Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005

Editorial

Entrevista
Boaventura de Sousa Santos

Ações afirmativas

Mais perto da justiça social

Um conceito em evolução
Newton Bignotto

Pólos de Cidadania

Cidadãos de fato e de direito

A cidadania como possibilidade
Márcio Simeone

Medicação

Antídoto para a “empurroterapia”

Farmácia, medicamento e saúde pública
Edson Perini

Conhecimento

A ciência onde o povo está

A divulgação científica
como instrumento de cidadania Ramayana Gazzinelli

Cultura

Livros a mancheias

Extensão e universidade cidadã
Edison José Corrêa

Idosos

Anjos da guarda da terceira idade

Mais velho, Brasil quer ser mais cidadão
José Alberto Magno da Fonseca

Enfermagem

A dor e a alegria de ser Maria

Diversa

Expediente

 

 

Conhecimento

A ciência onde o povo está

Mais que mera vulgarização da ciência, a divulgação científica
pode ser campo fértil tanto para a descoberta de novos talentos
quanto para a reciclagem do conhecimento

Alimentos transgênicos, usos de células-tronco, mapeamento do DNA humano – na contemporaneidade, cada vez mais as descobertas da ciência são divulgadas para o grande público, principalmente pelo noticiário da imprensa. Como nem sempre as inovações podem ser desfrutadas por todos, muitas vezes, a ciência e os cientistas são vistos como seres inacessíveis. Essa visão distorcida da ciência é empecilho para que as universidades – centros por excelência da produção científica – dialoguem com a sociedade e, assim, possam cumprir seu duplo papel: fazer pesquisas de ponta, cumprindo o escopo da excelência, mas, sobretudo produzir conhecimentos que resultem em melhorias para as populações, tornando socialmente relevante o conhecimento produzido.

Conscientes dessa responsabilidade, pesquisadores da UFMG, de diversas áreas de conhecimento, apostam cada vez mais na produção compartilhada do conhecimento ao “levarem a ciência aonde o povo está”. Projetos de extensão desenvolvem estratégias para aproximar a academia da comunidade, por meio de caminhos os mais variados, que vão de iniciativas para repensar o ensino das ciências nas escolas de nível fundamental e médio a intervenções lúdicas para envolver as pessoas das mais diversas idades que, muitas vezes, nem se dão conta de quanto matemática, física, química, astronomia, biologia e outras ciências estão presentes no cotidiano.

Vlad Eugen Poenaru

Nessas atividades, protótipos da física, organelas, telescópios e uma série de equipamentos e instrumentos científicos são levados para além dos limites dos campi, num diálogo entre os mais diferentes saberes. A experiência sempre é emocionante – de um lado, os pesquisadores voltam revigorados e, de outro, a comunidade cruza as portas de um mundo absolutamente fascinante.

É o que acontece, por exemplo, no projeto A célula ao alcance da mão, desenvolvido pelo Museu de Ciências Morfológicas da UFMG, que criou uma coleção especial de peças anatômicas para possibilitar aos deficientes visuais aprenderem sobre o corpo humano até o nível microscópio. “Para nós, que somos pesquisadores de laboratório, é um ganho muito grande produzir conhecimento de outra forma: junto com os deficientes”, conta a diretora do Museu, Maria das Graças Ribeiro.

Contando, aproximadamente, 70 peças tridimensionais em gesso, a coleção foi feita em colaboração com os próprios deficientes, que testaram cada uma das reproduções de células, organelas celulares, vários tipos de tecidos, bem como os órgãos e sistemas orgânicos do corpo humano. Durante sua confecção, cada peça foi submetida à avaliação dos deficientes, que davam sugestões sobre como melhor representá-las. Algumas são réplicas em tamanho natural, mas outras são representadas em proporções bastante aumentadas. As peças despertam a atenção também dos videntes, possibilitando uma perfeita integração entre deficientes visuais, pessoas com subvisão e as dotadas de visão integral. “O poder agregador da coleção e da metodologia que utilizamos é uma experiência maravilhosa. É uma forma leve e lúdica de estudar ciência, a partir do toque das peças. A integração também é incentivada, porque todos utilizam o mesmo material”, conta Maria das Graças.

A maior surpresa para os pesquisadores foi justamente essa interação, uma vez que os deficientes, em função de sua aguçada percepção tátil, passaram a ajudar os colegas videntes. “Eles são altamente colaboradores, têm uma memória fantástica e grande paciência”, diz a diretora. Todas essas habilidades já haviam sido detectadas em 1989 no então aluno de Fisioterapia Luiz Edmundo Costa, que inspirou a criação das primeiras peças da coleção. Deficiente visual, o estudante sugeriu a idéia e colaborou na realização dela, para poder assistir às aulas de citologia e histologia geral no ICB. Atualmente, como fisioterapeuta no Hospital São Geraldo, ele acompanha várias das exibições da coleção em escolas e feiras. Aberta à visitação permanente no Museu de Ciências Morfológicas, em sua sede no campus Pampulha, a coleção A célula ao alcance da mão tem desenvolvido, também, intensa atividade itinerante. Pela segunda vez consecutiva, ela integrou a mostra da UFMG na Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, realizada entre 3 e 9 de outubro deste ano. Desta vez, porém, em local privilegiado: atendendo a convite, ela foi exibida no Congresso Nacional, em Brasília. Em dezembro, a coleção começa uma itinerância internacional, quando viaja para a cidade do México, onde poderá ser vista no museu Universum, da Universidade Nacional Autônoma daquele país. Feliz com mais esse convite, a diretora comemora: “O museu universitário é uma interface entre a produção do conhecimento e a divulgação científica. Essa é uma responsabilidade social de museus como o nosso”.

Olhando estrelas As ações de difusão científica permitem às pessoas tanto viagens ao mundo microscópio das células quanto explorações do macrouniverso. A astronomia que, juntamente com a matemática, foi uma das primeiras ciências a despertar a atenção dos homens, também é um convite à comunidade para se apoderar dos conhecimentos científicos. O Observatório Astronômico Frei Rosário, do departamento de Física da UFMG, é um dos espaços abertos à visitação pública, que tem, entre suas finalidades, trazer o universo ao alcance das pessoas e mostrar como a astronomia está presente nos fenômenos que nos atingem no dia-a-dia – seja um ciclone no Brasil, sejam furacões nos Estados Unidos ou tsunami na Ásia.

O Observatório fica na Serra da Piedade, município de Caeté, e recebe o público todo primeiro sábado de cada mês. Sua capacidade de atendimento é de 600 pessoas por visita, mas chega a receber um público de 800 até 1.200 visitantes semanais. As visitas são acompanhadas por professores e alunos-monitores, que, além de orientar as observações astronômicas, oferecem preleções sobre questões relacionadas à astronomia e à astrofísica.

No frio das noites da Serra da Piedade, os visitantes costumam ficar até a madrugada perscrutando os astros e ouvindo palestras sobre os mistérios do universo. O professor Renato Las Casas, do departamento de Física do ICEx da UFMG, aposta na experiência de fazer ciência em interação com o público leigo. “A base de desenvolvimento de uma nação é a cultura e cada vez mais a cultura científica torna-se relevante”, afirma. Para ele, as pessoas não precisam todas se tornar cientistas, mas um conhecimento na área de ciência é indispensável na contemporaneidade, tendo-se em vista que, a todo momento, as decisões nesse campo afetam o cotidiano. É o que acontece, por exemplo, com os produtos transgênicos. “Preocupa-me muito o fato de a ciência servir ao capital. A única solução para sair disso é a população ampliar seu conhecimento científico passar a exigir o que é melhor para si”, defende.

No entanto, a equipe do Observatório também leva os telescópios aonde as pessoas estão. Os equipamentos, de forma itinerante, vão ao encontro do mais variado público – das escolas de periferia aos shoppings centers, passando por praças e outros espaços públicos, na capital e em diversos municípios do interior de Minas. Como já aconteceu inúmeras vezes, neste mês de novembro, eles estarão montados na Praça Sete, no Centro de Belo Horizonte, para que as pessoas possam observar a aproximação do planeta Marte.

“Em muitos desses lugares, as pessoas pensam que não têm nada a ver com a universidade. Na Praça Sete, uma senhora simples olhou os telescópios e, depois, veio conversar com a gente, dizendo não saber que a Universidade tinha coisa que ela pudesse entender. Ela ficou tão fascinada que, tempos depois, foi ao Observatório com o genro e os dois netinhos”, conta o professor Renato Las Casas. Outra exposição acontecerá em Conceição do Mato Dentro, local de forte atuação de ambientalistas, quando, então, será ministrado um curso sobre astronomia e meio ambiente.

O professor Las Casas também amplifica os conhecimentos da astronomia pelas ondas da emissora UFMG Educativa/104,5 FM, onde apresenta um programa. Contudo, a expansão das atividades astronômicas da UFMG ganhou recentemente outro forte aliado. A Universidade adquiriu um planetário inflável de nove metros de diâmetro, que está em atividade desde o início deste ano. Transportável juntamente com as lunetas e os telescópios, o planetário reproduz, com grande fidedignidade, a abóbada celeste e o movimento dos astros, atraindo a curiosidade geral. Foi assim no 37o Festival de Inverno da UFMG, realizado em julho deste ano, na cidade de Diamantina, quando passaram pelo planetário, e participaram dos cursos e observações, cerca de 1.500 pessoas, entre crianças e adultos.

Porém, o sonho de dispor desse equipamento em instalação fixa, de grandes proporções, está perto de se realizar. Encarregada de administrar o Espaço de Ciência, a ser inaugurado, em Belo Horizonte, como parte do projeto Corredor Cultural da Praça da Liberdade, a UFMG terá, no local também, o seu planetário fixo, o que vai significar um grande impulso à prática astronômica em Minas Gerias. Dispondo de mais recursos e maior comodidade, o público poderá, ali, não apenas estudar, mas também sonhar com as estrelas. Afinal, não é à toa que a astronomia é chamada “a mais poética das ciências”.

Trecho de ilustração de Vlad Eugen Poenaru

Ciência divertida Conhecer e praticar ciência pode ser algo extremamente divertido. É o que vem demonstrando, desde 1986, o professor Eduardo Campos Valadares, cujas pesquisas o levaram a descobrir mil maneiras para transformar a física em uma atividade instigante e prazerosa. Foi assim que ele escreveu Física mais que divertida – investimentos eletrizantes baseados em materiais reciclados e de baixo custo, livro publicado pela Editora UFMG. Depois de grande repercussão no Brasil, essa obra, que reúne mais de cem experimentos e protótipos que podem ser feitos com materiais fáceis de encontrar, foi traduzida para o alemão e o inglês e, hoje, seduz também estudantes de outros países.

O começo de tudo foi a insatisfação do físico com os métodos didáticos tradicionais. Com eles, Valadares se sentia esgotado e sentia que os alunos nunca estavam sintonizados. “A Universidade é o lugar da inovação e eu queria realizar meu sonho de ensinar e divulgar a ciência”, diz. Foi quando ele começou a pesquisar experimentos que pudessem ser realizados com facilidade por crianças, adolescentes e adultos interessados em desvendar os mistérios da física.

Daí para a frente, foram inúmeras oficinas com professores, shows de ciência e exposições interativas em espaços públicos. A metodologia desenvolvida por Valadares tem sido adotada por outras universidades brasileiras. O professor, no entanto, defende que os projetos de divulgação da ciência poderiam ser ampliados se houvesse melhores condições para o atendimento às escolas no seu Laboratório de Divulgação Científica. A falta de uma melhor estrutura é um impedimento. “A demanda potencial é enorme, mas nem sempre temos meios de atendê-la”, aponta Valadares.

Outros pesquisadores têm percebido, também, que não basta ser competente apenas nas pesquisas; é fundamental encontrar meios criativos para a sua divulgação. É o caso do professor de química Alfredo Luís Mateus. Além de realizar exposições interativas que são levadas às escolas, o pesquisador vem utilizando recursos midiáticos para fazer a química chegar ao cotidiano das pessoas. Mateus é autor dos livros Química na Cabeça, pela Editora UFMG, e Construindo com pet, pela editora Fundação Ciência Jovem.

Juntamente com seus alunos, ele produz e apresenta o programa Rádio Ciência, que vai ao ar pela UFMG Educativa/104,5 FM. São esquetes curtos que, com linguagem simples falam, por exemplo, das reações químicas na cozinha. Em uma ação interdisciplinar, bolsistas dos cursos de Física, Belas Artes, Artes Cênicas e Comunicação produzem o quadro Momento Ciência, no programa Câmera Aberta, que vai ao ar pela TV UFMG, nos canais universitários 12 (Net) e 14 (Way). “Estamos tentando mudar o ensino de ciência de forma a apresentar os conceitos de maneira prática. Para isso, a gente tem de colocar a mão na massa”, argumenta. A grande contribuição advinda dessas atividades, na avaliação de Mateus, é o “olhar diferente” sobre o mundo. “Isso pode levar à inovação. Por exemplo, a pessoa pode utilizar uma garrafa pet para resolver um problema”, diz.

Quem tem medo de matemática? Desde os caldeus, primeiros astrônomos e matemáticos, até os dias de hoje, a motivação para fazer ciência não mudou. É o desafio, a curiosidade que levam a novos conhecimentos. E é justamente isso que a Olimpíada Mineira de Matemática (OMM) busca despertar nos alunos da rede pública do estado de Minas Gerais. Cerca de 4.000 escolas, 3.500 delas públicas, participam do projeto. “Procuramos apresentar aos estudantes a natureza do problema: a matemática é um desafio, não uma tarefa. Dessa forma, eles ficam naturalmente motivados”, afirma um dos coordenadores do projeto, o professor Seme Gebara Neto, do Departamento de Matemática da UFMG.

Nas suas atividades “olímpicas”, o aluno é incentivado a pensar, a refletir, a brigar com o problema de forma a eliminar o preconceito na busca de soluções, ressalta Neto. “Guardadas as devidas proporções, é a mesma postura de um pesquisador”, completa. A professora Janaína Ribeiro, em sua monografia de especialização que avaliou os impactos da Olimpíada, mostra o quanto os desafios propostos pela competição contribuem para a melhoria da autoconfiança e auto-estima dos alunos, que passam a ter um desempenho melhor na disciplina.

A Olimpíada Mineira de Matemática acontece desde 1997, de modo ininterrupto. Nela, são apresentadas aos participantes questões vinculadas a raciocínio lógico, criatividade, astúcia e demais habilidades requeridas pela disciplina. Os professores também são estimulados a repensar a forma de ensino da matemática. No Brasil, são realizadas, além da OMM, a Olimpíada Paulista de Matemática, a Olimpíada Brasileira de Matemática (OBM) e a Olimpíada Brasileira de Matemática em Escolas Públicas (Obmep).

Na Escola Fundamental do Centro Pedagógico da UFMG, o ensino da matemática também tem sido repensado. As operações do pensar e do aprender estão-se movendo para a integração com áreas que envolvem a linguagem, o corpo, os gestos e a tecnologia. A Escola mantém cooperação técnico-científica com o Programa de Pós-graduação em Educação Matemática da Universidade Federal do Paraná, o Programa de Pós-graduação em Educação Matemática da PUC de São Paulo e o Tecnology Educational Research Center-TERC, do Boston, Massachusetss (EUA). Com iniciativas como essas, professores e pesquisadores mostram o quanto a matemática está presente em nossas vidas. O resultado são alunos sem medo de encarar essa disciplina, que é portal indispensável para o ingresso no mundo das ciências.

Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005