Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 2 - 2003

Editorial

Entrevista
Humanidade inquieta
Ivan Domingues

Cidadania
Uma república a ser revelada

Artigo: Não caibo mais nas roupas em que eu cabia

Comunicação
A hora do Brasil

Artigo: Decifra-me ou...

Novas tecnologias
Com quantos bits se faz um coração?

Artigo: Tecnologia e suas metáforas

Saúde
Estética aplicada

Artigo: Ser contra o naufrágio

Especial
O caminho da democratização

Artigo: Muito além da reserva de vagas

Engenharia
Engrenagem perfeita

Artigo: A arte do possível

Cultura
Chá das cinco

Artigo: O desafio das diferenças

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

Engenharia

Engrenagem perfeita

Trabalho integrado de engenheiros, médicos, dentistas e terapeutas ocupacionais melhora a vida de muita gente

Monica Timponi

Na oficina do curso de Engenharia Mecânica, estudantes da área não são os únicos. Local inspirador, apesar de aparentemente muito modesto, a oficina tem gente da Terapia Ocupacional, da Fisioterapia, da Odontologia e até da Medicina. Não é à toa que, ali, pesquisadores, professores e alunos convivem normalmente com músculos e corações artificiais, cadeiras de rodas, tratamentos de graves inflamações provocadas por sessões de quimioterapia. “Não trabalhamos isoladamente. Ao contrário. Nesta oficina, nascem projetos que vão auxiliar outros profissionais”, diz o professor Marcos Pinotti Barbosa.

Coordenador do Laboratório de Bioengenharia (LabBio), Pinotti se inquieta, gesticula sem parar e parece, às vezes, levitar acima da cadeira ao descrever as invenções e os avanços tecnológicos que surgem de pesquisas ali desenvolvidas. Chega a se arrepiar quando lembra, com evidente orgulho, que, em matéria de transplantes de coração, o Brasil é reconhecido, em todo o mundo, como uma escola. Mas por que as enfermidades do coração são algo que emociona o professor? Ele está diretamente ligado ao assunto. É um dos colaboradores da UFMG, junto com outras instituições, no projeto do coração-auxiliar artificial orquestrado pelo engenheiro mecânico Aron de Andrade, especialista em biomédica, do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo.

O coração artificial é uma peça pequena, bem menor do que o coração humano, que serve como órgão auxiliar para o paciente com graves problemas cardíacos. Inclusive, poderá atuar como principal órgão, por algum tempo, no caso de alguma falência do coração, como um ataque do miocárdio. Ele se mantém vivo por potência elétrica (baterias interna e externa) e move-se a partir do batimento do próprio coração. O LabBio, conta Pinotti, participa da pesquisa projetando a câmara interna da pequena máquina. Um trabalho de muita precisão, pois as medidas que garantem o formato da peça definirão a maior ou a menor chance de vida dos pacientes. É dessas medidas que depende a ocorrência, ou não, de hemólise ou trombos, problemas causados pelo ritmo do fluxo sangüíneo no órgão artificial.

Monica Timponi

O último aperfeiçoamento na geometria interna do coração artificial foi feita há quase dois anos. “Depois de ser testado em carneiros, ele está prestes a ser implantado em um ser humano”, afirma Pinotti. Além de diferenças tecnológicas, a invenção nacional tem uma enorme vantagem sobre similares desenvolvidos especialmente nos Estados Unidos. “É bem mais barato”, destaca o coordenador do LabBio, um defensor da tese de que alta tecnologia não precisa ser sinônimo de custo elevado. Para enfatizar essa filosofia de pesquisa, Pinotti destaca a criação do DGP, um “músculo” pneumático que devolve a pacientes com graves deficiências mo-toras alguns reflexos que eles jamais teriam, a não ser artificialmente.

O músculo (assim chamado, mas nada parecido com um original) é uma espécie de cordão grosso de malha, recheado com um mecanismo interno, acionado por injeção de ar comprimido. No mundo, esse tipo de músculo é conhecido como Mackibben, em homenagem ao seu criador. Na UFMG, ele foi batizado de DGP, iniciais dos pesquisadores envolvidos no projeto. O músculo funciona acoplado a um exoesqueleto, ou seja, a um suporte semelhante a uma tala utilizada em ortopedia, na recuperação de fraturas. Com esse músculo, deficientes podem voltar a andar, comer ou beber sozinhos.

A invenção, fruto de pesquisas de Pinotti, estudantes de graduação e de pós-graduação no LabBio, além de um médico e um fisioterapeuta, será testada em Fátima Félix de Oliveria, de 45 anos. Aos 13 anos, a digitadora da Coordenadoria Municipal de Apoio às Pessoas com Deficiências foi vítima de poliomielite. “Quando adoeci, só mexia com a cabeça”, lembra ela. Hoje, Fátima fica de pé e anda, com muito esforço, apoiada em uma muleta. Ser “cobaia” do músculo artificial da UFMG é ter muita sorte, na opinião de Fátima. “Não existe deficiente que não queira se sentir melhor, ter mais agilidade e mais conforto”, justifica. A expectativa de Fátima é a de que o músculo artificial dê a ela maiores possibilidades de movimento.

Muito além das especialidades

Monica Timponi

A saúde é um assunto recorrente no LabBio. Por isso, foi-se o tempo em que o dentista Marcus Vinícius Lucas Ferreira achava estranho ser aluno de um curso que, para a maioria das pessoas, nada tem a ver com a sua graduação. Mestre em Lasers em Odontologia (pela Universidade de São Paulo), ele completa o doutorado no LabBio e estuda os efeitos da luz monocromática no crescimento de tecido ósseo e na ativação do sistema imunológico.

A pesquisa auxiliará no tratamento de doenças como a mucosite, uma terrível inflamação da mucosa da boca e um dos efeitos colaterais de quimioterapias, especialmente depois de transplantes de medula óssea. Esse tipo de inflamação pode até mesmo impedir o paciente de abrir a boca, pela exagerada dor que provoca. A doença é tratada com aplicações de luz no local, porque esta gera efeitos antiinflamatórios, age contra a dor e é cicatrizante. Normalmente, o laser é o tipo de luz utilizada na cura da mucosite, mas com um problema. Como luz concentrada (visualizada como um filete), o laser exige numerosas aplicações na mucosa ferida.

Com um aparelho desenvolvido a partir de Light Emitting Diodes (LED), Ferreira pesquisa a ação dessa luz difusa no tratamento da mucosite. O LED é o mesmo tipo de luz usada em painéis ou em semáforos. Quando você aproxima um aparelho de LED de alguma parte do seu corpo, como as mãos, é possível enxergar os vasos sangüíneos. A penetração no tecido e a área atingida pelo LED são bem maiores do que quando o tratamento é realizado com laser, o que significa que o tempo das sessões de tratamento é menor, além de o procedimento ser mais confortável, pois o paciente não precisa abrir a boca.

Os pesquisadores do LabBio investigam ainda o uso do LED no clareamento dos dentes. Usualmente, esse clareamento é feito com a aplicação de um gel. Porém Ferreira descobriu que o LED é capaz de catalisar reações no gel. O resultado é, também, de aceleração do tratamento, que, nos moldes convencionais, não acontece em menos de 15 a 20 dias.

Monica Timponi

União Promissora

Os projetos desenvolvidos na Engenharia Mecânica têm uma característica bastante comum, que é a de interferir diretamente no cotidiano das pessoas, buscando tecnologias baratas e, portanto, mais acessíveis à população. Por isso, os projetos exercem uma forte atração sobre outras áreas, em especial a Terapia Ocupacional. Juntos, pesquisadores desenvolvem “ferramentas”, que, na simplicidade de soluções, extrapolam grandes expectativas. No Paramec (projeto de extensão), são trabalhados, por exemplo, modelos de cadeira de rodas mais resistentes e baratas e andadores com assento. Suportes para talheres que serão utilizados por pessoas que sofrem de artrite estão sendo testados a partir de moldes feitos em tocos de madeira, utilizando-se artifícios como um prendedor de cabelos (aquele chamado piranha).

Os talheres são acoplados ao suporte, facilitando, dessa maneira, movimentos repetitivos e que forçam articulações. Quando estiver pronto, pessoas que, hoje, sofrem dores fortíssimas ao pressionar a mão e os dedos para, simplesmente, partir um bife, sentirão alívio imenso. “Aqui, a gente aplica o que aprendeu nas salas de aula, como também aprende algo mais sobre outras áreas”, salienta o estudante André Dupin, do sexto período de Engenharia Mecânica. Para ele, a aproximação entre Engenharia e outros cursos “só tem a acrescentar”. É dessa proximidade positiva e integrada que a professora e terapeuta ocupacional Liliane Morais Amaral, coordenadora do Serviço de Terapia Ocupacional do Hospital das Clínicas (HC), depende para executar seu trabalho. Uma interdisciplinaridade que vai muito além das especialidades médicas – como a Neurologia, a Ortopedia ou a Geriatria – com as quais ela lida diariamente.

“Estamos sempre muito vinculados às outras especialidades”, ressalta Liliane, lembrando que a Terapia Ocupacional tem, muitas vezes, um papel aglutinador numa unidade de saúde, como no Ambulatório Bias Fortes, do HC, onde os pacientes com incapacidades temporárias ou permanentes chegam por indicação médica para treinamentos de mobilidades e outros tratamentos. “Órteses, como as criadas e desenvolvidas na oficina da Engenharia Mecânica, são essenciais na recuperação de funções cotidianas perdidas”, ressalta a professora. No setor de Terapia Ocupacional do Bias Fortes, diferentes órteses são produzidas para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), sem reembolso do serviço.

Monica Timponi

Como matéria-prima, a terapeuta ocupacional Adriana Valadão utiliza, nas órteses que confecciona, placas termo-moldáveis importadas, que custam, em média, mais de R$ 300 e cujo aproveitamento depende do tamanho. “Se for uma órtese para dedo, é possível criar até 50 peças a partir de uma placa, mas, se for para membro superior, criamos seis, no máximo”, contabiliza ela, ressaltando que, no contato com a Engenharia, o Ambulatório Bias Fortes faz planos que poderão mexer muito com a qualidade e com a oferta do serviço de órteses. Juntos, os profissionais fizeram a caracterização dos materiais disponíveis no mercado e pretendem chegar a produzir uma placa termo-moldável nacional. A união não pára por aí. A equipe da Terapia Ocupacional, em parceria com Antônio Pertence e Antônio Ávila, professores da Engenharia Mecânica desenvolveu um software para desenhar os moldes.

O programa serve para moldes de vários tipos de órteses de mãos. Antes, os modelos eram feitos artesanalmente, o que implicava o desenho da mão no papel, depois transposto para a placa termomoldável. Foram coletadas cem medidas de mãos e, assim, o programa computadorizado, inédito, oferece um amplo leque de moldes. O trabalho prevê o uso do software para outros tipos de órteses. A produção conjunta deverá ser patenteada e colocada no mercado ainda este ano. Até o final do semestre, os professores pretendem completar uma outra pesquisa que ajudará mais ainda na fabricação das órteses: um equipamento para o corte dos moldes.

Segundo Adriana, os moldes são cortados com tesouras multiuso, mas bem pouco práticas. É necessário aquecer a placa termomoldável para que o serviço seja executado. O maior problema é que, sob aquecimento, a placa, muitas vezes, perde propriedades, o que dificulta o seu uso. “O equipamento projetado com a Mecânica vai resolver um verdadeiro drama da produção de órteses”, comemora a terapeuta ocupacional.