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UFMG Diversa

Revista da Universidade Federal de Minas Gerais

Ano 8 - nº 17 - agosto de 2009 Cidades

Artigo

Trilhos urbanos

Ailton Krenac
Assessor para Assuntos Indígenas do Governo de Minas Gerais e empreendedor social da Fundação Ashoka

A cidade

um caminho

um rio

São lugares do exercício

de se deslocar

 

O rio

Uma cidade

O caminho, é um exercício

de se deslocar

 

O caminho

Um rio dentro da cidade

é um exercício de se deslocar

 

só assim,

a poesia das cidades do mundo

 

1990

Cinco gerações atrás, eles saíram da cabeceira de algum rio, lá pra cima das cachoeiras do alto rio...

Uma câmera aponta pra um rosto de homem de uma das centenas de famílias que formam os bairros pobres do cinturão de palafitas que cerca Manaus, imagem forte de lutador de huka-huka, e a pergunta:

Você é índio de onde?

...

silêncio na selva!

Pergunta de novo:

De onde você é?

...

silêncio de novo.

 

Sou daqui mesmo, de Manaus...

Todo mundo é daqui mesmo!

É a mesma coisa em todos os grandes centros urbanos da Amazônia. Mesmo com todas as evidências, ninguém se declara.

 

IBGE 2000

Para surpresa de muitos, o Censo de 2000 do IBGE contou pela primeira vez a população indígena do Brasil: batendo na casa do milhão!

Mas onde estão esses índios que nem a Funai ainda contou?

A contagem da Funai é feita com dados das famílias aldeadas, que vivem nas TI (terras indígenas), categoria de unidade territorial reservada para as populações indígenas e administrada pela agência do governo federal. Mas há mais coisas no céu e na terra do que constam nas listas da Funai, é aí que aparece a conta grande do IBGE. Confusão no arraial indigenista, onde os especialistas se acostumaram a listar como “índios” somente aquelas populações assistidas pela agência do governo, já acostumada ao sinônimo índio=aldeia.

Índio=cidade é novidade somente para quem ficou nesse pacote das políticas de governo, pois aqueles que decidiram buscar sua sobrevivência à própria custa estão espalhados, há muito tempo e aos milhares, por vilas e bairros e favelas do Brasil. Seja em Belém, Manaus, Cuiabá, Campo Grande ou mesmo Rio de Janeiro e São Paulo. Sim, aos milhares, vindos das mais variadas regiões do Brasil; as famílias indígenas foram construindo ambientes para sua nova vida. Em muitos desses lugares, reconstituindo sítios culturais, como os Tikuna em bairros de Manaus, onde mantêm seu casario com espaços de manifestação cultural e intercâmbio com outras famílias indígenas. Ou mesmo aqui em Araxá, Minas Gerais, onde famílias indígenas há décadas integradas à vida urbana mantêm núcleo de manifestação cultural dedicado à difusão de sua memória na rede de escolas públicas da região.

Muita gente vê na Constituição de 1988 a janela para essa reaparição dos invisíveis, que, por força da tradição política brasileira de “acabar” com índios, procuravam a todo custo negar suas origens e identidades. A Constituição de 88 fechou o ciclo da emancipação forçada e reconheceu o direito à autoidentificação desses povos milenares.

Teria sido isso o que o IBGE registrou?!

Um pouco disso, mas também da própria emancipação do povo brasileiro como um todo, reconhecendo a si mesmo como resultado da formação plural de nossa gente. Como disse Darcy Ribeiro, os brasileiros são filhos de mulheres negras e índias, ao menos na sua gênese este é o povo brasileiro. Depois vieram gregos e baianos...

Vlad Eugen Poenaru Vlad Eugen Poenaru

Mas como vivem os índios na cidade? Índio é sempre coletivo. Na cidade formam redes de reciprocidade, e sempre riscam uma linha de onde estão agora que vai dar lá no pátio da antiga aldeia, vila ou paróquia da missão onde foram seus avós aldeados. Estão na cidade, mas definitivamente não são da cidade. Seria uma incongruência.

O registro da História conta que o Pátio do Colégio em São Paulo foi a aldeia que deu origem a tudo o que temos hoje por lá. Ali perto, menos de 20 quilômetros da Sé, está a aldeia Tekoá Pyau dos Guarani, no pico do Jaraguá,  observando a cidade que nunca dorme. Estão na cidade?! No Jaraguá tem escola bilíngue, tem centro cultural e orelhão público. Sua produção de artesanato é toda distribuída a partir dali mesmo para o povo da cidade, de quem compram e vendem o que precisam. E como é tradição guarani, esse lugar que chamam Tekoá é um ponto de passagem para todas as outras aldeias guaranis espalhadas pelo Sul e Sudeste do Brasil.

Brasília é passagem de todas as tribos e não podia ficar sem um lugar que marcasse esta presença para além do ponto de passagem, agora tem o Santuário dos Pajés. Nos últimos 20 anos foi escolhido por pajés que viram no lugar os mesmos sinais que levaram JK e seus colaboradores a plantar Brasília no planalto central. É uma aldeia-cidade dentro do plano-piloto.

Índios On Line é o nome de uma das iniciativas culturais voltadas para índios em áreas urbanas, com os espaços definidos como Pontos de Cultura. Eles integram dezenas de núcleos urbanos nos quais famílias indígenas, a partir da capital paulista, se espalham pelo interior do estado e outras regiões do país e constituem uma rede superativa de produção e difusão do pensamento das novas gerações; aqui, mais uma vez traçando linha direta com as regiões de origem dessas pessoas de várias etnias indígenas. Junto com a iniciativa Opção Brasil, formam os nós da rede indígena na web.

2009

Enquanto isso, a área de licenciamento ambiental do Ministério do Meio Ambiente (MMA),  que analisa o projeto de construção da hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira, é alertada, entre outras coisas, que:

“Além disso, os membros da equipe já localizaram diversas populações de índios de várias etnias vivendo no perímetro urbano de Altamira, em quantidades muito superiores ao inicialmente previsto.”

O homem & cidade

desaparecem

ele olha & vê outra cidade,

esta agora é feita de vidro.

Jerome Rothemberg, in Pauboy-Beat

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Revista Diversa nº 17
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