Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005

Editorial

Entrevista
Boaventura de Sousa Santos

Ações afirmativas

Mais perto da justiça social

Um conceito em evolução
Newton Bignotto

Pólos de Cidadania

Cidadãos de fato e de direito

A cidadania como possibilidade
Márcio Simeone

Medicação

Antídoto para a “empurroterapia”

Farmácia, medicamento e saúde pública
Edson Perini

Conhecimento

A ciência onde o povo está

A divulgação científica
como instrumento de cidadania Ramayana Gazzinelli

Cultura

Livros a mancheias

Extensão e universidade cidadã
Edison José Corrêa

Idosos

Anjos da guarda da terceira idade

Mais velho, Brasil quer ser mais cidadão
José Alberto Magno da Fonseca

Enfermagem

A dor e a alegria de ser Maria

Diversa

Expediente

 

 

artigo

Farmácia, medicamento e saúde pública

Edson Perini
Professor Adjunto do departamento de Farmácia Social/UFMG e Coordenador do Centro de Estudos do Medicamento (Cemed) da Faculdade de Farmácia

Os anos 1900 identificam-se com a tecnologia em saúde. E, o ruim disso, com a tecnocracia na saúde. Transformações na química, nos processos industriais farmacêuticos, nos diagnósticos e nos métodos científicos guardam relações complexas de ruptura nos paradigmas explicativos do binômio saúde/doença e destes com as transformações políticas, culturais e econômicas que as duas Grandes Guerras fizeram marcar.

A história natural das doenças no homem, um conjunto de idéias e conceitos que influenciou profundamente nossas práticas médicas atuais, do diagnóstico à terapêutica, foi desenvolvida nas décadas de 1940 a 1960 e pode ser assumida como marco da atual busca de modelos que expliquem a complexidade desse binômio. Rompeu com modelos simplistas, colocou o diagnóstico e a intervenção precoces como balizadores da atitude médica e consolidou a racionalidade científica cartesiana como seu fundamento. Embora seja um rompimento com paradigmas simplistas anteriores, seu próprio nome denota o naturalismo de sua abordagem.

Esse naturalismo guarda uma coexistência necessária com a formação do “complexo médico-industrial” – a indispensável dependência entre desenvolvimento tecnológico e seus meios de produção e a base teórico-filosófica que apóia sua aplicabilidade, importância e hegemonia nas relações políticas, econômicas e culturais. A maioria das classes de medicamentos foi introduzida nessa época. O medicamento de origem sintética substituiu a tecnologia de base natural e constituiu a chamada “explosão farmacológica”. De mero coadjuvante, o setor farmacêutico virou protagonista na política e na economia mundiais – surgiu, ai, um medicamento de alta eficácia e risco, uma nova e até então desconhecida complexidade científica. Ao lado da industria bélica, do petróleo e das drogas ilícitas, ele domina o atual cenário econômico e político – quem se recordar dos favores prestados pelo presidente Bush, nos primeiros dias de seu primeiro mandato, na defesa dos interesses da indústria no embate travado pelo Brasil, na Organização Mundial do Comércio (OMC), pela quebra de patente para produção dos medicamentos para a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Sida), entenderá facilmente a dimensão do que falo.

Vlad Eugen Poenabu

 

Potente e específico nas suas ações, esse novo medicamento gerou grandes benefícios e avanços em todas as áreas da saúde. Porém, com seu maior potencial tóxico, colocou as reações adversas entre os principais problemas de saúde pública no mundo, por sua incidência, gravidade e danos econômicos. Grandes acidentes – como o da talidomida – forçaram o aprimoramento dos estudos para a comercialização dos novos fármacos, um novo mercado que, hoje, movimenta bilhões de dólares/ano. Essa nova realidade tecnológica e científica, ao lado das novas práticas de negociação comercial, guarda relação com uma centralização sem precedente no setor. Hoje a indústria farmacêutica domina não só a produção dos fármacos, mas também a produção do conhecimento sobre eles, assumindo um poder desmedido sobre a regulação estatal do mercado e uma influência meticulosa sobre a formação profissional.

Oligopólios Uma falsa competição mantém esse mercado oligopolizado, baseado na capacidade de lançamento de novos produtos, como qualquer outro setor da economia. No fundo, como mercado, a saúde não difere tão marcadamente da moda em termos de obsolescência e ânsia pela renovação. Certamente, esta última é mais frenética e sazonal, mas a primeira tem seus segredos, não apenas fundados nas bases filosóficas da racionalidade científica da atuação médica. E o novo é apresentado por investigações inacessíveis à maioria dos profissionais, seja pela formação deficiente, seja pelas dificuldades do trabalho diário e do acelerado processo de atualização. Essa é a condição básica para a criação do mito.

Nessa transformação, houve uma perda de identidade entre consumidores e profissionais e destes com o produto e o saber sobre ele. O medicamento de base natural sustentava um mercado em que o farmacêutico “comum”, aquele que nos interessa em nossas relações diárias de consumo, o prescritor e o paciente formavam uma relação mais próxima com a definição da “eficácia” do produto. Éramos nós, esses três atores, que dizíamos se o produto era, ou não era, bom em função de nossa experiência com ele. Verdadeiras panacéias foram criadas e, se é óbvio que não devemos ter saudades dessa eficácia, também é fato que, hoje, não participamos dela, que passou a ser definida pela ciência. Resta-nos, então, a fé na capacidade da ciência para garantir essa eficácia e solucionar todos os males com seus produtos.

Essas são características paradoxais de um tempo em que também se desenvolveu a consciência sobre os direitos de acesso aos milagres de tal evolução. No Brasil, a primeira ação política articulada nessa área foi a Central de Medicamentos, criada no governo militar, sob a égide da segurança nacional – um problema real e sério para as nações tecnologicamente mais frágeis. Muito precocemente, seu objetivo de favorecer o desenvolvimento tecnológico de nosso setor produtivo e de ampliar o acesso de nossa população foi desvirtuado para um processo corrupto de produção e distribuição de medicamentos de baixa qualidade para as classes pobres. Favoreceu grupos em nada comprometidos com o desenvolvimento de nossa autonomia tecnológica e com a satisfação de nossas necessidades médico-sociais.

Hoje, vivemos uma nova fase na busca desse direito. O país dispõe de uma Lei do Medicamento e de uma série de instrumentos legais complementares, suficientes, a meu ver, para dar cobertura à mobilização de todas as forças da sociedade nessa direção. É uma nova realidade, mas o acesso aos medicamentos permanece privilégio de classes e regiões e os preceitos de universalidade, eqüidade e integralidade do SUS mantêm-se muito aquém do nosso ideal.

Ideal No entanto, que ideal é esse? O construído pela racionalidade científica, que nos arrancou de uma eficácia primitiva, estabelecida na fragilidade das relações humanas entre profissionais e pacientes? Ou o construído por uma eficácia estabelecida pela “ciência de branco”, dominada pelo interesse do mercado, que nos tirou o status primitivo de pacientes e nos fez consumidores, cheios de direitos e sujeitos às relações espúrias entre profissionais e indústria – a literatura está repleta de exemplos –, entre indústria e consumidor, crentes em seus mitos e ciosos de seus direitos, plenos de direitos e submetidos às máquinas burocráticas de regulamentação de Estados, simplesmente frágeis diante do mercado?

É preciso se pensar esse ideal de pleno acesso. Não abandoná-lo em razão dos espúrios interesses de um setor poderoso. Tratar é preciso, servir de garantia para a manutenção e crescimento de um setor esfaimado não é preciso. Não é preciso estar à mercê dos caprichos criadores da indústria para garantir tratamento aos males dos homens. Não há país rico o suficiente para garantir o acesso a essa fúria criadora de eficácias, domínio de quem vende. E não há lei boa o bastante para garantir esse acesso se sua interpretação não se fizer criticamente, considerando-se as falácias dessa eficácia, os interesses que oculta – embora claros e atuantes à luz do dia –, e as mazelas do mercado de produtos e dos profissionais da saúde.

Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005