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UFMG Diversa

Revista da Universidade Federal de Minas Gerais

Ano 8 - nº 17 - agosto de 2009 Cidades

Artigo

A cidade em crise

Carlos Antônio Leite Brandão
Professor de História da Arquitetura da UFMG, diretor do Ieat/UFMG e pesquisador do CNPq

Os espaços físicos urbanos e mentais são, por excelência, do domínio público em que se movimenta a cidade e a sociedade. Isso aponta, de imediato, a necessidade de pensar e promover como seu bem maior a coisa pública, a res publica. E aí repousa, justamente, a maior dificuldade: o domínio público tem perdido seu lugar na sociedade urbana contemporânea. A perda da dimensão pública de nossa existência é o maior desafio enfrentado para a implementação de ações destinadas a preservar a cidade enquanto pólis e urbe.

Essa crise foi longamente germinada e intrínseca à própria formação das sociedades modernas e se traduz na progressiva restrição do espaço público. Diariamente, vemos pessoas reclamarem dos prejuízos causados à qualidade de seu meio ambiente particular, como a inserção de um poste, a derrubada de uma árvore, a falta de segurança no bairro, o excesso de ruído, a poluição ou a mudança no fluxo viário em seus arredores. Tais reclamações são válidas, mas cumpre verificar com que caráter o problema da qualidade de vida comparece nelas: são desconfortos sentidos apenas na medida em que interferem no espaço particular dos reclamantes.

É legítimo pensar que os problemas da cidade estariam resolvidos se solucionados todos esses particulares, imediatos e contingentes. Contudo, pensar a cidade como coisa pública impõe constituir um espaço e uma mentalidade que contradizem ou vão além daquilo que se mostra mais adequado a uma mentalidade restrita ou a um espaço particular. A questão mais problemática é a perda de sentido da dimensão e do espaço público de nossa existência. A crise do ambiente em que vivemos não é de planejamento e técnica, mas, sobretudo, uma incapacidade de “habitar” o mundo público. Habitar um lugar é identificar-se com ele, promover a possibilidade de que ele nos conduza a uma vida feliz e confira sentido à nossa vida. O maior problema das cidades é que não mais a compreendemos como o lugar doador de sentido à nossa existência. Estamos perdendo a capacidade de habitar o mundo, de fazer das cidades o lugar familiar e adequado ao aprimoramento de nossos corpos e espíritos e dos usos e hábitos de nosso tempo. Em vez de lugar da liberdade, a cidade tem-se transformado em lugar do gozo e do consumo.

Habituamo-nos a pensar o espaço público como extensão do privado e a cidade em função do indivíduo. É certo que a pólis deve abrigar a dimensão do privado, onde constituímos nossa vida particular, mas também é certo que a constituição de um mundo comum e político fornece ao indivíduo uma tradição e uma identidade, nas quais ele se reconhece e dialoga com o outro.

Thier Machado Thier Machado

Esvaziamento

O homem só se torna homem quando reconhece e vivencia a parte que lhe cabe num drama mais amplo em que, além de representar um papel, ajuda a criá-lo. Por isso, a maior punição para um cidadão grego era o exílio, o ostracismo; e a maior glória, morrer na luta por sua cidade. Se, por um lado, ainda sentimos o apelo dessa destinação pública de nossas ações e somos capazes de pensá-la e fazê-la instrumento desse discurso, por outro, são cada vez mais difíceis as maneiras de concretizar esse destino. A cidade deixou de ser o lugar do diálogo e do encontro. Ela não é nem mais o lugar onde se acumulam os avanços da técnica. A eletricidade, o rádio, a tv, o automóvel, o celular, o computador e a internet tenderiam a esvaziar as cidades, e não a inchá-las, como vislumbrava o arquiteto Frank Lloyd Wright.

Aqui me sirvo da história da arte e da arquitetura, do parâmetro crítico representado pelas cidades renascentistas, como Florença, no século 15, para refletir sobre o papel transformador de uma cidade. Foram justamente a consciência e a necessidade de construir um espaço público que fizeram dessas cidades verdadeiros embriões das sociedades modernas, contrapondo-se com vigor às sociedades feudal e agrária.

Ameaçada continuamente pelo exército de Milão, Florença se viu obrigada a persuadir os cidadãos a engajarem-se no projeto da defesa de sua liberdade. Diante da demonstração de que essa liberdade é o seu bem mais precioso, cada cidadão envolve-se com a defesa da cidade. E vai além: procura uma identidade para sua comunidade, recupera a tradição artística do mundo clássico italiano e providencia o encontro do povo florentino com sua própria história. Multiplicam-se, através da arquitetura e do urbanismo, as instituições e os espaços públicos, como os grandes pórticos onde todos se encontravam. As cidades e as novas tipologias espaciais úteis a todos substituíram as fechadas fortalezas, claustros, castelos, torres e igrejas medievais e promoveram os lugares da comunicação, da linguagem, do diálogo, da festa cívica, da troca de experiências e do compartilhamento de uma origem e de um objetivo comuns a todos os cidadãos: a cidade é o desenvolvimento da ágora grega, não a extensão do domínio privado.

Esse vigor florentino do início do século 15 rapidamente cede lugar à apatia, tão logo passa a ameaça milanesa e Lourenço de Médicis assume o projeto de se perpetuar no poder, desencorajando a participação dos cidadãos nos negócios públicos e afastando-os da gestão citadina. A lição florentina é fecunda: a mobilização social, a arquitetura urbana e a pólis incrementaram-se diante da iminente perda da liberdade. Talvez o que esteja em jogo seja também o sentimento da perda da liberdade promovida pelo avanço feroz do interesse privado e dos prazeres imediatos sobre o domínio público e a satisfação do espírito. Desprovida desse sentido, a cidade tem sido considerada apenas como valor de troca e circulação de mercadorias. O mesmo tem ocorrido com nossa maneira de ver e construir as casas em que habitamos, mais determinadas pelo valor de troca do que pelo de uso.

Crê-se que o fim da administração pública está em gerir os recursos de modo eficiente. Ora, a eficiência na gestão de recursos é meio, e não fim, da ação política. O fim estaria justamente na construção do espaço da cidade como lugar do diálogo, da liberdade, do aprimoramento e realização de cada um. São justamente a discussão e a perseguição desse fim que desaparecem quando substituímos a ideia do governo promotor do bem público pela do governo eficiente na gestão de recursos.

Voz e riqueza

O cidadão, figura central do movimento da pólis, também está se perdendo e sendo substituído pela figura do contribuinte e do consumidor. É na condição de contribuinte ou consumidor de serviços, por exemplo, que se reivindica a preservação da qualidade de vida, a obtenção da segurança e o afastamento do jogo político de alguns profissionais da economia informal. Se a qualidade de vida só pode ser requerida pelo contribuinte e consumidor, ela não é comum a todos, mas apenas a um grupo de cidadãos cuja voz é mais forte quanto maior a sua riqueza.

A cidade é mais do que um espaço físico, e o problema da qualidade de vida vai além da questão ambiental. A cidade é um espaço ético. Desenvolver essa noção é o propósito preliminar de um modelo ainda a ser implantado e que tem como vértice a educação das pessoas para o agir ético dentro de uma sociedade em que a virtude pública constitui o horizonte privilegiado de nossas visadas. Fisicamente, acreditamos morar em cidades; espiritualmente, habitamos não-cidades, espaços privados onde estamos, mais do que tudo, “privados” de liberdade.

Liberdade não é prolongar para o público aquilo que fazemos e desejamos na intimidade, mas a possibilidade de darmos um destino público às nossas ações e desenvolver plenamente as nossas potencialidades na medida em que as dirigimos à comunidade à qual pertencemos. Isso só é possível quando nosso trabalho escolhe destinar-se ao outro, permitindo-nos transcender a finitude de nossa existência particular e de nossa temporalidade mortal.

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Revista Diversa nº 17
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