Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005

Editorial

Entrevista
Boaventura de Sousa Santos

Ações afirmativas

Mais perto da justiça social

Um conceito em evolução
Newton Bignotto

Pólos de Cidadania

Cidadãos de fato e de direito

A cidadania como possibilidade
Márcio Simeone

Medicação

Antídoto para a “empurroterapia”

Farmácia, medicamento e saúde pública
Edson Perini

Conhecimento

A ciência onde o povo está

A divulgação científica
como instrumento de cidadania Ramayana Gazzinelli

Cultura

Livros a mancheias

Extensão e universidade cidadã
Edison José Corrêa

Idosos

Anjos da guarda da terceira idade

Mais velho, Brasil quer ser mais cidadão
José Alberto Magno da Fonseca

Enfermagem

A dor e a alegria de ser Maria

Diversa

Expediente

 

 

ações afirmativas

Mais perto da justiça social

Programa Ações Afirmativas da UFMG desenvolve iniciativas para facilitar o acesso e a permanência de estudantes negros na Instituição

Assim que começou a freqüentar as aulas do curso de Pedagogia, Fernanda Silva de Oliveira sentiu que precisava de apoio para enfrentar as dificuldades que, para ela, iam além das vividas normalmente pelos calouros. Negra, pobre e com trajetória por escolas públicas, Fernanda encontrou o que buscava no Programa Ações Afirmativas na UFMG, em que se engajou desde o primeiro período. Passados dois anos, ela avalia: “Participar do programa mexeu com minha auto-estima e me deu condições de permanecer na Universidade em igualdade com meus colegas”.

Única negra de sua turma, Fernanda, 24 anos, também percebe o preconceito velado na Universidade. “Ninguém diz que é racista ou discrimina abertamente. O preconceito está presente em pequenas coisas, como numa discussão na sala de aula que não é levada para frente, porque toca em questões raciais”, afirma.

Para o ex-aluno, também da Pedagogia, Natalino Neves da Silva, 30 anos, o apartheid no ensino superior torna-se visível na comparação das condições de aprendizado entre alunos negros e brancos e na repetição de conflitos gerados pela ausência de identificação. “Levamos mais tempo para passar no vestibular, entramos entusiasmados na Universidade, mas, logo, notamos as lacunas na formação e nos deparamos com o mesmo sentimento de não-pertencimento, com a falta de referências de nossa identidade étnico-racial”, assinala Natalino, atualmente candidato a uma vaga no mestrado da Faculdade de Educação.

O programa Ações Afirmativas na UFMG, que tenta superar problemas como os vividos por Fernanda e Natalino, e, mesmo sendo um movimento recente na instituição, ainda assim, tem feito muita diferença na vida acadêmica de alunos negros. Ele vem trazendo à tona uma discussão política que se torna, cada vez mais, evidente e necessária na sociedade brasileira.

Acesso e permanência No final de 2001, um grupo de professores, pertencentes a três Unidades Acadêmicas da UFMG – Faculdade de Educação, Escola de Ciência da Informação e Centro Pedagógico –, deu início ao programa Ações Afirmativas ao participar do Concurso Nacional Cor no Ensino Superior, promovido pelo Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LPP/UERJ), em parceria com a Fundação Ford. Essa parceria, pioneira no país, estimulou a apresentação de propostas que buscavam facilitar o acesso ou a permanência de estudantes negros nas instituições públicas de ensino superior.

Conceição Bicalho

“Havia muitos projetos que pretendiam facilitar o acesso às universidades, mas queríamos cuidar de quem já estava lá dentro e que, nem por isso, tinha a segurança do diploma e de uma boa formação”, lembra a professora Nilma Lino Gomes, uma das idealizadoras e coordenadora do Ações Afirmativas na UFMG.

Numa disputa com quase 300 participantes, o projeto conseguiu ficar entre os 27 aprovados. A proposta privilegiou ações de estímulo à permanência dos negros nos cursos de graduação, visando à pós-graduação, a partir do fortalecimento do percurso acadêmico desses estudantes vindos de famílias de baixa renda. O financiamento do concurso, de R$ 60 mil, cobria os custos durante dois anos. Entretanto, o que era para ser projeto se transformou, em 2003, em Programa, com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão, firmando-se como uma proposta de ensino, pesquisa e extensão.

Com sede na Faculdade de Educação, o programa tende a crescer, avalia Nilma, o que realmente tem acontecido. Ele agrupa diferentes projetos, financiados pelo governo federal e pela própria UFMG, e tem pela frente novas propostas. No semestre passado, o programa Ações Afirmativas na UFMG expandiu suas possibilidades de atuação ao disputar e conquistar recursos provenientes do Ministério da Educação, no âmbito do programa de Ações Afirmativas para População Negra nas Instituições Públicas de Educação (Uniafro). Um total de R$ 200 mil vai custear o projeto Percursos e Horizontes de Formação – Ações Afirmativas para Universitários Negros, que engloba cinco propostas, amparadas em três eixos definidos pelo Uniafro.

Para atender ao eixo “formação de profissionais”, na UFMG, o programa propôs a realização de um curso de aperfeiçoamento para professores do Centro Pedagógico e da rede municipal de ensino, que trata da história da África e de culturas afro-brasilerias. Já em andamento, o curso é a evolução do projeto Identidades e Corporeidades Negras – Oficinas Culturais, que foi executado ao longo de 2003 e no ano passado. Ex-aluna dessas oficinas, Maria Edite Rodrigues, 46 anos, professora do ensino fundamental em duas escolas municipais na região de Venda Nova, está de volta à UFMG.

“Sempre tentei, nas aulas, abordar questões raciais, mas fazia tudo de forma muito intuitiva”, diz Maria Edite, contando que “a maior parte dos meus alunos é oriunda de famílias pobres e negras”. Mesmo trabalhando em escolas de periferia, onde as desigualdades sociais e raciais estão estampadas no rosto dos alunos, ela enfrenta com disposição as dificuldades de abordar temas ligados às diferenças. “As instituições resistem e silenciam-se”, assegura ela, “e os professores acabam abrindo mão, porque também não estão preparados”.

Identidade negra “As oficinas do Identidade e Corporeidades Negras me ajudaram a embasar minha prática”, destaca Maria Edite, que espera do curso de aperfeiçoamento um maior aprofundamento bibliográfico. “Eu sempre quis que as escolas pusessem a identidade negra em pauta e que o assunto não ficasse por conta apenas de professores que sofrem ou sofreram na pele problemas raciais. Com capacitação nessa área, vejo que começo a encontrar os argumentos que me faziam faltam e não trato mais sobre racismo na base só do sentimento”, afirma a professora.

Os professores das escolas públicas são ainda alvo do projeto de pesquisa Formando professores da educação básica para a diversidade, em que um grupo de professores é acompanhado em sua prática, na tentativa de se compreenderem percursos biográficos e profissionais daqueles que se têm mostrado mais abertos às questões raciais. “Já existe um consenso de que a escola discrimina. Queremos saber o que move e quais são as estratégias utilizadas por professores que têm uma prática diferenciada”, explica Nilma.

O segundo eixo do projeto aprovado pelo Uniafro será atendido com produção de dois vídeos, inicialmente batizados de O Greencard e Crianças Quilombola e Juventude Negra e Escola. O primeiro é sobre a vivência de crianças na comunidade de descendentes de quilombolas Brejo dos Crioulos, no norte de Minas Gerais. O segundo vídeo será realizado em parceria com o Observatório da Juventude, projeto coordenado pelo professor Juarez Dayrell, da Faculdade de Educação, e abordará a produção cultural de jovens negros que se mantém desconhecida ou é alvo de preconceito. “O foco será no ensino médio. Vamos colher as impressões desses jovens sobre o trabalho que realizam, como ele é visto nas escolas”, explica Nilma Gomes.

Saberes em conexão O Observatório da Juventude, projeto realizado na UFMG que implementa ações junto a jovens da periferia, também participa do Conexões e Saberes, proposta financiada pelo MEC e que envolve outras 11 universidades públicas. Com 25 bolsistas contratados pelo Ações Afirmativas, a idéia é a de travar um diálogo com jovens universitários e setores populares. As ações desenrolam-se no Aglomerado Santa Lúcia, Região Sul da capital, com um projeto de resgate de memória, e no bairro Icaivera, em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde está sendo feito um mapeamento de grupos culturais juvenis da região.

Acesso e permanência formam o terceiro eixo preconizado pelo Uniafro. Nesse caso, novos bolsistas – alunos negros – serão contratados para trabalhar em atividades de extensão do programa Ações Afrmativas na UFMG e para participar da pesquisa Memórias de gerações negras na UFMG. Coordenadora da pesquisa, a professora Inês Teixeira prevê um tortuoso caminho, pois faltam registros específicos sobre os negros na instituição. “Não temos o desenho final do projeto, mas nossa idéia é a de uma pesquisa de cárater qualitativo. Saberemos quem são os alunos e os professores negros que passaram ou estão na UFMG e qual foi a trajetória deles, os percalços para entrar e para ficar, as dificuldades e as conquistas”, explica.

Os recursos do Uniafro reforçam as diretrizes do programa Ações Afirmativas na UFMG, porém, desde o início, as atividades previstas voltam-se muito fortemente para o desenvolvimento da formação acadêmica e da capacidade crítica dos estudantes negros. Elas incluem cursos – produção de textos, leitura, informática, relações sociais na sociedade brasileira, história da África e outros –, seminários, conferências e simpósios. O objetivo é o de que, ao se envolverem com as atividades do programa, os alunos possam adquirir hábitos de estudo, domínio da sistemática de pesquisa e desenvolver a sensibilidade diante da realidade social, política e educacional dos negros brasileiros e constituir um espaço de reflexão sobre a construção da identidade negra.

O programa tem, também, a intenção de fomentar a inclusão dos alunos negros em projetos de pesquisa, ensino e extensão da UFMG, principalmente naqueles que tratam da questão racial no Brasil. São estratégias que levam ao aprimoramento acadêmico dos estudantes e que, igualmente, disseminam a discussão sobre as desigualdades no país. “Toda experiência é relatada e é importante que seja assim, porque estamos criando referências”, assinala Nilma Lino Gomes.

Teorias raciais Uma das ações do Programa resultou na formação de um grupo de estudos em torno do tema Teorias Raciais na Sociedade Brasileira. O grupo, formado por quatro alunos de cursos diferentes e que recebem uma bolsa do Programa de Aprimoramento Discente (PAD), produz textos e relatórios sobre as discussões e as pesquisas realizadas e apresenta o material em eventos acadêmicos. “É uma das formas que usamos para tornar a temática racial mais presente na Universidade”, atesta Nilma.

Segundo a coordenadora do programa Ações Afirmativas na UFMG, não é possível as universidades públicas e a sociedade continuarem a tratar as desigualdades raciais como um tema de menor importância. “É evidente”, diz ela, “que o acesso às instituições já é marcado por essas desigualdades, o que fica claro no processo seletivo dos vestibulares e no percurso dos alunos nas escolas públicas de ensino fundamental e médio”.

“Escolhemos trabalhar com o aprimoramento da formação acadêmica, porque no contato do dia-a-dia com os estudantes, as carências de formação são bem reais. E é incrível como os alunos respondem de forma extremamente positiva quando são estimulados e preparados para enfrentar as exigências do mundo universitário”, assinala Nilma: “É dever da universidade pública tentar diminuir os efeitos das diferenças e criar mecanismos para que esses alunos permaneçam na universidade, se formem e possam continuar se aprimorando”, complementa.

Conceição Bicalho

Avanços A existência do programa Ações Afirmativas, salienta a coordenadora, tem-se refletido não somente na maior integração dos alunos nos cursos de graduação, mas também na presença deles na pós-graduação. Desde 2002, cinco alunos negros foram aprovados em programas de pós-graduação na UFMG, na USP e na Universidade do Porto, Portugal.

“Pode parecer pouco, porém esse número é muito significativo, se comparado à situação dos negros na Universidade. É verdade que não temos estatísticas e esse é um dos problemas centrais do programa, mas sabemos que, historicamente, pouquíssimos continuam os estudos”, afirma Nilma, lembrando que o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) da UFMG mostrou, em 2001, que apenas 2% dos jovens negros entram para a universidade.

Esse dado, atesta Nilma, é alarmante e só reforça a necessidade de se debaterem, com mais urgência, as políticas públicas que visam a diminuir as desigualdades – particularmente em relação às instituições de ensino. Cotas raciais e as destinadas a estudantes de escolas públicas são defendidas pelos movimentos de ações afirmativas. “A maioria das instituições tem-se prendido à discussão do mérito quando trata do assunto, mas queremos ir mais longe. Quem consegue negar que a trajetória social e escolar de negros e brancos são muito diferentes? Que é preciso investir na educação básica é claro, porém a sociedade tem de apresentar soluções mais radicais e democráticas, que devem ser constantemente avaliadas”, salienta.

Ansioso por uma vaga no mestrado da FaE, Natalino da Silva garante que participar do Ações Afirmativas na UFMG mostrou-lhe o rumo que seguirá. “Um censo étnico-racial nas universidades vai mostrar o que sabemos, que os negros são uma minoria. Mas vai ajudar também a discussão política que o Brasil não pode deixar de fazer”, sustenta. Durante a graduação, ele percebeu que não teria como se aprofundar nos estudos se não priorizasse o curso. Largou um emprego de 12 anos e tornou-se bolsista do programa.

“Foi muito duro, porque a bolsa era bem menor do que o meu salário, mas precisava investir na minha formação”, recorda Natalino, integrante do movimento hip-hop na a década de 90. Ele afirma que na UFMG se deparou com os questionamentos que fazia a si próprio quando estudava em escolas públicas. “A diferença é que lá os professores mandavam a gente se calar e, aqui, vamos provocando as discussões”, compara.

Atualmente coordenador na ONG Núcleo de Trabalho e Integração Social, que atende a crianças de sete a 16 anos no bairro Mariano de Abreu, no leste da capital, Natalino acredita que seu trabalho ganhou força a partir do momento em que descobriu que as questões étnico-raciais são tão sociológicas e políticas quanto antropológicas. “É interessante ver a universidade tratando mais profundamente do assunto e tendo que responder a reivindicações muito concretas dos jovens que se sentem excluídos”, pondera.

Dívida social Segundo Nilma Gomes, apesar de mais divulgada, a temática das desigualdades sociais e, especialmente as raciais, tem um caminho muito longo até se firmar definitivamente no ambiente das universidades públicas. “O imaginário acadêmico na UFMG ainda está muito preso à questão do mérito atrelada à questão da qualidade da instituição. Ninguém que participa do Ações Afirmativas, negros ou brancos, quer uma universidade sem qualidade”, afirma Nilma. Ela acredita que, se a UFMG se abrisse mais à discussão, produziria um efeito muito grande nas universidades federais, porque é uma instituição de referência.

Para a professora Inês Teixeira, a dívida social brasileira e, em particular a dívida pura com os negros, não pode ser deixada para depois, porque é enorme e não vai se resolver somente com propostas, a longo prazo, de melhoria das escolas públicas ou de abertura de cursos noturnos. “As universidades públicas têm o dever de assumir soluções e o Ações Afirmativas nos aproxima da justiça social”, conclui a professora.

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