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UFMG Diversa

Revista da Universidade Federal de Minas Gerais

Ano 8 - nº 17 - agosto de 2009 Cidades

Aglomerados

A reinvenção da favela

Léo Rodrigues e Luiza Lages

Especialistas refutam antagonismo entre a cidade formal e a informal

Nos anos de 1980, ela ganhou a mídia, ocupando as primeiras páginas dos jornais e o horário nobre do noticiário televisivo. Na década de 1990, foi a vez de a academia voltar suas atenções para a favela, o que resultou em aumento exponencial do número de pesquisas produzidas. O interesse, no entanto, não se traduziu necessariamente numa visão plural e ampliada daquele fenômeno social. O que se via – tanto de parte da mídia quanto da academia – era um enquadramento enviesado. A primeira retratava a favela pela ótica da violência, da criminalidade e do tráfico de drogas. E a academia, por sua vez, reforçava o estigma da favela como território da pobreza e da ilegalidade.

É contra essa generalização que se insurge o livro A invenção da favela, da pesquisadora Licia Valladares, graduada em Ciências Sociais pela PUC-Rio e doutora pela Universidade de Toulouse, na França. Hoje ela trabalha como pesquisadora do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e como professora da Universidade de Lille, também na França. A primeira vez que Licia Valladares pôs os pés numa favela foi em 1966, então com 20 anos, e, desde então, o ambiente transformou-se em um de seus principais temas de estudo. A obra, lançada em 2005 pela editora FGV, propõe uma “sociologia da sociologia” da favela carioca, cobrindo os mitos criados desde a origem até o momento atual. Mas como falar de uma favela inventada? Estaria ela negando a existência de uma segregação socioespacial das grandes cidades brasileiras?

“Não estou dizendo que as favelas não tenham moradores pobres nem que ali não haja violência. Mas pesquisas que menciono no meu livro apontaram que parte considerável da população pobre está em subúrbios e em loteamentos periféricos, isso sem mencionar os moradores de rua. Violência existe em muitos bairros, e o tráfico de drogas não se limita aos morros ocupados. Não podemos falar da favela como o lugar que reúne toda a pobreza e a violência. Esses são problemas perceptíveis por toda a cidade”, argumenta Licia Valladares.

Interferência de Rita da Glória em foto de Foca Lisboa Interferência de Rita da Glória em foto de Foca Lisboa

Vizinhos estranhos

Para ela, muitos dos estudos recentes pecam pelo esquecimento ou desconhecimento dos trabalhos pioneiros sobre o tema. Em contraposição, priorizam-se exageradamente os indicadores ditos objetivos, como os dados estatísticos sobre pobreza e violência, entre outros aspectos. A autora justifica que os números não deixam de ser produtos sociais da mesma forma que indicadores considerados “mais subjetivos” alcançados a partir da observação participante e outras metodologias.

O que o livro de Licia Valladares aponta é que muitas das caracterizações da favela são, na verdade, formas como a sociedade percebe e imagina esses espaços, em seus diferentes contextos históricos e políticos. E certas pesquisas acadêmicas tentam transformar tais percepções em dados objetivos. “Quanto mais a violência aumenta, mais os habitantes da cidade formal manifestam seus medos em relação à população das favelas, acentuando uma visão dualista, rapidamente reduzida a formulações como a expressão ‘cidade partida’, cunhada por Zuenir Ventura”, diz a pesquisadora.

Essa ideia de divisão da cidade, na qual a favela seria a outra metade, também é criticada pelo professor de Geografia da UFRJ Paulo César da Costa Gomes. No artigo “Estranhos vizinhos, o lugar da favela na cidade brasileira”, publicado em 2003, ele taxa de simplista o raciocínio segundo o qual a desigualdade social brasileira estaria fundada em dois mundos diversos e antagônicos. O texto sugere que a oposição entre morro e asfalto ou entre bairro e comunidade apresenta a noção equivocada de dois universos que não se misturam. Assim, diz o professor, os valores comumente associados à favela não são exclusivos daquele ambiente. “As razões que dão origem à favela existem no resto da cidade. O fato de ver uma continuidade entre a favela e a cidade pode parecer banal, mas com certeza não o é. Essa compreensão dissolve o raciocínio esquemático estabelecido pela concepção de uma ruptura total entre esses dois espaços”, registra o artigo.

O professor deixa claro, porém, que a ideia de continuidade não pressupõe a inexistência da favela. Mas quais seriam as suas particularidades, já que os seus problemas também podem ser vistos por toda a cidade? Do ponto de vista da ocupação, na favela predomina uma forma espacial particular, com alta densidade de casas, arruamentos irregulares, padrões de edificação derivados da chamada autoconstrução, entre outras características. Do ponto de vista social, ela se caracteriza por uma coesão social reduzida ou menos eficiente. A dificuldade do poder público em atuar nesses espaços faz com que os problemas na favela sejam mais evidentes do que no resto da cidade.

Minha casa, meu destino

A ideia de continuidade entre favela e cidade é respaldada pela professora Silke Kapp, da Escola de Arquitetura da UFMG. Coordenadora do grupo de pesquisa Morar de Outras Maneiras (MOM), ela estuda os processos de autoprodução e autoconstrução de moradias, nos quais os próprios moradores decidem, sem a ajuda de arquitetos e engenheiros, como aplicar o dinheiro e realizar as etapas da construção. Na autoprodução, o morador recorre a pedreiros para realizar a obra. Já na autoconstrução, ele, além de gerir a obra, também põe a mão na massa. O grupo verificou que, embora predomine nas favelas, esse modelo pode ser encontrado em toda a cidade.

Uma das características que evidenciam a continuidade entre cidade e favela é o descumprimento da legislação. Silke Kapp observa que loteamentos ilegais e construções ou reformas sem aprovação prévia não são observados apenas na periferia. “As irregularidades alcançam 90% das edificações. São muitas as residências com algum resquício de descumprimento da lei”, conta.

Para a professora, os processos de autoprodução e autoconstrução têm diversos aspectos positivos. Em primeiro lugar, como não há um projeto bem definido, as decisões são tomadas durante a obra, que pode ser modificada conforme o desejo da família. Além disso, geralmente as edificações constituídas são alteradas constantemente, através de reformas e ampliações. O resultado é uma edificação mais adaptada à forma de vida da família. “Produzir de forma autônoma é tão importante quanto votar. Trata-se de poder escolher, não deixar que outros decidam por você. Diversos teóricos apontam que a relação das pessoas com o espaço determina seu modo de agir. Pessoas que adquirem ou alugam residências produzidas completamente por terceiros tendem a ser mais passivas”, argumenta Silke Kapp.

A professora Maria Lúcia Malard, também da Escola de Arquitetura da UFMG, pensa diferente. Segundo ela, os moradores de favela são, em geral, os mais explorados pela sociedade, ocupando postos de trabalho com cargas horárias exaustivas. “Além de trabalhar, eles são obrigados a construir a própria casa. Isso só acontece porque eles não têm condições financeiras para contratar um especialista. É saudável que toda pessoa possa construir com o auxílio de um arquiteto, embora o projeto deva sempre levar em consideração o desejo do morador”, argumenta Maria Lúcia Malard.

Banco de dados

Silke Kapp concorda que uma assessoria técnica para ajudar as pessoas a evitar problemas com o terreno seria bem-vinda. O próprio grupo MOM está lançando um banco de dados virtual, semelhante ao Wikipédia, no qual arquitetos, engenheiros e construtores autônomos poderão inserir e trocar informações sobre os processos construtivos. No entanto, ela se preocupa com a forma como a Lei Federal 11.888/2008 será aplicada. Aprovada no final do ano passado, a lei prevê assistência técnica gratuita em construções para famílias de baixa renda. “Dependendo de como for implantada, pode beneficiar mais a classe profissional do que os usuários das habitações. Temo que alguns arquitetos passem a receber do Estado para apresentar projetos prontos aos moradores, que deixarão de tomar decisões”, alerta.

Foca Lisboa Foca Lisboa

Legal e ilegal lado a lado

As favelas de Belo Horizonte remontam à fundação da cidade, em 1897. O planejamento da nova capital não previa espaço de moradia para os operários, que foram obrigados a se assentarem ilegalmente na periferia. Assim, não só os conceitos de cidade formal e informal surgem juntos, um existindo apenas na presença do outro, como o avanço das duas dimensões de cidade também é paralelo: na década de 1940, as favelas cresceram ao longo de três grandes vias (avenidas Amazonas e Antônio Carlos e Anel Rodoviário), enquanto o restante se expandia igualmente.

Nas décadas de 1950 e 1960, as favelas atingem uma taxa de crescimento maior que o restante da cidade: os 36 mil habitantes que moravam em vilas em 1950 mais do que triplicaram 15 anos depois, chegando a 120 mil pessoas. Em 1985, a população nos aglomerados já era de 550 mil pessoas. “Esse crescimento aponta para a acentuação de um modelo de desenvolvimento da cidade que perpetua a segregação socioespacial”, analisou o historiador Samuel Rodrigues de Oliveira, no artigo “O movimento de favelas de Belo Horizonte e as representações do passado (1960-1980)”.

Reforma urbana

As primeiras favelas da capital mineira surgiram sob a égide dos debates em torno da reforma urbana. Em 1955, apenas 600 das 2500 habitações da periferia possuíam título de posse. “Era uma insegurança muito grande”, diz Samuel de Oliveira. Considerando a densidade populacional daquela época, a reforma urbana não demandaria muito esforço. Mas o número de habitantes da periferia se multiplicaria rapidamente. E só no governo de João Goulart, de 1961 a 1964, a reforma urbana passou a ser vislumbrada no Brasil. Acompanhando o governo federal, o prefeito de Belo Horizonte da época, Jorge Carone, editou, em junho de 1963, um decreto-lei que desapropriava terras.

Mas foi só na década de 80, com ações do Programa de Desenvolvimento Comunitário (Prodecom), que as favelas de Belo Horizonte começaram a ser beneficiadas com obras de urbanização. Naquela época, a disparidade entre a favela e a dita “cidade formal” chegou a níveis sem precedentes. “Não havia assistência educacional ou de saúde. As associações de favelas é que se encarregavam dessa tarefa, através de convênios com professores e com as faculdades de medicina”, descreve Samuel Oliveira.

Avaliando a estrutura sanitária de Belo Horizonte no período de 1991 a 2000, a geógrafa da Prefeitura Flávia Caldeira Mello concluiu, em 2005, um estudo sobre o alcance da urbanização nas favelas da capital mineira, tomando por base os índices de cobertura sanitária. Segundo a pesquisa, o saneamento em vilas e favelas cresceu consideravelmente no período: de 77,7% para 91,4%, em abastecimento de água, e de 58,5% para 79%, em coleta de esgoto. “BH já tinha um atendimento muito bom; houve então um investimento que priorizou as favelas da cidade”, diz a pesquisadora. Apesar do crescimento ter sido mais expressivo nos aglomerados, a diferença de cobertura sanitária entre as cidades formal e informal ainda era grande no início do século 21: 98,7% de água e 95% de esgoto no “asfalto”, frente, respectivamente, a 91,4% e 79% no morro.

Visão prospectiva

No ano passado, a International Federation for Housing and Planning (IFHP), uma das entidades mais respeitadas do mundo na área de arquitetura e urbanismo, sugeriu um desafio para estudantes de graduação. Como tornar as cidades habitáveis diante do constante aumento populacional? Cinco alunos da Escola de Arquitetura da UFMG – Bernardo Araujo, Éder Andrés, Isabel Brant, Mateus Andreatta e Thiago Campos – apresentaram sua proposta de solução. O trabalho consistiu em projetar uma favela do futuro, em que as ocupações de encostas de morros seriam modificadas, superando os problemas existentes na periferia e criando maior número de residências, áreas verdes e espaços públicos.

A proposta, orientada pela professora Maria Lúcia Malard, recebeu menção honrosa na cerimônia de premiação do concurso, ocorrida em Copenhague, na Dinamarca, em setembro. “É um projeto ousado. No contexto socioeconômico de hoje, a viabilidade é nenhuma. Mas em outro cenário, com o país mais desenvolvido, a reconfiguração da favela é inevitável. Os estudantes apresentaram uma proposta com visão prospectiva”, diz a orientadora.

Maria Lúcia Malard chama a atenção para o fato de a proposta buscar melhorar a vida dos que moram no local, reconhecendo a importância da sociabilidade e do lazer. “Grande parte dos conjuntos habitacionais atualmente em construção não tem espaço de convívio e de lazer. A favela guarda algumas características peculiares importantes, tais como a interação e a solidariedade entre os vizinhos. As edificações precisam favorecê-las”, sugere ela, que acredita na capacidade de projetos de urbanização de combater a violência e a criminalidade. Nessa linha, Maria Lúcia cita o arquiteto americano Oscar Newman, que desenvolveu o conceito de espaço assistido, segundo o qual os locais com menos esconderijos, melhor iluminados e mais movimentados são menos propícios a transgressões.

Urbanização impositiva

A professora Silke Kapp, por sua vez, opina que qualquer proposta de urbanização de favelas não pode ter caráter impositivo, e que planos urbanísticos em curso, como o Vila Viva, da Prefeitura de Belo Horizonte, caminham nessa direção. “Os projetos das empreiteiras não atendem aos interesses do lugar nem das pessoas que estão lá. Dessa forma, a urbanização, que se pretende inclusiva, acaba sendo exclusiva, não aponta para a democratização real. Por isso, essas obras, a exemplo de todo investimento na favela, são apoiadas num primeiro momento, mas acabam rejeitadas tão logo seu caráter interventor fique evidente”, analisa Silke Kapp.

O Morro das Pedras, na Zona Oeste, quarto maior aglomerado da cidade, com cerca de 20 mil moradores, é uma das áreas sob intervenção urbanística do Vila Viva. Segundo dados da Prefeitura, das 5113 famílias que moram no aglomerado, 1564 serão removidas, 764 receberão indenizações ou novas moradias e 800 serão reassentadas na área. Aprovado em 2007, o projeto foi discutido em audiência pública que contou com a participação de cerca de 450 moradores. Hoje, a adesão ao projeto está longe de ser unânime.

“Ele beneficia algumas pessoas e desconstrói a vida de outras. Toda comunidade de periferia tem uma história, são pessoas que moram ali há mais de 40, 50 anos, e têm a comunidade como um objeto de estima. E o programa não leva isso em conta, modifica a vida das pessoas de forma muito rápida”, critica José Inácio, morador do Morro das Pedras e membro fundador da Associação Cultural Arautos do Gueto. Em 2007, o grupo perdeu sua sede, uma casa alugada que teve que ser desocupada por conta das intervenções do Vila Viva.

A Prefeitura de Belo Horizonte trabalha com outros dois tipos de políticas para urbanização das favelas: o programa de diagnóstico e intervenção em áreas de risco e as obras do Orçamento Participativo (OP). Introduzido na capital em 1993, o OP teve um alcance mais abrangente que o Prodecom. Por ser baseado na participação dos moradores, o OP atingiu maior número de favelas e destinou a elas cerca de 30% dos seus recursos. “O processo de discussão é muito intenso, o que contribuiu para democratizar as intervenções”, afirma a pesquisadora Flávia Caldeira.

Interferência de Rita da Glória em foto de Foca Lisboa Interferência de Rita da Glória em foto de Foca Lisboa

O morro que tem vez e voz

Se nem sempre o poder público consegue chegar diretamente, iniciativas surgidas na própria favela podem contribuir para estabelecer um vínculo entre os governos e as comunidades. Surgida em 1981, a Rádio Favela (106,7 FM) consolidou-se como um desses mecanismos de contato entre os moradores e as diversas instâncias governamentais. A emissora se sustenta com o chamado “apoio cultural” de estabelecimentos comerciais. Os apoiadores recebem, em troca, espaço durante a programação. Sediado no Aglomerado da Serra, na Zona Sul de Belo Horizonte, o veículo, considerado emissora educativa desde 2000, tem programação que vai além do entretenimento.

A Rádio Favela conquistou o respeito de autoridades e políticos. Muitos deles se dirigem a ela para discutir, ao vivo, questões de interesse da comunidade. Os assuntos variam e os problemas apresentados pelos ouvintes, geralmente, são de natureza diversa daqueles expostos pela grande mídia. O tema da violência e da criminalidade dá lugar a reclamações sobre funcionamento dos postos de saúde, pedidos de esclarecimentos sobre as obras em andamento, relatos de descaso na coleta de lixo, entre outros. “O rádio tem poder de transformação, o que pode ser notado no dia a dia por meio do retorno que recebemos da Prefeitura, por exemplo. Recentemente, noticiamos os diversos casos de dengue registrados no Aglomerado da Serra. Rapidamente, recebemos a visita de agentes públicos que vieram borrifar a fumaça que mata o mosquito”, conta Deiseana Fernandes dos Santos, que trabalha na emissora.

Se na área de saúde a Rádio Favela desempenha papel reivindicatório, em outras esferas sua participação é ainda mais essencial. Um exemplo são os desaparecimentos de pessoas. “Outro dia fomos comunicados de que uma mulher estava havia três dias na Estação Barreiro. Ela dizia morar aqui na comunidade. A notícia chegou aos ouvidos dos parentes dela, que foram buscá-la”, conta Deiseana. Fincada no Aglomerado da Serra, a emissora atua como interlocutora das favelas em geral, sobretudo daquelas localizadas na região metropolitana. “Recebemos telefonemas de diversos lugares e transmitimos tudo aquilo que julgamos conveniente. Algumas vezes somos contatados por pessoas de outros estados”, enfatiza Deiseana dos Santos.

Unidas em uma central

Uma iniciativa que também busca contribuir com o desenvolvimento das favelas, embora de natureza diversa da emissora de rádio do Aglomerado na Serra, surgiu no Rio de Janeiro em 1998, tendo o rapper MV Bill como um dos fundadores. Trata-se da Central Única das Favelas (Cufa), hoje estruturada na maioria dos estados brasileiros. É uma organização que reúne jovens de todo o Brasil em torno da produção cultural da periferia, promovendo atividades nas áreas da educação, lazer, esportes, cultura e cidadania. Em Belo Horizonte, a Cufa está sediada no Aglomerado do Cabana, na Região Oeste.

José Almerindo, da coordenação da Cufa na capital mineira, enfatiza que o objetivo da entidade não é resolver os problemas da comunidade, papel que cabe ao Estado. “Não estamos aqui para combater o crime. Assim como ninguém intervém no nosso trabalho, nós também não interferimos no contexto da comunidade. É óbvio que, quando oferecemos oportunidade, muitos jovens são retirados do caminho das drogas e da violência. Mas isso é uma consequência. Combater a criminalidade é tarefa do Estado. Nós apenas proporcionamos atividades nos lugares em que as políticas públicas de juventude não chegam”, afirma ele. A Cufa tem o hip-hop como uma de suas principais formas de expressão, mas também realiza diversas oficinas culturais, organiza grupos de basquete de rua, oferece atendimento psicológico, organiza pré-vestibulares populares e outros cursos.

A prioridade da Central, segundo José Almerindo, é criar oportunidades de trabalho para o jovem negro. “Só quem já experimentou o racismo sabe qual é a sua dimensão. Os brancos são bem-vindos na Cufa, mas damos prioridade ao negro”, diz ele.

Assim como a Cufa, a Associação Cultural Arautos do Gueto também se vale de atividades artísticas em sua intervenção. Localizada no Morro das Pedras, conta hoje com 120 integrantes. Surgiu, em 1996, como grupo de percussão, com a ideia de propor ações capazes de favorecer o talento musical de crianças e adolescentes. Em 2000, as metas do projeto cresceram e a Associação se transformou em ONG. Hoje, além de abrigar os grupos Banda Arautos do Gueto, U-Gueto e Bloco Arautos do Gueto, desenvolve programa de apoio, defesa e garantia dos direitos da criança e do adolescente.

Se um internauta pesquisar “Arautos do Gueto” em qualquer site de busca da internet, as três primeiras opções são notícias veiculadas nos sites da Cufa, da ONG Favela é Isso Aí e da Associação Imagem Comunitária (AIC). As três organizações trabalham para dar projeção e visibilidade à produção dos morros.

A associação Favela é Isso Aí é fruto do Guia Cultural de Vilas e Favelas de Belo Horizonte, idealizado pela antropóloga Clarice Libânio, também coordenadora geral da ONG. O livro identificou e cadastrou 740 grupos culturais das 226 vilas, favelas e conjuntos habitacionais da capital, envolvendo cerca de sete mil pessoas.

A pesquisa que resultou no Guia Cultural mostra que apenas 20% dos artistas e grupos nele relacionados sobrevivem de seu trabalho artístico. “São poucos espaços destinados ao artista, é difícil obter qualificação, há ausência de patrimônio e instrumentação para a concretização material e faltam condições para divulgar e comercializar”, relata Clarice Libânio.

O grupo Arautos do Gueto enfrenta alguns desses problemas: desde 2007 opera sem espaço físico, ocupando locais cedidos através de parcerias com instituições da vila. Além disso, o grupo está atualmente sem financiamento da Lei de Incentivo à Cultura. O Favela é Isso Aí executa ações no sentido de minimizar entraves à produção cultural. Os associados mostram aos moradores meios de arrecadar recursos, principalmente os oriundos das leis de incentivo à cultura.

A AIC, ONG belo-horizontina que atua desde 1993 na promoção do acesso público aos meios de comunicação, combate uma percepção estigmatizada das favelas. “Procuramos desconstruí-la e mostrar toda a diversidade daquele ambiente. A cultura gerada nas favelas não é devidamente valorizada ou incorporada, ainda é marcada por uma visão assistencialista”, explica a diretora institucional da Associação, Rafaela Lima.

O objetivo da AIC é que os grupos nascidos nas favelas tenham visibilidade suficiente para participar do debate público. “A cultura é um canal para discutir e promover política”, diz Rafaela. O envolvimento da população de vilas e favelas com arte, cultura e mídia amplia a ideia de cidadania para além dos direitos políticos. “O produto artístico traz, em si, a história dos agentes culturais e de sua comunidade e as propostas de sua transformação. É exatamente com a ampliação do conceito de cidadania que se torna possível a transformação social pela via artística”, ensinam Clarice Libânio e Ronaldo Silva no artigo “A arte a serviço da transformação social”.

Além de contribuir para a socialização no interior da comunidade, a ação do Arautos do Gueto também mudou a percepção externa sobre o Morro das Pedras. “O Morro das Pedras não aparece apenas nas páginas policiais”, conta José Inácio. É a cultura reinventando o conceito de favela.

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Revista Diversa nº 17
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