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UFMG Diversa

Revista da Universidade Federal de Minas Gerais

Ano 8 - nº 17 - agosto de 2009 Cidades

Entrevista

“A cidade deve ser fonte de fruição da vida plena”

Itamar Rigueira Jr. (*)

Filipe Chaves e Foca Lisboa Filipe Chaves e Foca Lisboa

O economista Fernando Pimentel é um dos principais responsáveis pelo modelo de gestão urbana em vigor em Belo Horizonte. Nos 16 anos em que PT e PSB se revezam à frente do executivo municipal, ele foi secretário da Fazenda e de Governo, Planejamento e Coordenação Geral, vice-prefeito e prefeito, entre 2001 e 2008. Deixou a Prefeitura com mais de 80% de aprovação e com o futuro político indefinido. “Pode ser que eu saia candidato no ano que vem. Mas isso depende do partido, das alianças”, diz o ex-prefeito, sem entrar em detalhes sobre os seus planos. Ele é um dos nomes mais fortes do PT ao governo de Minas, mas enfrenta, no próprio partido, um concorrente de peso: o ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias.

Ao concluir seu mandato, Pimentel, que é professor assistente da Faculdade de Ciências Econômicas, pensou em reassumir suas funções na Universidade. Desistiu.“Cheguei à conclusão de que não tem jeito de compatibilizar e pedi licença não-remunerada”, afirma ele, que hoje atua como consultor, emprestando sua experiência a outros gestores que se deparam com desafios parecidos com aqueles que enfrentou na Prefeitura da capital mineira.

É com base na sua trajetória de prefeito e em outras experiências de gestão urbana espalhadas pelo mundo que Pimentel emite uma opinião taxativa sobre o futuro das cidades. “Temos que descobrir outra funcionalidade para elas”, propõe. Para ele, a lógica que ditou a formação dos centros urbanos a partir do século 19 – baseada na aglomeração de pessoas para produzir e consumir – está exaurida. “Só que estamos aglomerados e vamos continuar assim. A pergunta fundamental é: para que serve a cidade?” Uma pergunta complexa, mas que ele tenta responder nesta entrevista à reportagem de DIVERSA, concedida no final de maio.

As cidades estão em crise?

O fenômeno urbano tem cerca de 200 anos. É muito recente se compararmos com a existência da espécie humana, que está há cerca de 200 mil anos habitando e dominando o planeta. Durante todo esse tempo, os homens lidaram com a vida e sua sobrevivência de forma diferente daquela que regula o funcionamento das cidades. Essa é uma constatação relevante, associada até com o nosso aparelho biológico. A máquina humana foi moldada ao longo dos anos para situações que não têm nada a ver com a vida urbana. O sujeito primitivo saía a campo para caçar e, quando se deparava com uma situação de perigo, recebia uma descarga de adrenalina violenta que o preparava para enfrentá-la. Mas isso ocorria de três em três dias, de semana em semana, quando saía para caçar, ou defrontava com algum inimigo natural, e eventualmente com alguma tribo adversária. A máquina do homem moderno é diferente. Agora você sai na rua, para ali na calçada, esperando o sinal abrir. Passa um carro ao seu lado, a 90 quilômetros por hora, sua adrenalina vai lá em cima. Surge então um negócio chamado estresse que ninguém sabe direito o que é. A humanidade está diante de um fenômeno novo com o qual ainda não sabe lidar direito. Além disso, ela aderiu ao modo urbano de ocupação do planeta em função de necessidades econômicas que não existem mais.

Que necessidades são essas?

Até o advento do capitalismo industrial, o mundo abrigava poucas grandes cidades: Roma, na Antiguidade, uma ou outra cidade-estado na Grécia. A maioria das pessoas vivia no campo. Depois vem o mercantilismo e essa situação perdurou com uma, duas ou três grandes cidades na Europa; uma ou duas na Ásia e nenhuma na América. O capitalismo industrial impôs a necessidade de aglomerar mão-de-obra num só local, de produzir mercadoria e de reunir pessoas para consumir. É no século 19 que as cidades se proliferam. Mas, agora, no século 21, está claro que não precisamos mais delas para executar essas funções. As empresas maiores, por exemplo, fogem das grandes cidades, preferem centros menores. De solução, os grandes aglomerados se transformaram em problema para a instalação de indústrias. E o mercado consumidor? Com o avanço da tecnologia, não é preciso ter aglomerado em lugar algum. As pessoas compram pela internet, dispõem de uma logística que entrega o que quiser na porta de sua casa em 24 horas. É só me dar um número de cartão de crédito que mando levar qualquer coisa a qualquer lugar. Enfim, não precisamos nos aglomerar para produzir nem para consumir. Só que estamos aglomerados e vamos continuar assim. A pergunta fundamental é: para que serve a cidade?

E qual é a resposta para essa pergunta?

Temos que descobrir outra funcionalidade para as cidades, e acredito que esse processo parte de um princípio fundamental: a cidade deve ser fonte de fruição da vida plena. Da vida humana em seu formato integral – das relações humanas, da educação das outras gerações, da busca do prazer coletivo e compartilhado, da harmonia e da segurança. Se não seguir nesse sentido, estamos no caminho errado. Como não é possível desconstruí-las, só tem um jeito: vamos dar às cidades a nova funcionalidade imposta pelo século 21 e que tem pouco a ver com mercado e a produção; tem pouco a ver com o passado e tem tudo a ver com o futuro. Todo o esforço feito por urbanistas, planejadores e gestores públicos vai nessa direção. Que monstro é esse que construímos, que só serve para gerar insegurança, desconforto e poluição? As cidades precisam ser reinventadas.

Foca Lisboa Foca Lisboa

Há uma tensão entre planejamento (que é necessário) e o improviso que caracteriza a ocupação do espaço urbano. Como acomodar essa tensão?

O processo de reinvenção das cidades precisa recuperar uma noção antiga que acabou perdida ao longo da história da humanidade. A cidade é o palco, por excelência, da democracia. A democracia surgiu na Grécia, onde floresceram as cidades-estado, a pólis grega. Lá as pessoas perceberam que só seria possível viver dentro de um formato democrático. A democracia é um território da busca da convergência, do consenso. Alguns dizem que é o território da divergência. Não, não é. Na democracia, a divergência é uma etapa para chegar ao consenso. Democracia não é conflito, confunde-se aí o meio com o fim. O conflito é o meio para se chegar a um fim, que é vivermos todos razoavelmente acomodados no mesmo lugar. A forma de conciliar essa tensão entre planejamento e a coisa meio improvisada é pelo convívio democrático, algo que as cidades de ponta praticam à exaustão. Belo Horizonte, por exemplo, tem mais de 60 conselhos municipais, que fazem exatamente isso: conciliar planejamento e espontaneidade. Temos conselho de transporte, de educação, de saúde, do meio ambiente, do patrimônio, da infância e da juventude, da terceira idade... Eles abrigam representantes da sociedade civil, do Executivo, do Legislativo e em alguns casos até do Judiciário e do Ministério Público.

Outro exemplo – que talvez seja a melhor política de acomodação dessa tensão – é o orçamento participativo. O gestor municipal põe os técnicos, que sabem planejar e executar uma obra, em contato com a população, que quer a obra, que vai se beneficiar dela. O técnico fala: “tem que fazer a obra desse jeito”. Aí vem a população e diz: “desse jeito não serve para nós, assim não queremos”. É esse debate que gera o avanço.

Algumas cidades, apesar de jovens, já são alvo de processos de revitalização. O que ocorre, no entanto, é que, em muitos casos, essa revitalização (vide o caso do Pelourinho, em Salvador) é feita à custa da expulsão de moradores pobres de lugares que são alvo de algum tipo de intervenção urbana. É possível revitalizar sem excluir?

O Pelourinho é, na verdade, o antiexemplo. Foi, de fato, um processo muito autoritário. É possível, sim, revitalizar e incluir. Por isso, a cada momento, é preciso refazer a nossa opção pela democracia. Um gestor público pode revitalizar um lugar apoiando-se em instrumentos autoritários. Mas o resultado não é bom, e o caso do Pelourinho é prova disso. Simplesmente, porque a revitalização com viés autoritário acaba excluindo as pessoas, o que nem sempre fica claro na cabeça do arquiteto, do planejador e até do gestor público. Não se pode revitalizar pensando na beleza estética do lugar, mas como meio de propiciar o bem-estar das pessoas.

Revitalizar é dar um novo tratamento. É o que foi feito, por exemplo, em Puerto Madero [antigo porto de Buenos Aires transformado em centro gastronômico e de lazer noturno] e em outras zonas de docas em cidades mais antigas. Em Belo Horizonte, não há docas, mas temos a área central, alvo do Centro Vivo, projeto da Prefeitura de recuperação de prédios, calçadas e praças. Tínhamos um grande entrave para lançar o projeto, a presença dos camelôs nas ruas da cidade. Chegamos a ter 2,5 mil camelôs em Belo Horizonte e eles deixaram as ruas entre 2003 e 2004. Mas o processo começou em 2001. Levamos três anos para conseguir isso. Não se pode tirar um camelô da rua de qualquer jeito. Primeiro, porque ele sobrevive daquilo, segundo porque a atividade que ele exerce – bem ou mal – está associada a uma dinâmica do centro da cidade. As pessoas compram dos camelôs. A solução foi construir os shoppings populares utilizando grandes espaços que existem em toda cidade grande. Os camelôs passaram a ocupar tais espaços, que oferecem segurança, iluminação e outras vantagens.

Outro exemplo de revitalização não-excludente é o Vila Viva, o maior programa de urbanização de favelas do Brasil e um dos maiores do mundo. Ele parte do pressuposto de que é preciso urbanizar, revitalizar o espaço degradado das favelas, sem tirar as pessoas de lá. O Vila Viva inspirou o PAC Favela, do governo federal.

Filipe Chaves Filipe Chaves

Há quem tema pela governabilidade das grandes metrópoles e defenda que cidades maiores sejam divididas em municípios menores. Essa é uma solução?

Definitivamente, não. O Brasil tem municípios demais, são 5.500. Não é funcional, porque eles representam custo político e administrativo altíssimo. Uma cidade pequena, que não gera receita e vive apenas de repasses dos governos federal e estaduais, acaba fazendo uso desses recursos para montar uma estrutura político-administrativa, o que é inviável. Temos, no Brasil, três mil municípios com menos de 20 mil habitantes. A rigor, uma cidade desse porte não é uma cidade. Ela é um aglomerado urbano, mas não pode ter o mesmo estatuto político que as outras. Até porque ela jamais vai ter receita própria suficiente pra sobreviver como tal. Imagino – embora não tenha dados sobre isso – que nenhum município brasileiro com menos de 20 mil habitantes cubra o custo de sua estrutura política com receita própria (IPTU, ISS e taxas municipais). Essa despesa é bancada com repasses do ICMS e dos impostos federais.

Mas não seria mais fácil administrar uma cidade como Belo Horizonte se ela fosse dividida em municípios menores?

Essa é uma ideia do passado, que remonta ao século 19 e que sobreviveu durante o século 20. Que ideia é essa? A de que o governo é melhor quando está fisicamente perto do cidadão. No século 21, essa noção não serve mais. Veja o caso do presidente Lula. Ele está muito mais perto do cidadão brasileiro do que muitos prefeitos e governadores que conheço. O cidadão se sente identificado com ele, já o viu tantas vezes e sabe que dispõe de muitos canais para chegar a ele. É uma bobagem essa ideia de ter a prefeitura pertinho da casa do sujeito. O que precisa estar fisicamente próximo é a prestação do serviço público. Em nome da proximidade física do governo, municípios de grande extensão territorial foram subdivididos e redivididos. E isso não é funcional.

Falta autonomia aos prefeitos?

A Constituição de 1988 deu muita autonomia para o município, que se tornou ente federativo. Isso significa que, do ponto de vista da República, prefeito, governador e presidente estão mais ou menos em pé de igualdade. Os três são chefes de executivo com claras atribuições constitucionais. E um não pode interferir na vida do outro. Pode interferir para ajudar, nunca para atrapalhar. Pelo menos em regra é assim. Na Constituição está escrito, por exemplo, que o transporte coletivo é obrigação do município. Um prefeito não pode impedir que uma linha de ônibus que parta de outra cidade entre no município que administra, mas se quiser, ele não deixa que se instalem pontos de parada ao longo do trajeto e ganha a causa na Justiça.

Essa questão do ônibus não pode ser tomada como um exemplo de serviço que continua sendo gerenciado como se fosse problema de cada prefeito e não problema de amplitude metropolitana?

Minas talvez seja o estado que mais avançou nessa questão da integração metropolitana. Mudamos a Constituição do estado, por meio de uma emenda do então deputado Roberto Carvalho, hoje vice-prefeito de Belo Horizonte. O vice-governador Antônio Anastasia cuida disso muito de perto, com um espírito muito mais avançado do que está posto na maioria dos estados e até do que está na Constituição Federal. O que a Constituição determina é o seguinte: nas regiões metropolitanas, é obrigatório que se tenha um órgão chamado Assembleia Metropolitana para dirimir as dúvidas, brigas e querelas entre os prefeitos. Aqui, ela reúne os 34 municípios da Grande BH. Só que antes o peso do voto do prefeito de Belo Horizonte, com 2,5 milhões de habitantes, era o mesmo do de Sarzedo, com 23 mil pessoas, ou do de Mário Campos, com 11 mil. Foi assim durante muito tempo, até que dois ou três anos atrás veio essa emenda que criou outro formato de Assembleia Metropolitana. Os prefeitos das cidades menores representam um terço, o outro terço é do governo do estado e o último terço cabe aos prefeitos das três maiores cidades – Belo Horizonte, Contagem e Betim. Aí ficou equilibrado. Antes, havia o complô dos prefeitos das cidades pequenas para derrotar qualquer proposta das cidades maiores, o que ficava muito claro, por exemplo, no setor de transporte.

A falta de recursos costuma ser apontada pelos prefeitos como o principal limitador de uma boa gestão urbana. Isso é fato ou desculpa para encobrir outras deficiências?

Sim, faltam recursos, mas em que sentido? Se você pesar bem, vamos chegar à conclusão de que os encargos para os municípios previstos pela Constituição Federal não são financiáveis com os orçamentos de que eles dispõem. Hoje a maioria dos serviços públicos que interessam diretamente à vida do cidadão é bancada pelo município: limpeza pública, educação infantil e boa parte da fundamental, e saúde. Alguém pode argumentar que saúde é SUS, financiado pelo governo federal, que manda dinheiro para os municípios. Manda, mas não dá. Belo Horizonte, por exemplo, além do dinheiro do SUS – que é muito, quando eu era prefeito chegava a quase R$ 400 milhões por ano – tinha que empregar 20% do seu orçamento próprio para custeio da saúde. Nós podíamos investir, e os que não podiam? Educação, saúde, transporte, trânsito, tudo isso é do município. Os municípios recebem dinheiro suficiente para isso? De jeito nenhum. Conseguem arrecadar o suficiente para isso? Em sua grande maioria, não. Então o problema é falta de recursos? Sim e não. Há exemplos de municípios que possuem recursos abundantes e não resolvem seus problemas. Não basta ter dinheiro. O que faz uma cidade ser melhor do que as outras é a forma como ela se organizou para diagnosticar os problemas, encontrar soluções e implantá-las.

Um exemplo de que dinheiro não é tudo: São Paulo, a cidade mais rica e poderosa do Brasil, é a que tem os problemas urbanos mais graves. São Paulo tem dinheiro – e muito –, mas não consegue resolver seus problemas. Tem a ver com a qualidade dos políticos? Os técnicos de lá são piores? Não é isso. Os paulistas não conseguiram resolver problemas que nós aqui em Belo Horizonte já resolvemos. Por quê? Há quase 20 anos Belo Horizonte vota na mesma direção, elege gente comprometida com o mesmo projeto. Não é questão partidária e sim do perfil e do tipo de engajamento do governo municipal. Outro exemplo semelhante ao nosso, só que de vertente de centro-direita: Curitiba. A cidade fez sua escolha. O PT nunca ganhou lá e a cidade vai muito bem.

Voltando a São Paulo: seus cidadãos não podem se queixar de seus administradores se, a cada quatro anos, mudam de ideia. Paulo Maluf, Erundina, Pitta, Marta e Serra. Assim, sem continuidade, não há quem aguente.

Belo Horizonte à parte, que outras experiências de gestão urbana o senhor destacaria?

Curitiba é um bom exemplo. Fora do Brasil, Paris está fazendo um investimento importante. Barcelona é outro caso interessante. Vem investindo em outra forma de mobilidade – baseada na bicicleta – que não depende de combustíveis. Aqui na América do Sul temos o exemplo de Bogotá, que recuperou uma ideia em moda no início dos anos 70 e que depois caiu um pouco de uso, as vias exclusivas de ônibus urbanos, lá chamadas de Transmilênio. Trata-se de um modelo de ônibus movido a óleo diesel que circula em pistas especiais [canaletas], de concreto, semelhantes ao que estamos fazendo aqui na avenida Antônio Carlos. É uma solução muito mais barata do que o metrô. Bogotá resolveu o problema do transporte urbano em grandes corredores com essas linhas.

É nas cidades que surgem as experiências mais inovadoras de gestão. Presidente e governador lidam com os problemas, mas sempre de forma mais distante. Com o prefeito é diferente. Cai no colo e ele tem que resolver. Um exemplo: quem está discutindo para valer a questão do lixo, um grande problema da humanidade que vai se tornar mais grave daqui para frente? São os prefeitos, que buscam soluções confiáveis, baratas e sustentáveis. De vez em quando, aparece um cientista com uma solução belíssima, mas que custa 30 vezes mais do que o orçamento da cidade.

Medellín investiu em segurança...

Sim, mas Medellín é um caso à parte, porque contou com ajuda pesada do governo federal. É o que o Brasil deve fazer em relação ao Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro é um problema nacional, não dos cariocas. É a porta de entrada do Brasil. É obrigação de todo brasileiro cuidar do Rio.

(*) Edição: Flávio de Almeida

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Revista Diversa nº 17
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