Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005

Editorial

Entrevista
Boaventura de Sousa Santos

Ações afirmativas

Mais perto da justiça social

Um conceito em evolução
Newton Bignotto

Pólos de Cidadania

Cidadãos de fato e de direito

A cidadania como possibilidade
Márcio Simeone

Medicação

Antídoto para a “empurroterapia”

Farmácia, medicamento e saúde pública
Edson Perini

Conhecimento

A ciência onde o povo está

A divulgação científica
como instrumento de cidadania Ramayana Gazzinelli

Cultura

Livros a mancheias

Extensão e universidade cidadã
Edison José Corrêa

Idosos

Anjos da guarda da terceira idade

Mais velho, Brasil quer ser mais cidadão
José Alberto Magno da Fonseca

Enfermagem

A dor e a alegria de ser Maria

Diversa

Expediente

 

 

artigo

A cidadania como possibilidade

Márcio Simeone
Professor do departamento de Comunicação Social da UFMG e membro da coordenação do Programa Pólos de Cidadania

Cada época e cada lugar produziram um sentido diferente para a cidadania. É um termo que, de tão amplo, pode nos confundir. No entanto, é bom mesmo que seja amplo e, por isso, trivial, pois quanto mais tentarmos aprisionar seu conceito, tanto menores serão as possibilidades de que ele seja efetivamente incorporado como práxis cotidiana.

Uma das primeiras explicações para a palavra cidadão, que desde cedo recebi, foi bastante singela. Rezava mais ou menos o seguinte: aquele que participa das coisas da cidade. Isso, ao mesmo tempo, explicava tudo e nada. Afinal, que coisas seriam essas? Como eu poderia – e deveria – participar delas? E quem não vivia na cidade? Pois bem, descobri primeiro que as tais coisas eram problemas, questões relacionadas à organização da vida coletiva sobre as quais teríamos responsabilidades. Daí para a frente, fui colhendo, em muitos lugares, seus vários sentidos.

Conceição Bicalho

Por vezes, cidadania é vista como algo que se concede. No fundo, é uma visão moralista, algo que se ganha como prêmio por bons antecedentes ou por bom comportamento em sociedade. Sendo assim, também é como se fosse um objeto, que se possui, ou não. Como objeto, teria um formato bem definido, produzido por alguém, que, em algum momento, dá de presente a mim, para meu desfrute particular.

Logo pude perceber que não era bem desse jeito. Vi que vários grupos, na sociedade, lutavam muito para obter o direito de participar das “questões da cidade”. Não se esforçavam para ser bem comportados. Ao contrário, denunciavam com veemência a própria exclusão e, por isso mesmo, demonstravam uma grande consciência de seu papel transformador da própria organização da vida em comum. Isso me ensinou a ver a cidadania como algo a ser buscado e conquistado, não como algo que eu pudesse apenas esperar que me fosse concedido. Por outro lado, também demonstrou que essa busca não era individual, mas um esforço coletivo e contínuo.

Pois, então, a cidadania não seria mais um objeto, pronto para ser concedido ou tomado, de modo a ser desfrutado. Seria algo em permanente construção, sempre por terminar, em que as diferenças e os conflitos de interesses, vontades, opiniões e expectativas são uma regra, não uma exceção. Um estado ou condição que se alcança, embora sempre de forma provisória. Um processo de construção histórica, indispensável ao ethos da convivência democrática.

Quem pode ser cidadão? Sejam quais forem os vários sentidos do termo cidadania, definir o cidadão foi, desde sempre, definir possibilidades – um sujeito capaz de interferir na ordem social em que vive. A cada momento de cada história particular, tratava-se de definir a que sujeitos seria legado o direito de participar dos “problemas da cidade”, das questões públicas, debatendo e deliberando sobre elas. Lutar pela cidadania constitui-se, dessa forma, em luta por inclusão, no sentido de garanti-la como uma possibilidade universal, não-restrita a determinados grupos ou classes. Nos últimos tempos, a luta por direitos – políticos, civis e sociais – veio ampliar extraordinariamente essas possibilidades.

Mesmo assim, a cidadania não se completa com a inscrição desses direitos nos dispositivos legais, mas apenas quando os sujeitos têm consciência dessas possibilidades, podendo usar de tais prerrogativas. Essa consciência cívica é algo que se adquire no processo, na própria vivência da cidadania, com todas as suas contradições. Sem isso, não há como garantir que, mesmo instituídos, esses direitos tenham efetividade, concretizando-se no cotidiano.

Um dilema crucial no mundo moderno consiste em lidar com a complexidade dos “problemas da cidade”. Afinal, não se trata apenas de resolver questões locais, mas de preocupar-se com uma extraordinária teia de interdependências, de lidar com questões sobre as quais se aplica um enorme volume de conhecimentos técnicos e científicos. Somos chamados a ser não apenas cidadãos do nosso local, mas cidadãos do mundo. Os meios de comunicação nos põem diante de toda sorte de problemas, em todos os níveis de abrangência e em tal velocidade, que podemos nos sentir completamente impotentes para dar conta de todas as questões que julgamos publicamente relevantes, o que pode obstar nossa própria consciência cívica.

Diante disso, efetivar a possibilidade de cidadania depende da geração de um poder cívico, diretamente relacionado à capacidade de organização dos sujeitos. Sua mobilização é essencial para a geração de uma potência cívica, seja para, diretamente, participar de uma instância deliberativa, seja para fazer chegar a esse nível a voz que contenha suas aspirações. Essa dinâmica envolve tanto a cooperação e a formação de vínculos de co-responsabilidade com os destinos da vida coletiva, como o confronto com as opiniões, interesses e expectativas dos outros.

Cidadania produzida e reproduzida A proposta interdisciplinar do Programa Pólos de Cidadania, da UFMG, nascida há uma década, baseia-se na idéia de que é possível uma ação dos sujeitos para criar, autonomamente, as próprias condições para o exercício dessas possibilidades e, por meio delas, buscar transformar suas condições de vida numa direção emancipadora. É um programa de pesquisa – baseado nas metodologias de pesquisa/ação – e de extensão, que busca intervir nas questões relativas aos Direitos Humanos em áreas de exclusão e de risco social.

Atua em frentes de trabalho diversificadas, como mediação de conflitos e mediação comunitária, organização popular em vilas e favelas, redução da violência e de riscos na regularização fundiária sustentável, geração de condições de prevenção à exploração sexual infanto-juvenil, saúde mental e cidadania e organização e construção de identidade coletiva da população de rua. Incorpora, ainda, como frente de atuação, um grupo teatral, instrumento de mobilização social e cultural.

A idéia de que o exercício da cidadania depende da capacidade de organização e de mobilização dos sujeitos, imbuídos de uma visão de futuro e de uma co-responsabilidade em relação aos seus rumos, é complementada por uma crença, segundo a qual uma forma democrática de convívio se alicerça na capacidade dos sujeitos de construirem relações horizontalizadas, de se expressar como personalidades autônomas e críticas e de romper com as estruturas de opressão. Dessa forma, a noção de cidadania abrange os sentidos de emancipação e de autonomia desses sujeitos que, por meio da autocompreensão, têm a chance de se transformar em cidadãos ativos no meio social, em vez de serem apenas públicos-alvo de ações de assistência.

Toda essa experiência tem evidenciado a noção de cidadania como algo a ser produzido – nas situações concretas de vida dos sujeitos e suas circunstâncias históricas, em que as várias formas de exclusão e de opressão são desveladas – mas, ainda, como algo passível de ser reproduzido – uma idéia de cidadania que não é apenas inclusiva, mas expansiva. Isso se dá pelo aumento do capital social e humano advindo das formas de associação e da geração de uma competência para a organização da vida coletiva.

Tomando a cidadania como um aprendizado para os sujeitos, o que se dá em seu próprio movimento na sociedade, assume a Universidade o papel fundamental de aproximar dessa realidade cotidiana o saber nela e por ela produzido. Não como algo a ser dado a esses sujeitos, sequer tomando-os como objetos, mas construído na interação com eles. Isso torna esses projetos um verdadeiro desafio de fala e de escuta assumido por pesquisadores e estudantes, uma instigante aventura de produção coletiva de saberes. Assim como a cidadania, o conhecimento não é algo pronto – é também uma possibilidade.

Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005