Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 2 - 2003

Editorial

Entrevista
Humanidade inquieta
Ivan Domingues

Cidadania
Uma república a ser revelada

Artigo: Não caibo mais nas roupas em que eu cabia

Comunicação
A hora do Brasil

Artigo: Decifra-me ou...

Novas tecnologias
Com quantos bits se faz um coração?

Artigo: Tecnologia e suas metáforas

Saúde
Estética aplicada

Artigo: Ser contra o naufrágio

Especial
O caminho da democratização

Artigo: Muito além da reserva de vagas

Engenharia
Engrenagem perfeita

Artigo: A arte do possível

Cultura
Chá das cinco

Artigo: O desafio das diferenças

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

artigo

A arte do possível

Ronaldo Tadêu Pena
Professor do departamento de Engenharia Eletrônica e pró-reitor de Planejamento

Engenheiros têm, em seu dia-a-dia, o desafio transdisciplinar de aliar aspectos técnicos ao bem-estar dos seres humanos e à preservação do meio ambiente

A Engenharia, do latim ingenerate, que significa criar, utiliza os conhecimentos científicos, a matemática e os recursos tecnológicos para propor e resolver problemas concretos, visando à conversão otimizada de recursos naturais, materiais e energéticos para o bem- estar das pessoas. Enquanto as ciências naturais estudam objetos e fenômenos existentes na natureza, a Engenharia concebe, por meio da tecnologia, novos objetos e sistemas, não previamente existentes na natureza.

O exercício de qualquer das especialidades da Engenharia exige, no mínimo, os seguintes conhecimentos: (I) leis básicas da ciência, (II) matemática para expressar de maneira adequada os princípios das ciências, (III) metodologias matematicamente fundamentadas de análise e síntese dos problemas específicos da área, (IV) tecnologia atualizada na área de atuação, (V) métodos de contabilização dos custos econômicos, ambientais e sociais associados aos empreendimentos.

Enquanto a função do cientista é saber, a do engenheiro é fazer. A Engenharia faz o uso prático e concreto do conhecimento científico, respeitando as questões ambientais e sociais. Fazer Engenharia é realizar o possível. Isso parece pouco, mas não é. Alguém que sempre faz o que pode ser feito faz muito. Não existe uma Engenharia só de idéias, pensamentos e intenções. Não há Engenharia onde as idéias e considerações não convergem para algo bem concreto e real.

Os projetos de Engenharia precisam satisfazer condicionantes que conflitam entre si. Melhorias na segurança adicionam complexidade aos projetos; melhor performance pode implicar aumento de peso; eficiência custa dinheiro. O engenheiro, portanto, além da competência técnica, precisa ter boa capacidade de julgamento, de forma a poder derivar as soluções possíveis para um mesmo problema e, entre elas, escolher aquela: (I) mais simples, que satisfaça certo nível de segurança, (II) mais confiável, dentro de um determinado limite de peso, (III) mais eficiente para um determinado custo, notando-se que os custos sociais e ambientais precisam ser levados em conta.

Pode-se dizer, dessa forma, que o engenheiro trabalha sempre para obter soluções ótimas e não, soluções ideais. O ideal não é alcançável por estar sempre em mutação. O ótimo é apenas o melhor possível no tempo (agora) e no espaço (aqui).

O empreendimento ou projeto de Engenharia, seja uma cidade, um prédio, um avião, um automóvel ou um eletrodoméstico, tem natureza intrinsecamente multidisciplinar. As disciplinas científicas, matemáticas e tecnológicas, a Informática, a Economia e a Contabilidade, a Ergonomia e as considerações sobre saúde dos operadores e/ou usuários, a Ecologia e a preservação do meio ambiente, todas confluem no projeto, viabilizando a sua realização.

Monica Timponi

Além da multidisciplinaridade, a interdisciplinaridade é amplamente praticada na Engenharia. Métodos de análise e de síntese desenvolvidos para a Engenharia são freqüentemente aplicados em outras áreas, tais como Economia, Medicina, Biologia, etc. Um caso típico é o da Teoria Clássica dos Sistemas Dinâmicos. Uma vez obtido o modelo matemático do sistema em estudo, a teoria clássica de estabilidade, desenvolvida por Nyquist para análise de amplificadores eletrônicos, na década de 30, pode ser aplicada, independentemente da natureza do sistema.

Assim, é possível usar os mesmos princípios para se estudar o controle da altitude de um avião durante o pouso ou a decolagem, da velocidade de um elevador, da composição da mistura combustível/ar em um motor de automóvel, da temperatura de um forno, da espessura de uma chapa de aço, da composição química de um medicamento durante sua fabricação em série, do comportamento da inflação, do estoque de um grande supermercado, da temperatura corporal, da freqüência cardíaca, etc., etc.

É relativamente recente o envolvimento da UFMG, como Instituição, nos estudos transdisciplinares. Mesmo assim, um grupo de professores da Escola de Engenharia e de outras unidades vem trabalhando no conceito de Adaptatividade. Esse conceito teve/tem importância capital na evolução/existência dos seres vivos. Por outro lado, sua aplicação tecnológica em controle de sistemas reais encontra-se matematicamente fundamentada. Existem controladores adaptativos em operação. Poderia a adaptatividade ser um conceito pelo qual se busque unidade de conhecimento?

A transdisciplinaridade trata exatamente do estudo do que está entre e além das disciplinas, com o objetivo de compreender o mundo presente por meio da unidade do conhecimento. Nicolescu afirma que “a disciplinaridade, a multidisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são como quatro flechas lançadas de um único arco: o conhecimento”. Nessa perspectiva, a contribuição das áreas da Engenharia é essencial para o esforço de se desenvolver uma universidade transdisciplinar.

A compreensão do mundo presente está muito além do conhecimento dos métodos matemáticos de análise dos sistemas dinâmicos. Entretanto, como o mundo presente é dinâmico, sua compreensão não será completa sem o domínio da Teoria Geral dos Sistemas. Essa Teoria é pedra angular de toda a Engenharia Moderna.

Em passado recente, tem sido recorrente a preocupação dos formuladores dos currículos de Engenharia da UFMG em aumentar a interface com as áreas de Ciências Humanas, Sociais e Artes. Torna-se importante, hoje, fazer o raciocínio inverso e abrir a Engenharia para estudantes de outras áreas, num processo de “inclusão tecnológica”.

A sociedade moderna não consegue viver sem a tecnologia ou, mais que isso, sem as mudanças tecnológicas. Nada impactou mais a sociedade nos anos 1900 do que a tecnologia. Ao se contrastar o modo de vida de nossos avós com o nosso, praticamente todas as diferenças são resultados da tecnologia produzida por engenheiros.

Dessa forma, a inclusão tem que ser tecnológica e não apenas científica. Não é suficiente entender algum fenômeno da natureza, o que é. O importante é compreender o processo de inovação pelo qual o conhecimento científico é convertido no que ele pode ser. Dessa forma, seria muito desejável a criação de disciplinas tecnológicas básicas nas diversas Engenharias para serem oferecidas aos alunos das áreas de Ciências Humanas e Sociais, Biológicas, Saúde e Artes. As ementas de tais disciplinas precisam relacionar a Engenharia às grandes questões sociais de nosso tempo.

O analfabetismo tecnológico certamente dificulta, ou até impede, uma compreensão adequada do mundo presente, que é o objeto principal da transdisciplinaridade.