Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 2 - 2003

Editorial

Entrevista
Humanidade inquieta
Ivan Domingues

Cidadania
Uma república a ser revelada

Artigo: Não caibo mais nas roupas em que eu cabia

Comunicação
A hora do Brasil

Artigo: Decifra-me ou...

Novas tecnologias
Com quantos bits se faz um coração?

Artigo: Tecnologia e suas metáforas

Saúde
Estética aplicada

Artigo: Ser contra o naufrágio

Especial
O caminho da democratização

Artigo: Muito além da reserva de vagas

Engenharia
Engrenagem perfeita

Artigo: A arte do possível

Cultura
Chá das cinco

Artigo: O desafio das diferenças

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

artigo

O desafio das diferenças

Regina Helena Alves da Silva
Professora do departamento de Históriae diretora do Centro Cultural UFMG

Urbana e globalizada, a contemporaneidade defronta-se com permanente interseção cultural

Grandes debates marcam, hoje, o campo da ciência e, mais particularmente, o das ciências humanas e sociais. O desenvolvimento tecnológico, as novas tecnologias e seus significados éticos e sociais; a globalização da economia e da cultura e as interseções global/local, com o reaparecimento dos grupos étnicos, o fortalecimento de fundamentalismos de várias ordens, a organização e luta das minorias oprimidas; a diluição das fronteiras e a reconfiguração dos grupos de pertencimento e os sentimentos identitários; a homogeneização e a instantaneidade da informação concomitante à proliferação das formas comunicativas; a individualização da sociedade e a personalização dos interesses, aliadas à busca das vivências grupais e à reativação dos laços comunitários; a presentificação da temporalidade contemporânea e o obscurecimento da idéia de futuro são temáticas que, acolhendo contradições e marcando a diversidade desafiadora do contemporâneo, instigam o trabalho do conhecimento.

A globalização, os avanços tecnológicos e seus efeitos sobre o trabalho, a constituição da sociedade informacional, a ocidentalização da cultura e a superexposição da mídia são processos contemporâneos que produzem mudanças nos modos de estar e sentir-se juntos, desarticulam formas tradicionais de coesão e modificam modelos de sociabilidade.

A diversidade marca territorialmente nossos espaços de viver a partir de formas de vida específicas, que se refletem em padrões de comportamento diversos e, às vezes, em tensões e conflitos.

Corinna Gayer

A gestão dessas tensões e a construção da convivência com o respeito à diferença são alguns dos desafios mais importantes que todas as sociedades enfrentaram ou têm enfrentado. A expressão da diversidade cultural, das tensões daí advindas, da riqueza de possibilidades contidas nessa diversidade ocorre, preferencialmente, nas cidades.

As cidades crescem e a população mundial se concentra cada vez mais nas zonas urbanas. As cidades se convertem no principal lugar da diversidade cultural, dos contatos e da criatividade cultural. Mas essa diversidade implica um desafio: encontrar os meios institucionais capazes de garantir a interculturalidade, principalmente nos tempos atuais, com um espírito de paz e democracia.

Nesse contexto, as cidades aparecem como imensos caleidoscópios de padrões, valores culturais, línguas e dialetos, religiões e seitas, etnias e raças. Modos distintos de ser passam a concentrar-se e a conviver em um mesmo lugar.

Os tempos atuais produzem, simultaneamente, o desenvolvimento de uma cultura de massa por intermédio dos meios de comunicação e o florescimento das chamadas culturas locais. Esses dois elementos da transformação cultural encontram um lugar privilegiado nas cidades, onde formam parte de um processo amplo de construção de identidades.

As cidades são o espaço da diversidade, do encontro com o estrangeiro, do reconhecimento da distinção entre o “eu” e “os outros”. A tendência da globalização – um mundo “uno”, interconectado e interdependente – supõe, simultaneamente e como parte de um mesmo processo, a reafirmação da diversidade cultural e das identidades locais e nacionais.

Hoje, temos uma profunda mudança na compreensão do que entendemos por diversidade. Até há algum tempo, diversidade cultural era entendida como heterogeneidade radical entre culturas, cada uma delas enraizada em um território específico, dotada de um centro e de fronteiras nítidas. Qualquer relação com outra cultura se dava como estranha/estrangeira e, concomitantemente, perturbação e ameaça em si mesma, para a identidade própria.

O avanço tecnológico dos transportes e da comunicação “borrou” o tempo e o espaço, derrubando as barreiras que rodeavam as culturas. O processo de globalização que agora vivemos, no entanto, é, ao mesmo tempo, um movimento de potencialização da diferença e de exposição constante de cada cultura às outras, de minha identidade àquela do outro.

Reaparece a noção de fronteira, dentro da cidade, à medida que a multiplicação de identidades está ligada à multiplicidade de territórios, às desigualdades sociais e à distinta capacidade de acesso a serviços. Ao mesmo tempo, surge um futuro delineado por forças econômicas, tecnológicas e ecológicas que exigem integração e uniformização e engendram comportamentos idênticos em toda parte, moldados por um padrão urbano e cosmopolita.

Isso passa a exigir um permanente exercício de reconhecimento daquilo que constitui a diferença dos outros como enriquecimento potencial da nossa cultura, e uma exigência de respeito àquilo que, no outro, em sua diferença, há de intransferível, não transigível e, inclusive, incomunicável.

A cultura se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre a identidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma economia fundada no saber, que tem levantado algumas questões: Quem há de garantir o vigor do debate e o diálogo público que condicionam a criatividade coletiva e a vitalidade cultural? Como combinar a universalidade dos direitos com o reconhecimento dos interesses sociais e os valores culturais particulares? Como pensar os direitos culturais e a preservação e consolidação da diversidade cultural como parte inseparável da consolidação dos direitos políticos, econômicos e humanos?

Responder a essas questões requer um olhar multifacetado, uma perspectiva que não apenas promova a união de fronteiras do conhecimento, mas que seja capaz de articular um rompimento dessas fronteiras e de ampliá-las, propiciando o diálogo.