Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005

Editorial

Entrevista
Boaventura de Sousa Santos

Ações afirmativas

Mais perto da justiça social

Um conceito em evolução
Newton Bignotto

Pólos de Cidadania

Cidadãos de fato e de direito

A cidadania como possibilidade
Márcio Simeone

Medicação

Antídoto para a “empurroterapia”

Farmácia, medicamento e saúde pública
Edson Perini

Conhecimento

A ciência onde o povo está

A divulgação científica
como instrumento de cidadania Ramayana Gazzinelli

Cultura

Livros a mancheias

Extensão e universidade cidadã
Edison José Corrêa

Idosos

Anjos da guarda da terceira idade

Mais velho, Brasil quer ser mais cidadão
José Alberto Magno da Fonseca

Enfermagem

A dor e a alegria de ser Maria

Diversa

Expediente

 

 

artigo

Um conceito em evolução

Newton Bignotto
Professor do departamento de Filosofia da UFMG

Originalmente, o conceito de cidadania referia-se à condição daqueles que, pertencendo ao corpo político das cidades gregas, tinham o direito não apenas de viver em seu território, mas também de participar diretamente das decisões que determinavam os rumos da vida da cidade. Para que isso fosse possível, era necessário que os cidadãos fossem iguais, se não em tudo, o que é impossível, pelo menos em relação ao respeito das leis e quanto à liberdade de agir no interior das instituições que governavam os destinos da polis. Podemos, portanto, associar ao conceito de cidadania grega dois outros conceitos: o de igualdade e o de liberdade.

Maria do Céu Diel

Sem eles, ficamos apenas com a idéia de pertencimento a um corpo político, o que não seria suficiente para separar o cidadão grego dos súditos de reinos governados por monarcas com poderes absolutos. Os romanos iriam radicalizar ainda mais a idéia da isonomia entre os cidadãos, transformando-os em sujeitos de direito. Cada cidadão passa a ser considerado como tal não apenas por poder participar das decisões importantes da vida política da cidade, mas também por ser possuidor de direitos, que os capacitam a realizar contratos ao abrigo da lei e sem o consentimento direto de governantes e outros mandatários. O direito ocupa, assim, um lugar fundamental na definição do que seja uma sociedade política para os romanos e consolida a idéia de cidadania.

A concepção grego-romana de cidadania encontrou limites no aparecimento do indivíduo moderno. Se a idéia de que os cidadãos devem ser livres e iguais perante a lei se manteve como um marco essencial para a definição do conceito, o aparecimento do indivíduo moderno colocou em questão a forma como os antigos se relacionavam com o corpo político. O pertencimento de um grego a uma cidade era, na maior parte das vezes, determinado por critérios como o nascimento e a filiação, o que criava um fator de exclusão e de limitação da cidadania, deixando de fora estrangeiros, mulheres e crianças. Como diz Aristóteles em Política (1275 a 25), “um cidadão no sentido absoluto se define pela participação nas funções judiciárias e na função pública em geral”. O importante para o cidadão era o que acontecia dentro da esfera pública, o mundo da casa e das relações desiguais não contava para ele como cidadão.

Na esfera privada Essa definição serviu como ponto de partida para a cidadania moderna, mas ela não leva em conta o fato de que a esfera privada, que, na Antigüidade estava fora da esfera da política, passou a ocupar um lugar diferente na vida desde o início da modernidade. Se, antes, ela estava fora do espaço da cidadania, englobando, por isso, relações assimétricas e desiguais – como aquelas entre esposo e esposa e entre senhor e escravo – agora, ela é considerada um território essencial da existência do indivíduo e de sua afirmação, passando a englobar direitos e deveres à semelhança da esfera pública.

Essa mudança na relação entre o público e o privado alterou a forma como os indivíduos se relacionam com o Estado e os levou a reivindicar direitos que, antes, não faziam sentido. À luz dessas observações é que podemos compreender as análises de Marshall a respeito do desenvolvimento da noção de cidadania na Inglaterra. Como mostra o autor, aos direitos políticos tradicionalmente associados à cidadania se seguiram os direitos civis e, por fim, os direitos sociais. Se esse esquema não descreve um processo histórico necessário em sua ordem cronológica para todas as nações – como mostrou José Murilo de Carvalho em estudo sobre a cidadania no Brasil –, pelo menos serve para mostrar a grande complexidade que a questão alcançou na modernidade.

Ora, a modernidade não extinguiu inteiramente os fatores de limitação da cidadania, pois, na maior parte das nações, ela continuou a ser associada ao pertencimento a um determinado corpo político, segundo regras estabelecidas pelas leis. No entanto, os fatores de exclusão dos não-cidadãos das esferas mais importantes da vida política foram acompanhados pelo movimento contrário de universalização dos direitos. Assim, por exemplo, a limitação do acesso à justiça por parte dos estrangeiros, comum entre os gregos, deixou de fazer sentido. No interior das cidades, a tendência à universalização resultou, também, no acesso progressivo das mulheres à vida política.

Esse movimento foi bastante lento no curso dos últimos séculos, o que fez com que, na maior parte dos países ocidentais, o direito de voto, essencial para definir a participação na vida política moderna, só tenha sido alcançado por todos os membros do corpo político no século XX. Porém, ao conceder-se o direito de voto a todos os que possuem direitos políticos, foi ultrapassada uma barreira fundamental, realizando-se, na prática, o que vinha sendo apontado, desde o século XVIII, pelos teóricos – entre os quais Condorcet – como um passo decisivo para a construção de formas políticas efetivamente livres.

De forma resumida, podemos dizer que dois modelos teóricos serviram para pensar nossa questão na modernidade. De um lado, estão os que, como Montesquieu, acreditam que a cidadania se organiza à medida que os poderes são bem distribuídos e que a pluralidade dos cidadãos pode se guiar por um ordenamento jurídico estável, que garante a todos o direito de fazer o que a lei permite. No outro pólo, estão os seguidores de Rousseau, para quem o cidadão é a fonte primeira e definitiva da lei e, por isso, deve guardar uma relação de intimidade com o corpo político de que é a origem e único destinatário. É claro que esses dois modelos conheceram muitas variantes, mas eles nos ajudam a pensar a tensão contínua que acompanhou os teóricos da cidadania entre unidade e pluralidade do corpo dos cidadãos.

Sociedades multiculturais Nos dias atuais, o debate sobre cidadania tornou-se ainda mais agudo diante do desafio levantado pelas transformações sofridas pelas sociedades industriais. Em primeiro lugar, a associação entre cidadania e nação, que presidiu a vida política do Ocidente nos últimos séculos, é questionada pelo fato de que a constituição de comunidades transnacionais exige uma nova compreensão da relação do cidadão com o corpo político. O que, antes, era definido por fronteiras conquistadas por meio de longas lutas e guerras, agora, passa a se referir a blocos de países e a ordenamentos jurídicos muito mais amplos. Em segundo lugar, está o fato de que a migração intensa de populações culturalmente muito diversas, que passaram a habitar o mesmo território, fez nascer uma demanda por novos direitos, que podemos chamar de culturais e expõem a face complexa das sociedades multiculturais. Por fim, o progresso do individualismo e a apatia crescente que domina a vida das sociedades democráticas põem em questão um conceito que foi essencialmente político em sua origem e que se desenvolveu pela extensão progressiva de direitos à totalidade dos componentes do corpo político.

Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005