Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005

Editorial

Entrevista
Boaventura de Sousa Santos

Ações afirmativas

Mais perto da justiça social

Um conceito em evolução
Newton Bignotto

Pólos de Cidadania

Cidadãos de fato e de direito

A cidadania como possibilidade
Márcio Simeone

Medicação

Antídoto para a “empurroterapia”

Farmácia, medicamento e saúde pública
Edson Perini

Conhecimento

A ciência onde o povo está

A divulgação científica
como instrumento de cidadania Ramayana Gazzinelli

Cultura

Livros a mancheias

Extensão e universidade cidadã
Edison José Corrêa

Idosos

Anjos da guarda da terceira idade

Mais velho, Brasil quer ser mais cidadão
José Alberto Magno da Fonseca

Enfermagem

A dor e a alegria de ser Maria

Diversa

Expediente

 

 

medicação

Antídoto para a “empurroterapia”

Atenção Farmacêutica humaniza e amplia relação entre profissionais e pacientes

Tomar o remédio certo, na dose certa e na hora certa, e que produza os efeitos esperados pode parecer algo óbvio e simples. No entanto, a realidade, que incomoda pacientes e profissionais de saúde, é amarga e produz índices como o apurado pelo Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas: os medicamentos são a primeira causa de intoxicação humana e correspondem, ao longo dos últimos anos, a 30% dos cerca de 75 mil casos oficialmente registrados pelo órgão.

Números como esses e, especialmente, a consciência da necessidade de assumir maior compromisso com os usuários de medicamentos despertaram farmacêuticos, em vários países do mundo, para uma prática diferente, idealizada por professores e pesquisadores da Universidade de Minnesota (EUA). Batizada de Atenção Farmacêutica, a prática reverte-se em um serviço que, por princípio, estreita o relacionamento entre farmacêuticos e pacientes.

Novo paradigma A Atenção Farmacêutica foi adotada, há dois anos, pela Farmácia Universitária, da Faculdade de Farmácia da UFMG, no campus Pampulha. Quase uma centena de clientes cadastrados nesse período vem sendo acompanhada no uso de medicamentos. “A Atenção Farmacêutica é um novo paradigma na profissão”, diz Mariana Linhares Pereira, de 28 anos, uma das responsáveis pela implantação desse serviço na Farmácia Universitária.

A filosofia da Atenção Farmacêutica foi definida pelos professores norte-americanos Linda Strand e Charles Hepler, da Universidade de Minnesota, no início da década de 1990. Quando esteve no Brasil, no semestre passado, e participou da I Reunião Estendida do Grupo de Estudos em Atenção Farmacêutica da Faculdade de Farmácia, Strand definiu a prática que ajudou a criar como o ato “de lidar com toda a farmacoterapia do paciente”.

Em entrevista ao jornal do Conselho Regional de Farmácia de Minas Gerais, Strand explicou que na Atenção Farmacêutica o profissional “verifica se a medicação indicada ao paciente é apropriada à sua condição médica, se é efetiva, segura, qual a dose correta e se ele tem condições de seguir as instruções médicas”. Segundo Strand, Atenção Farmacêutica não é um conceito fácil de ser assimilado por farmácias comuns, pois a preocupação não é com a dispensação ou com o ato de simplesmente fornecer informações sobre a medicação.

Lucro em segundo plano Para Mariana Pereira, o fato de a Atenção Farmacêutica ter nascido numa instituição universitária explica bastante seu conteúdo: “O importante não é quanto o serviço pode trazer de lucro para a farmácia. Ao contrário, a nossa percepção é justamente a de que muitas pessoas gastam muito com remédios por causa do mau uso”. A Farmácia Universitária, antes de ser um estabelecimento comercial constitui um espaço acadêmico para o aprendizado, a reflexão e a prática de estudantes do curso de Farmácia e, nesse contexto, se adapta perfeitamente aos parâmetros da Atenção Farmacêutica.

O envolvimento de Mariana com a Atenção Farmacêutica começou durante o mestrado, que também cursou na UFMG, sob a orientação da professora Djenane Ramalho de Oliveira, responsável pela Clínica de Atenção Farmacêutica da Farmácia Universitária, que congrega atividades de ensino, extensão e pesquisa. Em outubro de 2003, clientes começaram a ser atendidos sob o manto do novo conceito e, atualmente, 97 estão sendo acompanhados. “O nosso foco é o paciente”, diz Mariana, lembrando que os medicamentos agem diferentemente em cada pessoa.

“A avaliação do paciente é feita a partir da prescrição médica. Há uma individualização do atendimento, pois não levamos em consideração apenas a medicação, mas fatores que interferem no uso do remédio, como os emocionais e os sociais”. No primeiro contato com a Atenção Farmacêutica, a pessoa passa por uma longa entrevista, em que se aborda não apenas a sua farmacoterapia. “Todo o passado e o presente do paciente é investigado, para descobrirmos seu histórico clínico e, também, hábitos e costumes que podem interferir no uso e nos resultados da medicação”, explica Mariana.

A Atenção Farmacêutica prevê um cuidado integrado com o paciente. Exige do farmacêutico uma postura e uma escuta diferenciada diante do paciente, para que o profissional possa identificar necessidades, analisar a situação e tomar decisões. A partir do histórico do paciente, o farmacêutico avalia todo o processo de uso da medicação, desde procedimentos como a ingestão correta ou incorreta das doses horários adequados, intervalos de doses e outros –, a compatibilização entre diferentes medicamentos utilizados, as queixas quanto aos efeitos até as possibilidades reais de aquisição e uso da medicação prescrita. Depois da primeira consulta, um estudo detalhado do caso é feito e o farmacêutico responsável faz a sugestão de intervenções, o que inclui a orientação em relação ao uso e, também, se necessário, à troca da medicação, sempre em conformidade com o médico responsável pela prescrição.

Vlad Eugen Poenabu

Sem prescrição Um dos preceitos da Atenção Farmacêutica é o contato com o médico do paciente, quando necessário. “Nós não fazemos prescrição. Os médicos com quem temos tido contato têm aceitado bem o serviço e colaboram”, afirma Mariana, acrescentando: “O nosso interesse é sempre o paciente e o medicamento. Temos muito segurança de que estamos cumprindo nosso papel e não interferindo na prescrição médica”. Segundo ela, os farmacêuticos formados com essa visão acreditam que é preciso uma relação próxima com o médico do paciente, para a troca de idéias quando algo está interferindo no tratamento.

“O paciente pode reagir mal a uma medicação e bem a outra, que surte o mesmo efeito”, explica Mariana, para quem o farmacêutico é o profissional habilitado para entender de medicamentos e de seus efeitos no corpo humano. Ele não pode nunca, porém, perder de vista que a filosofia da Atenção Farmacêutica visa sempre ao bem-estar do paciente e isso pressupõe uma interação entre profissionais da saúde.

“A minha médica gostou muito”, garante a assistente de administração Antônia Maria Alves, de 49 anos. Há pouco tempo paciente da Atenção Farmacêutica da Farmácia Universitária, ela conta que, no seu caso, os farmacêuticos sugeriram uma troca de dosagem de determinado medicamento. “Houve contato com a médica e ela aceitou a sugestão. Para mim, é um serviço muito bom. Passei a ficar mais atenta aos medicamentos e a mim mesma”, afirma.

Depois da primeira consulta, os retornos dos pacientes da Farmácia Universitária são marcados de acordo com o tipo de intervenção sugerida e da necessidade dr acompanhamento, porém o elo entre paciente e farmacêutico já deve estar firmado. “Eles falam que é para eu ligar, quantas vezes for preciso, se eu sentir qualquer coisa diferente ou se acontecer qualquer coisa que está ligada à medicação”, conta a dona de casa Aurora Aparecida de Freitas Ribeiro, de 43 anos. Ela e o marido são pacientes da Farmácia Universitária desde julho passado. “Estou achando uma coisa grandiosa. Sou acostumada a ir a médicos e sei que, às vezes, eles passam o medicamento, a gente toma e nem sabe o que é ou para que serve”, assinala.

“Agora eu questiono” Aurora já sofreu com muitos problemas de saúde e, também por isso, se diz mais segura com o acompanhamento da Atenção Farmacêutica. Aos 19 anos, ela teve um acidente vascular cerebral (AVC), que se repetiu 17 anos depois. “Já tomei tantos remédios que nem sei”, observa. Atualmente, faz uso regular de quatro medicamentos. “Nunca fui muito de teimar, porque sei que o médico tem mais informação. Agora, eu questiono. Antes eu achava que a gente não tinha esse direito, mas quem sabe o que eu sinto sou eu mesma. Por isso, tenho que perguntar, saber, porém nem sempre isso é possível com o médico, ali na hora. O acompanhamento que estou tendo na Farmácia Universitária está me ajudando muito”, assinala.

Segundo Mariana, a Atenção Farmacêutica não será nunca algo generalizado nas farmácias, pois nem sempre os clientes querem ser alvo desse tipo de acompanhamento. “Sabemos que é nosso dever dar as informações, mas sabemos que a pessoa tem o direito de querer recebê-las, ou não. Por isso, o atendimento segundo esse conceito, não pode ser compulsório. Muitos não estão interessados e é preciso que o farmacêutico respeite a posição de cada um”, ressalta Mariana.

A pequena afinidade com a Atenção Farmacêutica não é uma situação específica dos usuários de medicamentos. No Brasil, grande parte dos farmacêuticos desconhece a prática, ou não a utiliza. A Atenção Farmacêutica não é disciplina obrigatória dos cursos de Farmácia, nem mesmo na UFMG. No país, afirma Mariana, existem “ilhas” que reconhecem e valorizam essa prática. Apesar de focar o indivíduo, de o paciente ser o principal beneficiário, a Atenção Farmacêutica pretende refletir-se na saúde comunitária.

Trecho de ilustração de Vlad Eugen Poenabu

 

Linda Strand acredita que a prática se aplica melhor aos ambulatórios e clínicas, onde, argumenta ela, “existe a abertura e expectativa do paciente em ser cuidado, e recursos no local para prestá-la”. A importância de “um serviço que tenha metodologia sistematizada e que seja acompanhado em seus resultados é essencial”, afirma Mariana. Ela e outros cinco profissionais assinam o livro, recentemente lançado, Atenção Farmacêutica – Implantação passo a passo, relato da experiência na Farmácia Universitária, além da descrição conceitual, metodológica e prática do serviço.

O desconhecimento em relação à Atenção Farmacêutica, entretanto, não assusta Mariana. Ela diz que o processo de disseminação da prática está se iniciando e lembra que o Brasil e vários outros países têm, ainda, uma preocupação que domina os usuários. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que um terço da população mundial não tem acesso a medicamentos essenciais. “Em nosso país, apenas 10% da população consome 80% dos medicamentos vendidos ou distribuídos. É um mercado que está em ampla expansão, mas, ao mesmo tempo, milhões de pessoas vivem sem os medicamentos necessários. A Atenção Farmacêutica se preocupa tanto com aqueles que não estão sendo tratados quanto com aqueles que estão e fazem uso de medicamento de forma inadequada”, insiste Mariana.

Nova casa, novas oportunidades

A Farmácia Universitária da Faculdade de Farmácia da UFMG foi criada, há 40 anos, como projeto acadêmico. Em funcionamento num novo espaço – no campus Pampulha, para onde a Faculdade de Farmácia se mudou no ano passado –, o ambiente planejado dispõe de área para atendimento ao público, laboratório de manipulação, sala de aula, área administrativa e de atendimento aos pacientes da Atenção Farmacêutica.

Ao longo de sua existência, a Farmácia Universitária atravessou períodos de muita projeção, inclusive comercial, “mas também sofreu grandes baques”, diz a coordenadora e farmacêutica Alba Valéria Souto Melo Moraes. Segundo ela, o estabelecimento sempre esteve voltado para o público interno, contudo conseguiu consolidar uma expressiva carteira de clientes externos. “O atendimento diferenciado e a política de descontos atraíam os consumidores”, assinala.

Quando funcionava no bairro Cidade Jardim, a Farmácia atendia a cerca de 400 pessoas, número que baixou para cerca de 100 pessoas, sem se considerar o atendimento por telefone. Para Alba Valéria, esse cenário não se modificou apenas em função da transferência, pois, apesar da distância que separa o campus Pampulha dos antigos clientes, a mudança, ela acredita, se reverterá em uma grande vantagem a médio prazo.

Em 2000, lembra Alba Valéria, a concorrência de mercado aumentou muito, alterando significativamente a correlação de forças, devido à entrada de redes paulistas e cariocas na cidade. “A movimentação no mercado influenciou diretamente as contas da Farmácia Universitária, auto-sustentável, apesar de ser Farmácia-Escola e de ter um quadro de funcionários expressivo”, diz ela. “Neste momento, precisamos vencer o desafio financeiro para, especialmente, trazer o cliente para a Farmácia, porque é ele que dá sentido ao investimento, já que sua presença é indispensável ao aluno, que precisa do contato com os usuários para se formar”.

A mudança para o campus Pampulha, avalia a coordenadora, deve ser encarada como uma oportunidade para o desenvolvimento de um potencial, antes não-explorado. “Não existe a possibilidade de estarmos longe da Faculdade de Farmácia e, por outro lado, estamos, agora, muito mais perto de milhares de estudantes, professores e funcionários que, anteriormente, não freqüentavam a Farmácia Universitária. Cerca de 30 mil pessoas circulam diariamente pelo campus”, lembra ela.

Os descontos de cerca de 15% a 20% ainda permanecem, mas um outro atrativo conquista novos clientes: funcionários da UFMG podem fazer compras com débito em conta corrrente, com prazo para pagar em até 60 dias. A ida para o campus também envolveu um outro fator importante. O capital de que a Farmácia Universitária dispunha, cerca de R$ 200 mil, foi utilizado para montagem do ambiente e dos laboratórios. “Temos instalações muito adequadas, porque precisamos manter o nível da instituição. Operamos com um número mínimo de funcionários para cumprir nossos objetivos e conseguir, ainda assim, um atendimento de muita qualidade”, argumenta a coordenadora, destacando que medicamentos e outros produtos ali manipulados e que sustentam uma linha própria de fabricação têm alto controle de qualidade e ampla aceitação do público.

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