Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005

Editorial

Entrevista
Boaventura de Sousa Santos

Ações afirmativas

Mais perto da justiça social

Um conceito em evolução
Newton Bignotto

Pólos de Cidadania

Cidadãos de fato e de direito

A cidadania como possibilidade
Márcio Simeone

Medicação

Antídoto para a “empurroterapia”

Farmácia, medicamento e saúde pública
Edson Perini

Conhecimento

A ciência onde o povo está

A divulgação científica
como instrumento de cidadania Ramayana Gazzinelli

Cultura

Livros a mancheias

Extensão e universidade cidadã
Edison José Corrêa

Idosos

Anjos da guarda da terceira idade

Mais velho, Brasil quer ser mais cidadão
José Alberto Magno da Fonseca

Enfermagem

A dor e a alegria de ser Maria

Diversa

Expediente

 

 

idosos

Anjos da guarda da terceira idade

Hospital das Clínicas mantém centro de referência para acompanhar idosos e seus familiares

A convivência amorosa contribuiu – e muito – para que Maria Ilza de Castro, 63 anos, percebesse, quase de imediato, as estranhas mudanças no comportamento do marido, José de Castro Pereira, 73 anos. O homem com quem divide a vida desde os 16 anos, conta ela, estava estranho, fazia coisas inesperadas e tamanhas eram as esquisitices, que assustava até os filhos. “Há quatro anos, eu não entendia o que acontecia e só me preocupava. Agora, se disser que todos os dias passo bem, não é verdade. Mas me sinto melhor, porque sei o que está acontecendo com ele. Tive ajuda e já posso até ajudar outras pessoas que sentem o que senti, que passam pelo que passei”, afirma ela.

O diagnóstico de Alzheimer de seu José foi confirmado depois de um período de muita turbulência em casa, agravado por sintomas que a família tinha dificuldade de aceitar. “Toda vida ele teve um caráter muito bom, foi um homem excelente, mas, de uma hora para outra, tornou-se agressivo e chegou a ser internado no Galba Veloso”, conta dona Maria Ilza, ao recordar-se da passagem do marido por um hospital psiquiátrico. A relação familiar começou a melhorar quando seu José foi atendido pela equipe do Ambulatório de Geriatria e Gerontologia do Hospital das Clínicas que, no final de 2002, foi transformado no Centro de Referência do Idoso Professor Caio Benjamin Dias.

Cuidando de quem cuida Segundo dona Maria Ilza, as mudanças em sua vida não ocorreram apenas por causa da definição do diagnóstico de seu José, mas, em especial, pelo fato de ela também ser alvo de atenção no Centro de Referência do Idoso. “Quando o meu marido começou a ser tratado, eu também me senti desamparada e aprendi que ser cuidadora é algo especial, que os cuidadores precisam de atenção e que só assim é que podemos ajudar quem está doente”, diz ela.

Conceição Bicalho

O Centro de Referência do Idoso Professor Caio Benjamin Dias é um serviço de assistência integrada aos mais velhos que abarca diferentes especialidades clínicas – geriatria, neuropsicologia, reabilitação física e cognitiva, terapia ocupacional, fisioterapia, fonoaudiologia – e que interfere na política de saúde pública dedicada a essa parcela da população.

Os atendimentos acontecem no Ambulatório Bias Fortes, anexo ao Hospital das Clínicas, porém, dependendo do caso, a assistência é domiciliar. Os familiares são parte do processo e do tratamento do idoso e, por isso, não só os pacientes, mas também os cuidadores, são acompanhados de perto pela Assistência Social. “É preciso uma equipe interdisciplinar”, diz o geriatra e coordenador Edgar Nunes de Moraes.

A finalidade do Centro de Referência do Idoso é a de dar atendimento generalizado a pacientes com mais de 60 anos, mas a demanda, explica Edgar, é bem maior que a capacidade de acolhimento desse setor. O número de atendimentos mensais gira em torno de 500 pacientes. No geral, são acompanhadas cerca de 2,5 mil pessoas. O Centro está inserido nas propostas do Núcleo de Geriatria e Gerontologia da UFMG, criado em 1999 para congregar todas as unidades, atividades e professores que trabalham com o envelhecimento.

O Centro de Referência do Idoso foi credenciado pelo Ministério da Saúde, em atendimento a um programa que pretende criar várias unidades semelhantes pelo país. Em Minas Gerais, serão oito unidades, mas, até o momento, o único em funcionamento é o do Hospital das Clíncias da UFMG, que já mantinha serviços especiais de atendimento aos idosos.

Uma das ações prioritárias do Centro é o Programa de Tratamento de Portadores de Alzheimer, em que estão incluídos os cuidados a pacientes como seu José de Castro e, também, ações que definem e norteiam a política de saúde pública para essa faixa etária. O Centro é responsável, por exemplo, pela análise de processos, de todo o Estado, para autorização de fornecimento gratuito, pela Secretaria de Estado da Saúde, das drogas necessárias ao tratamento dos doentes com Alzheimer. Ele se dedica, também, à realização de seminários e palestras para cuidadores e familiares dos doentes e organiza cursos de capacitação e treinamento de profissionais das equipes do Programa Saúde da Família (PSM).

A assistente social Dorotéia Fernandes da Silva lembra que a atenção aos pacientes e aos familiares, em especial aos cuidadores, é fundamental para a convivência destes com os problemas causados pelas doenças e pelo próprio envelhecimento. “O apoio que damos envolve as questões sociofamiliares, porque acreditamos que elas interferem diretamente no tratamento do paciente”, assinala.

Informação Lidar com o envelhecimento e suas conseqüências, esclarece Dorotéia, pode ser surpreendente e difícil para muitas pessoas. “É preciso um apoio profissional que vai além de medicamentos, exames, controles. E é bem visível a diferença que a informação faz na vida dos pacientes e seus familiares. Por isso, nos baseamos na informação profissional aliada à troca de experiência entre os próprios familiares. É um processo muito rico”, destaca Dorotéia.

A aproximação com o universo sociocultural de pacientes, familiares e cuidadores acontece, principalmente, em dois momentos. Todas as segundas-feiras, um grupo de pacientes reúne-se num projeto, bem mais antigo que o próprio Centro de Referência do Idoso, intitulado Conversando sobre o envelhecer. Nesse dia, eles compartilham atividades – como oficinas de música, de pintura, de artesanato, de crochê – e discussões sobre o envelhecimento, de uma maneira geral. Para a felicidade de dona Carmem Efigênia Santos, 83 anos, o projeto está consolidado e reúne regularmente um grupo de idosos que vai ao Ambulatório Bias Fortes não somente para consultas ou exames.

“Não troco esse grupo por nada. A gente conversa, aprende, brinca. É uma felicidade enorme”, diz dona Carmem. Costureira desde os 11 anos e viúva há mais de 40, ela conta que não teve muito tempo na vida para se divertir e que, ainda hoje, “pega uns bicos”. Pouco acostumada a pensar em si mesma, dona Carmem levou um susto quando se descobriu doente. “Há dez anos, tive um caroço no seio. Foi difícil, mas fui muito bem tratada no Hospital das Clínicas. Aí, conheci o grupo, comecei a freqüentá-lo e me senti mais forte. É bom demais e não pretendo largar de jeito algum“, garante.

Nas quintas-feiras, é a vez do encontro do Grupo de Apoio aos Familiares dos Portadores de Alzheimer, formado no Centro de Referência do Idoso para dar suporte a pessoas como dona Maria Ilza. “O José chegou a tomar dez medicamentos diferentes para controlar a agressividade. Ele é quem tinha Alzheimer, mas eu não agüentava mais e fui ficando doente. Aí, o médico dele me encaminhou para a assistente social. Dorotéia me ajudou muito, porque, antes, eu só tinha raiva do que estava acontecendo. Mas fui enxergando a doença de outra forma e consegui sobreviver ao problema”, lembra.

O marido de dona Maria Ilza já passou por fases muito diferentes desde o diagnóstico de Alzheimer e, numa delas, era praticamente impossível para os familiares levá-lo ao Ambulatório Bias Fortes para o tratamento. “Ele parou de andar e os médicos vieram à nossa casa. Vinha todo mundo, fisioterapeuta e até fonoaudiólogo. O José foi muito bem tratado. Depois, eles viram que a gente estava também cuidando muito bem dele. Aí os médicos pararam de vir e a gente voltou a levá-lo lá, onde ele é atendido todo mês e abrimos a oportunidade para outras pessoas necessitadas”, diz ela.

Atenção em casa O atendimento recebido por seu José faz parte do Programa de Atenção Domiciliar do Hospital das Clínicas, em que pacientes com doenças graves e crônicas, com dificuldade de circulação, e portadores de incapacidades permanentes ou temporárias são privilegiados. Para participar do Programa, que não é uma exclusividade do Centro de Referência do Idoso, mas um serviço oferecido pelo Hospital das Clínicas, em geral, explica Dorotéia, é preciso que o paciente se encaixe em critérios bem definidos – como ser egresso do Hospital e permanecer vinculado ao atendimento clínico de origem.

O Programa é uma modalidade de assitência que prevê uma equipe interdisciplinar, com atenção integral ao paciente e à sua família, bem como considera que, em determinados momentos do tratamento, é preciso que o doente receba os cuidados em casa. A equipe de profissionais, com visitas uma vez por semana ao domicílio do paciente, orienta e cria condições efetivas para que os cuidadores e familaires exerçam seu papel de maneira adequada.

“Eu não tenho de que reclamar, sempre deu tudo muito certo”, insiste dona Maria Ilza, para quem seu José continua sendo o marido afetuoso de antes. “Tem gente que acha que ele não percebe nada, não conhece mais ninguém. Mas eu sei que ele me reconhece em alguns momentos e sabe que estou por perto. Nas quintas-feiras, quando vou ao encontro, tento passar a força e a esperança que tenho e que consegui freqüentando o Grupo. Acho que tenho garra e quero que os outros também tenham, porque depois que a gente aprende a lidar o problema, tudo fica mais fácil”, reafirma dona Maria Ilza.

Consciência Para Luzia Tereza da Silva, 46 anos, o Centro de Referência do Idoso teve influência semelhante no seu dia-a-dia de cuidadora da sogra, Maria Palhares da Silva, de 85 anos, também vítima de Alzheimer. “A doença evoluiu muito rápido depois que os sintomas apareceram. Quando soube da existência do Centro, eu e meu marido começamos a participar das reuniões, antes mesmo da primeira consulta de dona Maria”, lembra ela. “As reuniões deram à família consciência do problema, ainda que alguns parentes próximos tenham grande resistência em aceitar a doença e o tratamento”, diz. “Dona Maria sempre foi uma pessoa muito importante para mim. Ela pode não saber da sua própria identidade, mas nós sabemos quem ela é e sempre foi. Agora, quem tem de ajudar somos nós”, assinala.

Segundo Luzia, o Centro de Referência do Idoso levou-a a encarar a realidade da paciente e, portanto, suas limitações. “Eu percebi e aprendi que posso transmitir tranqüilidade, mesmo nos momentos mais difíceis”. Com consultas mensais, dona Maria é assistida de perto pelos médicos, enquanto Luzia participa ativamente dos encontros do Grupo de Apoio aos Familiares de Portadores de Alzheimer.

Sempre que pode, Luzia encarrega-se de divulgar as informações que recebe no Centro de Referência do Idoso. “Conto para as pessoas, passo fita, distribuo informativos. A visão que eu tinha do idoso mudou muito depois de participar dos encontros”, assegura.

Mantendo a vida ativa na maioridade

Há 13 anos, o Centro Cultural da UFMG abriu as portas para um dos mais bem-sucedidas iniciativas de extensão da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (EEFFTO). O Projeto Maioridade: Universidade Aberta para a Terceira Idade atrai uma população de idosos que, a partir desse espaço de convivência, cria uma nova rede de relações sociais.

É o que explica uma de suas coordenadoras, a professora do Departamento de Terapia Ocupacional, Marcella Guimarães Tirado, acrescentando que o projeto tem uma programação muito dinâmica, englobando aulas práticas e teóricas, conferências, mesas-redondas e oficinas. Ele acontece de agosto a dezembro, com atividades duas vezes por semana, durante três horas por dia. Realizado em módulos, o projeto invoca temas como Envelhecimento e Saúde, Movimento e Qualidade de Vida, Aspectos Psicológicos e Sociais, Cotidiano e Cultura.

Segundo Marcela, a proposta é estimular a participação do idoso nas atividades sociais, em busca de uma melhor qualidade de vida. “Recebendo mais informação, não só sobre o envelhecimento, eles ficam mais antenados sobre assuntos diversos”.

Nessa ótica, os participantes do projeto desenvolvem o interesse tanto pelas novidades na área da saúde quanto pelos avanços tecnológicos em outras áreas, o que amplia o repertório de assuntos para que façam novas amizades, inclusive pela Internet”.

Para participar do Projeto Maioridade, a pessoa tem que ter mais de 60 anos. As inscrições são feitas nos meses de junho e julho, por intermédio da Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep). A taxa mensal é de R$ 50, mas os candidatos podem pleitear bolsa.

 

O país do futuro envelheceu

A mudança de atitude diante do envelhecimento é uma urgência não só para quem lida com essa realidade em família. “É uma questão para toda a sociedade”, afirma o professor José Alberto Magno de Carvalho, (leia artigo) diretor do Centro de Desenvolvimento e Planejamento da Economa Regional (Cedeplar), da Faculdade de Ciências Econômicas (Face). “É um dos maiores desafios da atualidade, porque a população brasileira envelhece a passos largos”, destaca. Ele explica que o envelhecimento de uma população está associado à mudança em sua estrutura etária, atestado por um peso maior do número de pessoas que atingem a velhice, o que pode variar de uma sociedade para outra.

Ao contrário do que o senso comum dita, não é, necessariamente, o declínio da mortalidade em uma população que produz uma grande proporção de idosos. Esse fenômeno aconteceu em países do Primeiro Mundo e o que o provocou foi o rejuvenescimento da população, pois a queda da mortalidade atingiu prinicipalmente os mais jovens, levando, com isso, um número maior de mulheres ao final do período reprodutivo e, em conseqüência, a um número menor de nascimentos.

O envelhecimento da população, como fato provocado pelo declínio da mortalidade, acontece quando esse declínio se concentra na faixa de idade mais avançada. Entretanto, segundo o diretor do Cedeplar, o envelhecimento populacional está diretamente ligado à queda da taxa de fecundidade, um fenômeno que assusta países em diferentes continentes. No Brasil e em outros países do Terceiro Mundo, entre os anos 30 e 60 do século passado, houve um declínio da mortalidade, porém a fecundidade manteve-se alta, caracterizando uma “explosão demográfica”.

O país assistiu, porém, a uma mudança demográfica muito significativa a partir do final da década de 1960. Até ali, a taxa de fecundidade era estável e a população brasileira, extremamente jovem – mais de 50% abaixo de 20 anos e apenas 3% acima dos 60. O quadro modificou-se de forma acelerada, a ponto de a taxa de fecundidade de 5,8 filhos por mulher, comprovada no Censo de 1970, ter baixado em 2000 para 2,3 filhos.

Essa queda abrupta é muito preocupante, informa o professor José Alberto, porque a taxa de fecundidade brasileira está, atualmente, bem próxima da de reposição (2,1%) – “aquela que produz, a longo prazo, crescimento nulo da população”. O Brasil não é o único a viver o problema. Países da Europa Ocidental e outros – como Rússia, Austrália, Sri Lanka, Cuba, Uruguai, México e “tigres” do Sudeste Asiático estão no mesmo barco.

No caso brasileiro, foi constatado que parte da população já se encontra abaixo desse nível de reposição e o declínio da taxa de fecunidade vem sendo registrado inclusive em grupos de mulheres mais pobres e na Região Nordeste, onde o índice era maior. Esse estreitamento da base da pirâmide assinala a desestabilização da estrutura etária do país e aponta para o envelhecimento da população. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, o Brasil terá uma população com 9,8% de idosos; cinco anos mais tarde, serão 11,14%, e, em 2050, serão 24,6%, correspondendo a mais de 64 milhões de pessoas.

Grande chance Os números demonstram, pois, uma tendência de queda continuada na taxa de fecundidade brasileira e o conseqüente aumento do número absoluto de idosos. Apesar disso, José Alberto não é um demógrafo pessimista. Ao contrário, ele avalia que, em face das condições atuais, o Brasil pode estar diante de uma grande chance. Para ele, a situação cria oportunidades, pois, devido à queda na demanda e serviços oferecidos pelo Estado, haverá mais disponibilidade para investimento público em educação, o que, pondera, é essencial para um futuro mais promissor.

“O fato favorece uma política de investimento em crianças e jovens. O problema se agrava é quando essa política inexiste”, ressalta o diretor do Cedeplar, destacando que a população economicamente ativa tem que estar preparada para cuidar de um número cada vez maior de idosos. “Agora, na educação, não temos que nos preocupar apenas com quantidade, mas com qualidade. A economia moderna exige essa qualidade, não só por razões afetivas, mas pragmáticas”, sustenta.

O outro lado O outro lado dessa mesma moeda é a Previdência Social e os serviços públicos, especialmente o de saúde. “É claro que existe uma pressão provocada por uma demanda diferenciada da de antes e que exige um olhar muito mais aprofundado para a faixa etária mais avançada”, afirma José Alberto. “Afinal”, acrescenta, “menos filhos significam menos pessoas para olhar pelos idosos nas famílias”. Um desafio que não deve ser enfrentado pela boa vontade individual, mas por toda a nação.

Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 3 - nº. 8 - outubro de 2005