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UFMG Diversa

Revista da Universidade Federal de Minas Gerais

Ano 8 - nº 17 - agosto de 2009 Cidades

Tendência

A onipresença do urbano

Ana Rita Araújo

Espaço social contemporâneo sepulta dicotomia cidade-campo e abre debate sobre a necessidade de um novo ordenamento territorial

Final de semana de sol. O cidadão resolve fugir da agitação da cidade e dirige por estradas de terra, vê árvores, casas esparsas ao longe, horizonte sem prédios. Finalmente chega ao hotel-fazenda, onde poderá andar a cavalo, tomar banho de cachoeira e, de quebra, checar seus e-mails sob as árvores, ouvindo o canto dos pássaros. Ele saiu da cidade, mas não se dá conta de que está mergulhado no urbano, ambiente que perpassa todo o espaço social contemporâneo, no dizer do pesquisador Roberto Luís de Melo Monte-Mór, professor do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), da Faculdade de Ciências Econômicas (Face) da UFMG.

Para Monte-Mór, que também é professor do Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura da UFMG, o urbano não é adjetivo de cidade, mas um novo substantivo que surgiu com características próprias. É esse “tecido” que nasce nas cidades e se estende para além delas. “O urbano aparece como um terceiro elemento que engloba cidade e campo, mas não se confunde com nenhum dos dois, porque possui características que ambos, isoladamente, não têm”, afirma. Inclui, por exemplo, condomínios fechados, hotéis-fazenda, luz elétrica, sistema viário e telefonia, além de condições de produção e de consumo que eram próprias da cidade.

Pressionado por essa configuração social, o que restou do campo está diante de duas opções: “Ou se industrializa ou se urbaniza”, decreta Monte-Mór. Na primeira hipótese, passa a se subordinar a uma lógica típica da produção industrial e do agronegócio, regida pelo grande capital. A segunda opção inclui os sítios de lazer e as atividades do pequeno produtor que trabalha sem a perspectiva de enriquecer, mas quer garantir aos filhos aquilo que já possui. “Fazem parte do que se tem chamado do ‘novo rural’ as pousadas, casas de campo, segunda residência ou até aqueles que se mudam para regiões ditas rurais, mas que na verdade são uma clara extensão do urbano”, enumera Monte-Mór.

Coexistência

Os dois caminhos – urbanização e industrialização –, no entanto, não são antagônicos. “Em muitas situações eles coexistem, até porque na grande produção agrícola muitas vezes a mão-de-obra vem desses bolsões de pequenos produtores. Mas tende a haver sempre um embate, posto com muita força pela questão ambiental”, alerta o pesquisador. Se as atividades classificadas como urbanização têm compromisso com as condições de vida, já que dependem da preservação do meio ambiente, a industrialização utiliza os recursos naturais apenas para viabilizar a produção.

A entrada do urbano em cena, na década de 1970, também redefine as cidades, pois permite a emergência de uma metrópole diferente daquela moderna e industrial que conhecemos. “É uma metrópole muito mais fragmentada e estendida, onde a necessidade de outras centralidades se faz necessária”, explica o professor. Belo Horizonte vive hoje um processo que bem exemplifica as reflexões de Monte-Mór. A transferência do centro administrativo do governo estadual para uma das regiões mais pobres da cidade e, no outro extremo, a expansão de espaços de galerias de arte e a instalação do Instituto Cultural Inhotim abrem novas fronteiras e permitem à população deslocamentos diferenciados, para atividades específicas.

Assincronia brasileira

A criação de novas centralidades é analisada de forma mais ampla por outro pesquisador do Cedeplar que se debruça sobre a questão das cidades. O economista Clélio Campolina Diniz, ex-diretor presidente do Parque Tecnológico de Belo Horizonte (BHTec), coordenou o Estudo da Dimensão Territorial para o Planejamento, que propõe uma nova ocupação socioeconômica do Brasil e a escolha de centralidades urbanas como pontos privilegiados para investimento público. O trabalho, publicado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos e pelo Ministério do Planejamento em 2008, defende a reorientação da infraestrutura pública no país, como forma de frear a megaconcentração em algumas metrópoles e estimular a criação de outras. A proposta espelha-se na bem-sucedida experiência da França que, na década de 1960, criou o programa Metrópoles de Equilíbrio, para reduzir a contínua concentração em Paris e distribuir melhor a população e as atividades econômicas no território francês.

O estudo apresentado por Campolina procura corrigir a “assincronia brasileira”, que registra megaconcentração em poucas metrópoles e população rarefeita em outras áreas. O professor afirma que, em aproximadamente cinco décadas, dois fenômenos simultâneos produziram tal assincronia: a multiplicação, em quase quatro vezes, da população – de 50 milhões de habitantes em 1950 para os atuais 190 milhões; e a inversão da concentração populacional entre campo e cidades. Estas, que detinham apenas um terço da população, hoje abrigam 85%.

Para diminuir a desigualdade no ordenamento do território, Campolina sugere o fortalecimento, com recursos públicos, de sete novos macropolos e 22 subpolos no país – cidades ou aglomerações que em sua maioria se localizam longe do litoral, já que, historicamente, as concentrações urbanas mais densas e desenvolvidas do Brasil situam-se na faixa litorânea ou próximo a ela. Campolina explica que é preciso frear o crescimento das grandes cidades, melhorar as suas condições de vida e ao mesmo tempo criar outros polos que sirvam como locais de moradia, produção, consumo e centros de serviço para apoio à sua própria população e seu entorno produtivo. Mas uma mudança desse porte não virá espontaneamente, nem por iniciativa das empresas privadas. “Para implementar um projeto dessa natureza seria necessária uma forte indução pública, com a alocação de equipamentos de saúde, educação, lazer, cultura, infraestrutura de transporte coletivo e habitação, que geram emprego e renda, e têm efeito multiplicador”, afirma.

As sete cidades eleitas como macropolos pelo grupo de pesquisa coordenado por Campolina são Campo Grande (MS), Cuiabá (MT), Porto Velho (RO) – para integrar a fronteira Oeste do Brasil; Uberlândia (MG) – para ajudar a conter a megaconcentração em São Paulo e Brasília; Palmas (TO) – para facilitar a ocupação do território central, fazer a integração com Belém e frear a concentração em Brasília; São Luís (MA) e Belém (PA), na fronteira Norte do Brasil. Aos macropolos foram incorporados 22 subpolos – alguns compostos por mais de uma cidade, por estarem aglomeradas – que devem cumprir papel complementar no projeto de desenvolvimento do país. São eles: Santa Maria (RS), Chapecó (SC), Cascavel (PR), Montes Claros (MG), Teófilo Otoni (MG), Vitória da Conquista (BA), Juazeiro/Petrolina (BA e PE), Barreiras (BA), Elizeu Martins (PI), Souza (PB), Crajubá [Crato-Juazeiro-Barbalha] (CE), Imperatriz (MA), Marabá (PA), Araguaína (TO), Sinop (MT), Cruzeiro do Sul (AC), Rio Branco (AC), Tabatinga (AM), Itaiutuba (PA), Santarém (PA), Macapá (AP) e Boa Vista (RR).

Tais polos foram escolhidos a dedo com base em estudos que levaram em conta a localização geográfica, questões relacionadas ao meio ambiente, características culturais e potencial econômico para expansão. “Infelizmente temo que esse seja um esforço utópico e que não será implementado, pois teria que entrar na agenda do governo”, comenta Clélio Campolina. Mas ele insiste: “Acho que todos têm que alimentar utopias, porque elas podem se transformar em realidade no futuro”.

Embora o pesquisador defenda a soma de ações negociadas entre os governos federal, estaduais e municipais, o projeto pode funcionar também a partir de ações isoladas de instituições públicas ou governos estaduais. E, apesar de certo ceticismo do autor, a proposta já começa a ser utilizada por órgãos públicos, como a Emater, que está aproveitando a seleção das novas centralidades para a decisão sobre a localização dos seus centros de pesquisa, e o Ministério da Educação, para instalação de escolas técnicas.

Muito cheio ou pouco vazio?

Mas o equilíbrio no ordenamento do território não resolve os problemas arraigados na quase totalidade das cidades brasileiras. E se há muitos espaços vazios no interior do país, o mesmo não ocorre nas grandes cidades, como constata a pesquisa “Sistema de espaços livres e a constituição da esfera pública contemporânea – estudo de casos em metrópoles-cidades e as novas territorialidades urbanas brasileiras”, desenvolvida no Laboratório de Paisagens do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da UFMG. Coordenada pela Faculdade de Urbanismo da USP, a pesquisa é realizada em âmbito nacional. “Estamos começando a mapear os espaços livres na cidade, e temos percebido que eles são muito poucos e estão intrinsecamente ligados à ocupação do solo”, diz a professora Stael de Alvarenga P. Costa, que coordena o estudo na UFMG. O Laboratório é integrado também pelas professoras Marieta Cardoso Maciel, Maria Cristina Villefort Teixeira, Lúcia Maria Capanema Álvares e bolsistas.

Em Belo Horizonte, a equipe também tem procurado identificar o modo pelo qual a cidade cresce, isto é, se em expansão contínua ou em forma de fringe-belts (cinturões). “Como os fringe-belts são áreas pouco densas, podemos identificá-las e propor uma determinada legislação que as mantenha mais vazias, de modo que venham a participar na formação de corredores verdes e conectar as áreas verdes que faltam na cidade”, explica a professora Stael Costa, que orienta pesquisa de pós-doutorado de Vicente Barcellos, docente da Universidade de Brasília empenhado em mapear espaços livres, morfologia e paisagem urbana das cidades de fronteira agrícola em Tocantins e Mato Grosso do Sul.

Stael Costa explica que a criação e, sobretudo, a preservação de espaços livres dependem não apenas de um forte papel dos órgãos públicos (prefeituras), mas também da ação da sociedade. “Se não há apropriação desses espaços pela sociedade, eles são invadidos. A comunidade tem que se sentir proprietária, para cuidar daquela área”, destaca, ao citar dois casos exemplares de Belo Horizonte. “A Praça da Liberdade sempre foi um símbolo da cidade, e com a retirada da feira que lá funcionou por um período voltou a ser um espaço apropriado por todos. Outro exemplo é o Parque Lagoa do Nado, na Região Norte, que foi institucionalizado a partir de uma apropriação da comunidade.” Segundo a professora, “quanto mais a população se sente proprietária, mais ela cuida. Isso passa pela educação e pela formação de uma consciência ecológica”.

Daniel Schwetter de Lima Daniel Schwetter de Lima

Uma nova ordem municipal

Problemas relacionados ao transporte público e à localização de serviços como aterro sanitário, aeroporto, rodoviária e presídio não podem mais ser resolvidos no âmbito municipal, sobretudo nas grandes cidades. “Precisam ser pensados de forma regional e enfrentados com políticas metropolitanas”, defende o professor Ronaldo Guimarães Gouvêa, do Departamento de Geotecnia e Transportes da Escola de Engenharia da UFMG.

Autor da obra A questão metropolitana no Brasil, publicada em 2005 pela Fundação Getúlio Vargas, Gouvêa afirma que a incapacidade de resolver problemas metropolitanos não é falha exclusivamente brasileira, mas há países que têm encontrado soluções. “No Canadá tem uma experiência de cidades que se fundiram, transformando-se em um município único. Já a cidade de Lima, no Peru, resolveu se fragmentar”, comenta. Para o caso brasileiro, Gouvêa propõe a criação da figura jurídica do “município metropolitano”, que teria algumas atribuições específicas.

Iguais só no status

Segundo o pesquisador, os 5.564 municípios brasileiros, apesar de extremamente diferentes entre si – em aspectos como superfície, população, história, desenvolvimento social e econômico –, são enquadrados no mesmo estamento jurídico e administrativo. “Enquanto outros países têm formas distintas de administração do território, aqui agimos como se todos os municípios fossem iguais. E existe um que representa uma realidade urbanística bastante distinta: aquele inserido em regiões metropolitanas”, avalia. Em sua opinião, tais municípios merecem tratamento diferenciado no que se refere às suas atribuições, responsabilidades e nível de autoridade para gerenciar políticas, por terem forte interação econômica, social e urbanística com os vizinhos.

Assim, as cidades que compõem uma região metropolitana deveriam, no entender de Ronaldo Gouvêa, ter autonomia administrativa diferenciada. Desse modo, políticas consideradas estratégicas passariam a ser de responsabilidade da região metropolitana. “E se o município metropolitano perderia a autonomia para gerenciar, por exemplo, o seu transporte público, ganharia assento em uma agência para discutir o transporte de toda a região”, esclarece o professor.

Outra proposta de Ronaldo Gouvêa para os problemas metropolitanos – que não entra em choque com a criação dos municípios metropolitanos – é a redivisão territorial de grandes cidades. Ele acredita que o megamunicípio é forte e grande o suficiente para inibir políticas metropolitanas, mas insuficiente para resolver as questões que envolvem grupos de cidades. Gouvêa lembra que o Brasil tem tradição de dividir pequenas cidades, o que gera uma fragmentação até discutível em termos de viabilidade econômica em algumas comunidades. “No entanto, se falo, por exemplo, em dividir Belo Horizonte em municípios de cerca de 300 mil habitantes, parece uma ofensa. A divisão deveria atender a critérios de desenvolvimento econômico, político e social. E se a divisão for interessante para o desenvolvimento de uma comunidade, por que não?”, questiona.

Gouvêa alega que nos megamunicípios o Poder Legislativo exerce papel intermediário entre Câmara de Vereadores e Assembleia Legislativa. “Em função do elevado contingente populacional vivendo nesses megamunicípios, não se constata mais a figura do representante efetivo da comunidade”, afirma o professor, para quem as administrações regionais – modelo em vigor na capital mineira, por exemplo – funcionam apenas como instrumentos de descompressão política, já que o administrador é da confiança do prefeito e não necessariamente um líder ligado àquela comunidade. “O custo de gestão dessas cidades compensaria, porque elas aliviariam o peso da máquina administrativa do megamunípio, que deixa sem solução vários problemas de caráter estratégico e abrangente, como a questão do transporte, uma das mais prejudicadas pela ausência da gestão metropolitana”, completa.

Mobilidade

A opinião do professor Ronaldo Gouvêa quanto ao papel metropolitano na solução de problemas como o trânsito é compartilhada por seu colega Nilson Tadeu Ramos Nunes, atual chefe do Departamento de Geotecnia e Transportes. Segundo Nunes, no Brasil, a Região Metropolitana de São Paulo “saiu na frente”, ao promover um acordo entre os municípios, delegando ao estado uma política de transporte integrado. Segundo ele, embora a medida tenha sido adotada com atraso – no início dos anos 2000 –, quando São Paulo já era uma megalópole, ela foi a única região metropolitana que atacou o problema “como deve ser atacado”, isto é, dando peso ao metrô.

Nunes assegura que o modelo de transporte público baseado no ônibus está saturado e defende investimentos de maior porte para implantar sistemas de transporte de massa que usem metrô ou trem de subúrbio. “Não que o metrô por si só vá resolver a questão, mas ele deve fazer parte de um contexto maior, na tentativa de se colocar o transporte público na sua faixa de demanda eficiente, coisa que não está acontecendo em cidades como Belo Horizonte”, compara o pesquisador, ao comentar que em grandes corredores da capital mineira, como a avenida Amazonas, os ônibus transportam cerca de 45 mil passageiros por hora, em um único sentido.

“Evidentemente, o ônibus não consegue transportar com qualidade, e muita gente está migrando para o transporte privado, o que piora a mobilidade. Isso é uma bola de neve”, alerta Nilson Nunes. A atual política de crédito no país, que facilita a compra de automóveis, contribui para o aumento da frota de veículos. E segundo Clélio Campolina, professor da Faculdade de Ciências Econômicas, embora a sociedade do automóvel esteja condenada, “a maioria dos estados quer uma indústria automotiva”.

Em acréscimo à frota nova, os automóveis velhos não são descartados e passam para setores de menor renda. “No mundo inteiro, ninguém consegue acompanhar a velocidade em que a frota cresce e dar uma resposta em termos de estrutura viária. Não tem como expandir indefinidamente o sistema viário, a não ser que se derrubem todas as moradias”, avalia Nilson Tadeu Ramos Nunes.

Embora se recuse a definir o automóvel como um vilão, Nunes condena a forma como ele vem sendo utilizado: “Cada vez mais as pessoas tendem a usar o transporte privado como uma alternativa egoísta. Ao invés de democratizar o espaço, nós o estamos individualizando”. O professor cita soluções encontradas por cidades como Paris e Londres, que praticamente inviabilizam o uso do veículo privado na área central. “Mas elas têm transporte de qualidade. Aqui, se a pessoa for depender de ônibus não consegue fazer suas atividades normais”, admite o professor.

Em sua opinião, o argumento de que metrô é muito caro não considera o que a economia perde com a falta de mobilidade que afeta não apenas a vida dos usuários do sistema de transporte. “Negócios deixam de ser feitos, mercadorias deixam de ser entregues e até de ser produzidas”, afirma. Pesquisador da área de logística de transportes, Nunes cita o caso de grandes empresas que trabalham com o conceito just in time e que são prejudicadas com o atraso na chegada de peças e acessórios à linha de produção.

Nunes faz coro com Gouvêa ao defender a adoção de um conjunto de soluções ancorado no sistema de transporte de massa e, sobretudo, em medidas que resolvam a questão institucional metropolitana. “Se tivéssemos um transporte público eficiente, de qualidade e integrado haveria muito menos veículos privados circulando. Mas os municípios continuam tentando adotar medidas isoladas que não atendem à questão metropolitana”, lamenta.

Cidade eficiente

A melhoria do transporte público e o investimento em novas opções, como a ampliação do metrô, são ações recomendadas também pelo geógrafo Leandro Cardoso, que, no final de 2007, defendeu a tese de doutorado “Transporte público, acessibilidade urbana e desigualdades socioespaciais na Região Metropolitana de Belo Horizonte”, no Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências da UFMG. Para melhorar a acessibilidade dos trabalhadores na capital mineira, Cardoso sugere ainda ações que inibam o uso do transporte particular e incentivem o transporte público.

Mas o geógrafo acredita no processo de desconcentração espacial como a medida mais importante para ampliar a acessibilidade em metrópoles como Belo Horizonte. “Mais importante que apostar em um sistema de transporte eficiente é investir em uma cidade eficiente”, proclama.

Rafael Fernandes Rafael Fernandes

Recuar, sim, abandonar, jamais

Apesar de concentrar características execradas pelos seus habitantes, a cidade continua exercendo um grande poder de atração, avalia o professor João Júlio Vitral Amaro, do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da UFMG. Curiosamente, na venda de casas e apartamentos construídos fora da área urbanizada, um dos itens que mais valorizam os imóveis é a vista que eles proporcionam da própria cidade.

“Parece paradoxal, mas não é”, afirma Vitral Amaro. Trata-se, segundo ele, de um certo recuo, mas nunca um abandono da cidade. “A cidade tem esse poder de atração porque é onde melhor administramos o tempo de encontro e o de recuo, uma coisa da própria natureza humana: somos mamíferos, gregários, animais de rebanho – tirando a conotação pejorativa que Nietzsche deu a essa expressão –, e todo mamífero necessita de uma certa modulação do território, escolhendo as horas de maior ou menor proximidade”, avalia.

A atração exercida pela cidade põe para a sociedade o desafio de encontrar soluções para problemas que crescem junto com a mancha urbana. “O desafio de uma cidade do futuro não é tanto uma reflexão científica, pelo menos não é uma questão de volume de informação ou de conhecimento sobre a cidade”, opina Vitral. Para ele, a cidade que conseguirmos pensar “tem a ver com o tipo de futuro que estamos esperando”. E comenta: “Estamos tão pobres ao pensar o tema cidade, que deixamos a discussão se reduzir ao dilema murar ou não murar favela”. Em sua opinião, a pergunta deveria ser: nós, brasileiros, queremos ter favelas daqui a 50 anos?

Segundo Vitral Amaro, cada povo define para si um futuro, a exemplo do que fez o Brasil na década de 1960, ao construir Brasília. “Naquele momento, enviamos uma mensagem para o futuro. Hoje é como se o país tivesse se recolhido, e a própria incapacidade de vislumbrar a cidade do futuro reflete essa falta de perspectiva de pensar o próprio futuro como nação”, diz.

Cartografia recortada

Ao refletir sobre os limites da cidade e a construção de muros em favelas no Rio de Janeiro, o professor Cássio Eduardo Viana Hissa, do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da UFMG, afirma que não há e não poderá haver, sobretudo no capitalismo, uma cidade inteira. Segundo ele, a ideia de inteireza não é recortada apenas pelas topografias, edificações e circulação, mas pelas práticas sociais e pelas relações de identidade e de conflito. “Isso significa que há limites nos interiores da cidade. Há cidades na cidade. Para o cidadão, também, não há uma cidade inteira: há a cidade para ele, que é feita nas relações que estabelece com o mundo urbano, com as pessoas, e através de um experimentar a cidade que ele próprio desenha.”

Hissa afirma que os habitantes interpretam a cidade a partir de paradigmas que lhes interessam porque se referem à história com a qual se identificam. “A interpretação que fazemos da cidade é a de nós mesmos, feita por nós e para o outro. Mas a ciência moderna ainda confia na fidelidade cartesiana das cartografias”, reflete. E diz que a edificação de uma muralha, por exemplo, poderá fazer as pessoas descobrirem que tal recorte existe nelas sem que se deem conta disso. “Desde as cidades medievais até as modernas, as muralhas, os sinais de grafite nos muros, as tintas no asfalto podem mostrar onde começa, termina e para onde segue a nossa cidade e a dos outros. Talvez ainda mais, tal desenho poderá nos dizer algo acerca de nós mesmos no mundo”, sugere.

No entender do professor, assim como os muros são feitos para separar ou dar visibilidade às partilhas, os limites existem para definir até onde se pode ir; as cercas e muralhas existem como sinal físico de existência de controle ou de tentativa de domínio. “Não desejamos favelas ou não desejamos a exclusão social? São perguntas diferentes”, questiona Cássio Hissa. Em sua opinião, “a despeito de se pensar que se gastam fortunas com os muros, a escrita da separação, no terreno, é a expressão da opção por custos mais baixos quando se imagina o necessário para suprimir a barbárie que existe em nós”.

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Revista Diversa nº 17
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