Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 2 - 2003

Editorial

Entrevista
Humanidade inquieta
Ivan Domingues

Cidadania
Uma república a ser revelada

Artigo: Não caibo mais nas roupas em que eu cabia

Comunicação
A hora do Brasil

Artigo: Decifra-me ou...

Novas tecnologias
Com quantos bits se faz um coração?

Artigo: Tecnologia e suas metáforas

Saúde
Estética aplicada

Artigo: Ser contra o naufrágio

Especial
O caminho da democratização

Artigo: Muito além da reserva de vagas

Engenharia
Engrenagem perfeita

Artigo: A arte do possível

Cultura
Chá das cinco

Artigo: O desafio das diferenças

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

artigo

Não caibo mais nas roupas em que eu cabia

Otávio Dulci
Professor do departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG

Ciência contemporânea encontra dificuldade em se comportar dentro de conhecimentos especializados

A questão da transdisciplinaridade tem despertado crescente atenção nos últimos tempos. A tendência de atravessar as fronteiras do conhecimento especializado é um dos elementos da perspectiva pós-moderna que se firmou no final do século XX.

Para as ciências humanas, essa tendência é oportuna à medida que o estudo aprofundado dos fenômenos humanos requer uma abordagem de conjunto. Ele supõe que se considere a interface dos aspectos biológicos, psicológicos e socioculturais que compõem a realidade humana, a qual deve, ainda, ser considerada em sua dinâmica de espaço e tempo.

A consciência da interpenetração de tais esferas, aliás, esteve bem clara nas origens do vasto campo das ciências humanas. Este se constituiu entre os séculos XVIII e XIX, a partir de um duplo movimento. Por um lado, desenvolveu-se uma perspectiva que podemos, certamente, chamar de transdisciplinar e que se expressou nas contribuições de clássicos, como Montesquieu, Adam Smith, Marx, Freud e Weber. Nenhum deles se confinou aos limites disciplinares que conhecemos atualmente, e dessa indisciplina derivou a amplitude de suas formulações. Por outro lado, houve, como em todo campo científico, uma tendência à especialização, à divisão do trabalho, como decorrência natural do esforço para institucionalizar as áreas do saber, distinguindo-se os paradigmas e os conceitos de cada uma. Por exemplo, Durkheim, o principal fundador da Sociologia acadêmica, dedicou-se a estabelecer o objeto próprio dessa ciência – o estudo dos fatos sociais – para evitar sua confusão com a Psicologia. Essa distinção foi importante para as duas áreas, e só assim foi possível a colaboração frutífera entre ambas.

Denise Miranda

Ou seja, a transdisciplinaridade não é a negação da disciplina: é um avanço para além desta. Nas ciências sociais, temos vários ramos de conhecimento com seus respectivos temas, teorias e métodos de investigação, tais como a Sociologia, a Economia, a Ciência Política, a Antropologia. Há uma divisão convencional de assuntos entre essas ciências. Mas, ao mesmo tempo, o campo da pesquisa social abrange toda uma gama de problemas de investigação, que demandam uma abordagem plural. O fenômeno urbano é um exemplo. Atravessa todos os recortes convencionados entre a Geografia, o Urbanismo, as Engenharias, a Economia, a Sociologia, a Política, a História, a Antropologia, o Direito. O mesmo ocorre com a área ambiental, uma das que melhor expressam a utilidade de uma perspectiva transdisciplinar.

Outro exemplo é o estudo do mundo do trabalho, que abrange uma variedade de aspectos focalizados por distintas disciplinas. A conjugação dessas em torno do tema é vantajosa não só em termos cognitivos como também para a formulação de políticas públicas e de estratégias dos agentes diretamente envolvidos com o assunto (empresas, sindicatos).

Assim, a questão do mercado de trabalho, abordada sobretudo pela Economia, estende-se para a área educacional, de treinamento e qualificação dos trabalhadores. Já as relações de trabalho, o processo de trabalho, o seu ambiente social, bem como o desenvolvimento das profissões, são preocupações eminentemente sociológicas, mas que interessam muito aos historiadores (História Social). As implicações do processo de trabalho, por sua vez, se desdobram nos campos da Engenharia (Ergonomia, por exemplo) e da Medicina, ao lado de outras áreas clínicas, como a Psicologia, a Enfermagem e a Terapia Ocupacional. Trata-se, aí, dos problemas relativos à saúde, aos acidentes de trabalho, às doenças ocupacionais, às atividades insalubres. Além disso, o trabalho tornou-se, com o tempo, um campo relevante de codificação e análise jurídicas (Direito do Trabalho). Os direitos trabalhistas representaram um avanço significativo da cidadania ao longo do século XX, embora abalados pelo desemprego estrutural, fruto da expansão tecnológica, pela precarização do trabalho e pela informalidade. Essas são questões que conhecemos bem no Brasil e que têm a ver com a dinâmica do mercado de trabalho, o que nos traz de volta à esfera econômica. E envolvem, obviamente, considerações políticas, tendo em vista as políticas de emprego e renda que possam contrabalançar os problemas sociais gerados pelo mercado.

Vê-se que todas essas dimensões estão interligadas de vários modos, cruzam-se umas com as outras, o que confere à temática do trabalho uma fisionomia claramente transdisciplinar. O recorte disciplinar é útil para orientar as pesquisas, mas tem apenas função analítica. Reificá-lo, confundi-lo com a realidade, constitui equívoco patente nesse caso. Tenho observado, aliás, que os pesquisadores que se dedicam a estudar temas ligados ao trabalho estão entre os mais abertos ao diálogo com colegas de outras disciplinas. Desenvolvem, com freqüência investigações conjuntas, de cunho interdisciplinar. Fazem cursos em áreas diferentes das suas, procuram acompanhar a respectiva literatura. E participam regularmente de eventos, dentro e fora da academia, caracterizados pela pluralidade de enfoques e de qualificações profissionais.

O resultado prático dessa colaboração intelectual pode ser detectado em inúmeras situações. Podemos citar um exemplo atual: a bolsa-escola, idéia criativa que se difundiu no Brasil. É uma tentativa de responder a questões que vinham preocupando disciplinas diferentes: a repetência e a evasão escolar, o trabalho infantil, a delinqüência precoce e a má distribuição de renda. O avanço das pesquisas levou a focalizar a família como objeto de análise, não apenas a criança que some da escola e vai para a rua ganhar uns trocados para ajudar em casa (quando não tem que lidar com tarefas insalubres e pesadas, muito além de suas forças). Daí, a idéia de dar uma bolsa à família em troca da permanência da criança na escola. É um programa de distribuição de renda, mas que acopla esse objetivo com o de melhorar o quadro educacional, oferecendo chance de maturação adequada a meninos e meninas que precisam trabalhar precocemente, com enorme prejuízo para si próprios e para a sociedade.