Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005

Editorial

Entrevista
Boaventura de Sousa Santos

Ações afirmativas

Mais perto da justiça social

Um conceito em evolução
Newton Bignotto

Pólos de Cidadania

Cidadãos de fato e de direito

A cidadania como possibilidade
Márcio Simeone

Medicação

Antídoto para a “empurroterapia”

Farmácia, medicamento e saúde pública
Edson Perini

Conhecimento

A ciência onde o povo está

A divulgação científica
como instrumento de cidadania Ramayana Gazzinelli

Cultura

Livros a mancheias

Extensão e universidade cidadã
Edison José Corrêa

Idosos

Anjos da guarda da terceira idade

Mais velho, Brasil quer ser mais cidadão
José Alberto Magno da Fonseca

Enfermagem

A dor e a alegria de ser Maria

Diversa

Expediente

 

 

Enfermagem

A dor e a alegria de ser Maria

Alunas do curso de Enfermagem realizam trabalho de atenção à saúde em república que acolhe mulheres abandonadas

“De uma gente que ri quando deve chorar / E não vive, apenas agüenta”
Maria, Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant

Num amplo salão, assentada no canto de um velho sofá, Maria Custódia Simões, 37 anos, entrega-se à curiosidade diante do manequim de fibra de vidro, comumente usado em aulas de anatomia. “O pulmão é bem aí na frente? É verdade que ele é igual a esponja?”, pergunta. Quem dá as respostas é Cristina Rabelo Flor, 23 anos, aluna do sétimo período de Enfermagem. Ela esforça-se para satisfazer às indagações de Custódia, ao mesmo tempo que tenta conquistar a atenção de outras mulheres menos atentas.

Nessa mistura de bate-papo com palestra e aula, é que Maria Custódia, uma ex-moradora de rua que carrega a marca do abandono familiar e do desespero de alguém que passou por quatro tentativas de suicídio, aprende sobre a complexidade do corpo humano e um tanto sobre si mesma.

A “professora” Cristina é uma das estagiárias do projeto Práticas educativas na atenção à saúde de mulheres, desenvolvido pela Escola de Enfermagem da UFMG na República Maria Maria, uma casa da rede pública de acolhimento da população feminina de rua, que funciona há cerca de cinco anos, no bairro Lagoinha, Região Noroeste da capital mineira.

Realidades múltiplas O projeto que envolve alunos e professores da Escola de Enfermagem é realizado nessa república desde 2001 e nasceu de experiência iniciada por alunos da disciplina Capacitação pedagógica, em que a turma procura realizar exercícios práticos. “A experiência deu tão certo que se tornou um projeto de extensão em 2002”, conta a professora e coordendora Eliana Aparecida Villa. A proposta oferece aos alunos a oportunidade de se relacionarem com múltiplas realidades. “É impossível reproduzir na sala de aula a riqueza do contato com as mulheres”, afirma a coordenadora.

Vlad Eugen Poenaru

Ao se reunirem com ex-moradoras de rua e atentarem para demandas apontadas pelas próprias mulheres, os alunos, diz Eliana Villa, dividem responsabilidades e integram-se num processo caracterizado pela troca de saberes. “Os alunos devem praticar seu conhecimento técnico sem perder de vista a realidade e as condições que envolvem cada situação profissional com que vão se deparar”, assinala.

Na república Maria Maria, os alunos acompanham a rotina de um grupo que tem dificuldade em perceber e valorizar questões ligadas à própria saúde. “Despertá-las é um desafio. A vida na rua é muito dura e isso está claro em todos os nossos encontros. Essas mulheres não têm, na maioria das vezes, noções mínimas de seus direitos. Então, a saúde, o cuidado pessoal, às vezes, nem conta para elas”, observa Eliana, para quem o estímulo à cidadania deve ser a base de todas as ações desenvolvidas pela pequena equipe, presente todas as semanas nessa casa de acolhimento.

A dinâmica do projeto é pautada pela relação com as moradoras da Maria Maria. A metodologia é participativa e não permite roteiros fechados, apesar de existir um revezamento sistemático de atividades. Numa semana, os alunos “exercitam” a escuta, prestam assistência básica de enfermagem se for preciso, esclarecem dúvidas pessoais e, especialmente, tentam perceber, nesse contato individualizado, as expectativas que cercam o grupo. Na semana seguinte, o encontro trata de ações educativas práticas, em que os temas abordados atendem às necessidades levantadas pelas mulheres.

Relação de confiança “Como acompanhamos a rotina delas há bastante tempo, o projeto tem caminhado com facilidade. As moradoras confiam nos alunos. Existe realmente uma troca de experiências”, garante Eliana. As ações educativas tratam de temas como conhecimento do corpo humano, métodos contraceptivos, doenças sexualmente transmissíveis, saúde da mulher e das crianças e higiene, entre outros. “É muito variado, mas o que aprendemos é que, para conquistar o grupo, temos de ser criativos. Os alunos não devem se limitar a falar. Eles provocam a participação, usam de métodos lúdicos para chamar a atenção”, salienta.

Na Maria Maria, a capacidade de acolhimento é de 50 mulheres. Apesar de o tempo de permanência previsto ser de um ano, a realidade impõe-se e o grupo não sofreu grandes alterações nos anos de existência da casa. No ano passado, algumas moradoras conquistaram “bolsas” para aluguel e deixaram a Maria Maria “Não é um trabalho de faz de conta. Estamos empenhados em construir com essas mulheres um projeto de vida. A proposta implica criar com elas alternativas para que saiam definitivamente da rua”, assinala a psicóloga Mary Cristina Thomas Gomes, gerente da república Maria Maria.

Mantida pelo grupo O Consolador com apoio financeiro da Prefeitura de Belo Horizonte,a república Maria Maria recebe mulheres entre 18 e 60 anos, encaminhadas por entidades públicas – albergues, Centro de Referência da População de Rua e, principalmente, por equipes de profissionais da Secretaria Municipal de Assistência Social que fazem um trabalho de abordagem nas ruas. Conseguir vaga não é fácil e as moradoras têm de atender a critérios bem definidos. Mulheres grávidas ou com filhos de até seis anos têm prioridade, além das portadoras de sofrimento mental.

A direção da casa articula-se com entidades públicas e da sociedade civil para proporcionar “caminhos”, mas que “deverão ser assumidos pelas mulheres, numa relação de responsabilidade com as próprias escolhas”, salienta Mary. Quando chegam à Maria Maria, elas são encaminhadas para a retirada de documentos – um problema enorme e constante entre as moradoras –, tratamentos médicos e cursos de capacitação. “Não trazemos nada prontinho. Orientamos e até facilitamos, porém são elas que têm de correr atrás do que querem”, explica a gerente da casa.

Perfil Um perfil das moradoras da Maria Maria foi traçado pelo grupo de alunas da Enfermagem participantes do projeto em 2003. Para melhor conhecer com quem se relacionavam, as alunas basearam-se em relatos das próprias moradoras e puderam constatar, na análise quantitativa e qualitativa dos dados, que a situação das mulheres da república é bastante semelhante à revelada pelo Censo de População de Rua, realizado em 1998. O perfil continua atual, devido à pequena alternância de moradoras. Quase 37% das mulheres dessa casa de acolhimento estão em idade produtiva; 63% possuem ensino fundamental incompleto; a faixa etária prevalente é a de acima de 30 anos; 44% delas vieram do interior; e mais da metade das moradoras são portadoras de sofrimento mental.

Trecho da obra de Vlad Eugen Poenaru

As questões relacionadas à saúde das mulheres são destacadas pelas alunas da Enfermagem: “É importante ressaltar que a maioria das moradoras apresenta mais de uma afecção de saúde. Uma percentagem considerável – 57,8% –, é acometida pelo sofrimento mental. Essa condição torna-se fator determinante de exclusão social. Além disso, a presença de afecções – como o HIV (13,15%) e o alcoolismo (15,7%) – reflete a vulnerabilidade em que se encontram esses indivíduos”, atesta a análise do perfil das moradoras da Maria Maria, em que são apontados, ainda, graves problemas de higiene devido às condições precárias de sobrevivência.

Vulnerabilidade “A situação aumenta a vulnerabilidade dessa população e amplia os problemas de saúde. Percebemos que, muitas vezes, a falta de cuidado com a higiene corporal se deve ao desconhecimento de sua importância para a saúde do indivíduo”, dizem alunas participantes, responsáveis pelo perfil das moradoras da república. Segundo Cristina Flor, o contato semanal com as mulheres da casa de acolhimento comprova a fragilidade do grupo quando se trata de cuidados pessoais e com a saúde em geral, mas o mais evidente ainda é a carência afetiva.

“Elas estão sempre pedindo alguma coisa, informações e orientações, porém a falta de carinho é muito grande. Quando damos atenção aos seus problemas, notamos o quanto a falta de autonomia e de auto-estima está no centro de tudo. Elas perderam muito nas ruas, mais do que o lugar para morar”, observa Cristina, acrescentando que atuar no projeto tem sido uma oportunidade de desmitificação e de derrubada de preconceitos. “Nós já podemos notar uma mudança de comportamento em muitas delas, que passaram a se cuidar mais, mesmo tendo que lidar com tantas privações. Todas falam com muito sofrimento de situações que viveram quando estavam nas ruas”, afirma Cristina.

A equipe que trabalha nesse projeto de extensão da Enfermagem é pequena – duas alunas-bolsistas, duas voluntárias e a coordenadora. Mesmo assim, a continuidade das ações tem sido garantida. “A gente não pode faltar. Em julho, quando tivemos um recesso, elas reclamaram muito a nossa ausência e acho que isso mostra que mantemos uma relação de confiança importante para nós e para elas”, diz Cristina.

No perfil de 2003, ficou evidente o peso das relações familiares na trajetória dessas mulheres: 60,5% foram para as ruas devido a desavenças familiares – abandono e conflito; 34% por problemas econômicos; e 5,2% voluntariamente. O tempo de permanência nas ruas é longo – de um a três anos, 23,6%. Esse índice repete-se na faixa de cinco a dez anos, entre um ano e três anos e de três a cinco anos, 18,4%. Com mais de dez anos, 13,1%.

Histórias do olho da rua

“Temos mulheres que antes de viverem aqui moravam na calçada da casa da própria família”, conta Mary, gerente da república Maria Maria. Essa realidade é bastante comum quando o olhar recai sobre as moradoras com sofrimento mental. “As famílias têm grande dificuldade em aceitá-las e elas também, muitas vezes, já perderam mesmo qualquer laço”, afirma.

Os conflitos familiares, entretanto, estão presentes na história de praticamente todas as moradoras. Eles foram determinantes para a história de Maria Custódia, que vagou pelas ruas da região de Venda Nova, antes de ser levada para o Maria Maria, há um ano. Orfã aos oito anos, ela saiu de São Pedro dos Ferros para viver em Belo Horizonte com a família de uma irmã, morta há cerca de seis anos. As desavenças com o cunhado foram tantas, que ela e uma sobrinha deixaram a casa. Maria Custódia conta que optou pelas ruas e a sobrinha, pela favela.

“Eu só dormia assentada no meio-fio, porque sempre tive medo de fechar totalmente os olhos”, lembra. Levada para a república Maria Maria por uma equipe de abordagem da Secretaria Municipal de Assistência Social, Maria Custódia não está totalmente satisfeita, apesar de admitir que se sente mais segura e menos só. “Na rua, a gente convive com muita violência, vê de tudo, mas eu estou estressada. Aqui mora gente de tudo que é jeito, são muitas personalidades diferentes juntas e isso dá problema”, reclama, garantindo que a única solução para a sua vida é ter um lar novamente.

É também tudo o que mais deseja Sandra das Graças Santos, 41 anos, mãe de seis filhos – o mais novo, de cinco meses, vive com ela na Maria Maria. Antes do nascimento de João Victor, Sandra morava, há dois anos, no Abrigo São Paulo, aonde chegou depois do fim de um casamento e de uma trajetória sofrida pela casa de parentes e de um casal conhecido. Afastada dos filhos de 17, 11, 10, 5 e 3 anos, inclusive por decisão do Conselho Tutelar de Menores, Sandra diz não se conformar com a distância da família. Ela já esteve internada no hospital Raul Soares, instituição psiquiátrica, e revolta-se quando lembra que, para a família, ela é “uma mãe descabeceada”. “Meu problema é a falta de moradia. Como o juiz vai devolver meus filhos se não tenho casa para morar?”, indaga.

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