alguém é chamado pela mais velha que diz ‘é assim que se faz’… Ou é também um ensinamento, quando vão buscar folhas no mato, e o mais velho diz ‘canta isso aqui'”.
Ricardo denominou conceitualmente de ‘zelação’ esses processos de troca da palavra em movimento. Ele lembra que zelação tanto denomina o fenômeno astronômico da estrelas cadetes quanto se aproxima do verbo ‘zelar’. “Quem são os zeladores? Quem são as zeladoras da palavra? Sempre entendi que a palavra não é apenas falada. Ela nos fala também”.
Para o curso, ele convidou para lecionar pessoas que zelam pela palvra. “A benzedeira zela pela palavra, e a palavra dela tem tanta força, que ela prórpia é a primeira a ser zelada por essa palavra que ela entoa”. Nos três módulos, Ricardo propõe que as pessoas estabeleçam relações com as palavras. “A palavra para nós, que viemos de outras terras, não é letra fria, letra mortal Para nós, ela é coisa viva, ela tem poder, ela tem energia e força. O curso nasceu dessa vontade de escutar os mestres e mestras falarem dos próprios ofícios”.
O curso será filmado, porque há assuntos que são fundamentos da esfera do sagrado. Mas cada mestre e mestra indicará o conteúdo que considera que pode ser apresentado para todo o público. Eles montarão performances, para que esse conteúdo seja registrado em vídeo. Parte das vagas do curso é destinada às pessoas das comunidades dos mestres e mestras.
Três décadas do primeiro livro
No sábado (21/5), das 11h às 15h, na Papelaria Mercado Novo, Ricardo Aleixo celebra os 30 anos do lançamento do livro de estreia, Festim – um desconcerto de música plástica. “Vou ler e comentar poemas – desse meu primeiro voo e dos livros que publiquei ao longo dos anos”, adianta. A ideia, com esse evento, é levantar recursos financeiros para publicar uma nova edição do Festim.
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