Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 2 - 2003

Editorial

Entrevista
Humanidade inquieta
Ivan Domingues

Cidadania
Uma república a ser revelada

Artigo: Não caibo mais nas roupas em que eu cabia

Comunicação
A hora do Brasil

Artigo: Decifra-me ou...

Novas tecnologias
Com quantos bits se faz um coração?

Artigo: Tecnologia e suas metáforas

Saúde
Estética aplicada

Artigo: Ser contra o naufrágio

Especial
O caminho da democratização

Artigo: Muito além da reserva de vagas

Engenharia
Engrenagem perfeita

Artigo: A arte do possível

Cultura
Chá das cinco

Artigo: O desafio das diferenças

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

artigo

Ser contra o naufrágio

José Roberto Siqueira Castro
Médico do Hospital das Clínicas da UFMG e presidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática

Interdisciplinaridade é arma na luta pela completude científica e existencial

Historicamente, a visão sobre o adoecer humano muda de acordo com as crenças. Inicialmente, o homem se sente inteiramente submetido à natureza, sendo a saúde e a doença atribuídas aos deuses. Posteriormente, com o advento da ciência e do método científico, cria-se a idéia de que o homem é capaz de modificar a natureza, o que, de alguma forma, o distancia das leis naturais, tornando-o mais individualista, com uma postura narcísica. É como se ele não tivesse nada a ver com o outro, com o meio e com o Universo. O homem passa a ter leis próprias. A harmonia entre ele e o meio ambiente passa a não ter importância. Passa a gozar de autonomia e, com isso, cria a impressão de não depender da natureza e, conseqüentemente, de poder intervir nela da forma que quiser. Torna-se onipotente, como se fosse Deus. Esse desenvolvimento científico, refletido no progresso tecnológico, bastante sedutor, pode ser evidenciado em várias áreas do conhecimento, como economia, educação. Na área da saúde, além da instrumentalização, traz o poder e o desenvolvimento da indústria farmacêutica. A capacidade crítica diante da realidade do outro quase não existe, agindo como autômato, influenciado pela cultura do ter, do consumo, do lucro, à revelia do ser, da individualidade, do sujeito que se constitui a partir do outro.

Com isso, o profissional da saúde passa a ter pouco valor próprio, não valoriza sua percepção, seus sentidos, seus sentimentos, portanto não desenvolve a autocrítica. O ser humano passa a ser, em algumas situações, proletário, à mercê do mercado. As escolas, que teriam como principal função desenvolver no aluno a capacidade de crítica e de individualização e postura ética diante da realidade, passam a valorizar a informação e o volume de conhecimento. Isso em detrimento da capacidade de filtrar o saber e emitir uma avaliação própria diante do que lhe é oferecido.

Como conseqüência, a doença é o que importa, e não o sujeito, que sofre um esvaziamento. Tanto esse como a doença passam a ser objetos das ações de saúde. A doença e o sintoma não são vistos como tendo um sentido, não são compreendidos, são para ser pesquisados e publicados, instrumentalizados, tratados com medicação e, muitas vezes, extirpados a qualquer preço.

Os benefícios do adoecer, do sintoma, como forma de parar, cuidar-se e ser cuidado por um outro não assumem sentido. O que importa é a produção, o número, o uso dos equipamentos de última geração e, por fim, a medicação. Tudo isso nos coloca numa posição de não nos olharmos, de não olharmos para o outro, seja paciente, colega, namorada, filho, pai ou mulher.

Jivago Sales

O modelo científico que se baseia nas disciplinas traz, por um lado, a idéia da sistematização, da delimitação de um objeto de estudo e, por outro, a tendência à rigidez na fronteira entre as disciplinas, provocando a ilusão do saber completo. Quanto mais há a especialização e a subespecialização, mais se acentua a tendência à fragmentação do conhecimento e à subdivisão progressiva das tarefas de trabalho. Portanto, quanto mais uma disciplina “afina-se”, delimita-se e fragmenta-se, mais omite questionamentos e discussões das fronteiras dentro das quais se situa. A visão do adoecer, em vez de multifatorial, é reducionista, o que despreza a biografia do sujeito, a estrutura das gerações que o antecederam, os agentes e fatores circunstanciais, a sua história sexual, orgânica, e a sua inserção social. A causalidade única é o que tem valor.

A interdisciplinaridade vem, de alguma forma, propor questionamentos sobre as relações, no sentido do interagir, do comunicar, do trocar, do agir comunicativo e da suspeita crítica. Ela reafirma a importância das diferenças, da individualidade e da especificidade nas relações profissionais de saúde (com o paciente e interprofissionais). Dessa forma, cria-se um clima para formação de equipes de integração, em que a hegemonia do poder não é possível, a técnica tem de estar sempre presente na discussão racional, porém a subjetividade, os conflitos nas relações interpessoais, a afetividade e a disputa de poder manifestam-se como inerentes ao convívio humano. A interdisciplinaridade, portanto, é um desafio. Investe na formação de vínculos e laços sociais. Propõe, também, que haja troca entre os profissionais para que, na convivência, surja o aprendizado e, com isso, uma mudança de referencial teórico-prático de cada categoria profissional.

Com o propósito de articulação entre os saberes, faz com que haja uma diminuição da fragmentação e uma visão integral e compreensiva do binômio saúde/doença. Ao se propor a interdisciplinaridade, correm-se, também, riscos: da perda da identidade das diversas categorias profissionais; do uso inadequado da teoria e da técnica em detrimento da sedução do conhecimento da outra referência; da falta de referência para o paciente, quando ele é visto por vários profissionais simultaneamente; e do surgimento dos conflitos nas relações. A equipe, além de lidar com questões técnicas, teria, também, a função de ser suporte socioafetivo para seus membros. Outra questão importante é que a discussão sobre a interdisciplinaridade não pode ficar restrita, isolada, departamentalizada. Dessa forma, iria contra os princípios dela mesma, que são a convivência e as trocas com a sociedade.

A interdisciplinaridade propiciaria, portanto, uma mediação entre as disciplinas, uma articulação entre os saberes e as práticas específicas. Para que isso ocorra, é essencial a competência na área específica de atuação. Quando se diz competência, é importante ressaltar a pessoa do profissional e não, simplesmente, sua competência técnica. É importante frisar que a interdisciplinaridade deve partir do olhar dos profissionais, porque, se não há um olhar de suspeita, de falta, do saber incompleto, não há como haver trocas, portanto um novo objeto de estudo que partisse do consenso seria inviável. Antes de se pensar na interdisciplinaridade praticada no externo, ela tem de estar dentro do sujeito, manifestando-se como consciência da falta e, conseqüentemente, fazendo com que se busque, num outro, algo que possa completá-lo.