Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 2 - 2003

Editorial

Entrevista
Humanidade inquieta
Ivan Domingues

Cidadania
Uma república a ser revelada

Artigo: Não caibo mais nas roupas em que eu cabia

Comunicação
A hora do Brasil

Artigo: Decifra-me ou...

Novas tecnologias
Com quantos bits se faz um coração?

Artigo: Tecnologia e suas metáforas

Saúde
Estética aplicada

Artigo: Ser contra o naufrágio

Especial
O caminho da democratização

Artigo: Muito além da reserva de vagas

Engenharia
Engrenagem perfeita

Artigo: A arte do possível

Cultura
Chá das cinco

Artigo: O desafio das diferenças

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

Saúde

Estética aplicada

Programas da Universidade devolvem saúde e auto-estima a pessoas mutiladas

Jivago Sales

Os muito pobres e desamparados formam a clientela da dentista Vera Lúcia Silva Resende. Longe de ser um problema, essa clientela, diz a doutora, é capaz de mudar a vida de muitos futuros profissionais, dando a eles novos valores e concepção da carreira. Professora na Faculdade de Odontologia, Vera Lúcia coordena a assistência a pacientes com deficiências neuropsicomotoras, um projeto de extensão que ela sonha ver implantado como parte do currículo. Vários passos já foram dados nesse caminho, mas agora a estrada está sendo pavimentada.

Em uma das salas do bloco cirúrgico do Hospital das Clínicas, a maca cedeu lugar a um consultório odontológico para que dentistas e anestesistas possam tratar de pessoas que, na maioria das vezes, nunca tiveram qualquer tipo de cuidado com a saúde bucal. São pacientes que, pela doença que carregam, não têm condições de se submeter a um tratamento tradicional, porque necessitam de imobilização. Às vezes, o atendimento dura até seis horas, tanto devido ao estado muito precário dos dentes quanto pela urgência de se realizar o máximo possível dos procedimentos em uma única sessão.

O programa de atendimento a pacientes com deficiências neuropsicomotoras da Faculdade de Odontologia funcionava no Hospital da Baleia, mas, desde 1998, os convênios com o Sistema Único de Saúde (SUS) foram suspensos e, por isso, o serviço que necessitava de anestesia geral foi encerrado. O atendimento ambulatorial continuou sendo realizado, inclusive com o estabelecimento de um outro convênio com a Associação Mineira de Reabilitação, que, no ano passado, montou em sua sede uma clínica onde professores e alunos da Odontologia atendem, como parte do projeto de extensão.

Renata Garboci

No bloco cirúrgico do Hospital das Clínicas, esses pacientes especiais voltarão a ser acolhidos. Não é um atendimento simples, conta Vera Lúcia, mas torna o trabalho de um dentista algo mais gratificante. Desassistidos, os clientes chegam ao consultório quase sempre com o problema agravado pela falta total de higiene bucal e são submetidos a tratamentos mais radicais. “Fazemos de tudo, de restaurações a extrações”, salienta. São casos de crianças e adultos que são levados ao dentista depois que a gravidade da situação não tem como ser camuflada devido ao mau cheiro, aos sangramentos constantes e, comumente, a um crescimento gengival que chama a atenção.

“A dor, nesses casos, é violenta, e é até difícil entender como essas pessoas a suportam por tanto tempo”, assinala Vera Lúcia, lembrando já ter atendido pacientes que vivem na miséria absoluta e que chegaram para o tratamento com a boca suja até de fezes. Geralmente, conta a professora, o serviço é prestado a pessoas com nível socioeconômico muito baixo, encaminhadas pelos postos de saúde.

No bloco cirúrgico, o atendimento é sempre feito por uma dupla de dentistas, além de um assistente de consultório odontológico, de um anestesista e de uma enfermeira. Participam do projeto os alunos do oitavo e do nono períodos da Odontologia.

Cuidados diferenciados

Pacientes especiais são também parte do cotidiano da oftalmologista Luciene Chaves Fernandes, coordenadora do Serviço de Visão Subnormal do Núcleo de Atendimento ao Deficiente Visual Nassin Calixto, do Hospital São Geraldo. Ali, são atendidas pessoas de todas as idades por uma equipe que, além de oftalmologista, conta com pedagogo, psicólogo, terapeuta ocupacional e fisioterapeuta. Vítimas de alguma lesão nos olhos, que simples óculos não conseguem auxiliar, os pacientes recebem cuidados diferenciados, que não seriam possíveis sem a intervenção de diferentes profissionais.

Jivago Sales

Foi por meio desse serviço que deficientes visuais tiveram acesso a uma das invenções que nasceu na UFMG, conjugando simplicidade e alta tecnologia. O telescópio HSG é uma espécie de binóculo, com a função de devolver ao paciente de visão subnormal, acima de sete anos, a capacidade de ler de longe. Fabricado com material alternativo, na oficina geral de reformas do Hospital São Geraldo, o telescópio custa R$ 30 e substitui equipamentos semelhantes, nacionais e estrangeiros, que são muito mais caros.

O modelo já foi apresentado em diferentes congressos de Oftalmologia, no Brasil e também em Cuba, despertando grande interesse por ser eficiente e acessível à população carente. A visão sub-normal, explica Luciene Fernandes, necessita não só de “ferramentas” especiais mas de uma integração entre profissionais de diversas áreas. As crianças atendidas nesse setor do Hospital São Geraldo, conta ela, recebem, inclusive, acompanhamento na escola.

“Não adianta cuidarmos da criança e darmos a ela condições de enxergar se os professores não sabem como lidar com as dificuldades visuais delas”, ressalta a oftalmologista. Nesse caso, uma pedagoga faz a ponte entre o tratamento e a escola, orientando, por exemplo, sobre o lugar da criança na sala de aula. “O que tentamos é dar um sentido maior para o que está prescrito para a pessoa. Quando avaliamos o paciente, pensamos nele globalmente, pensamos na inclusão social desse paciente e, por isso, precisamos de uma equipe multidisciplinar”, salienta Luciene. Segundo ela, a baixa visão leva ao atraso neuropsicomotor. O bebê, ressalta, precisa ser estimulado, e esse é um trabalho impossível de ser feito apenas pelo oftalmologista.

A inclusão social é também a maior preocupação da professora Elizabeth Rodrigues Alfenas, coordenadora, na Faculdade de Odontologia, do projeto de reabilitação protética destinado a pacientes mutilados na região da cabeça e do pescoço. O trabalho da dentista devolve, com arte e perícia, a alegria de viver a dezenas de pessoas que, por acidente ou doença, se viram diante de transformações físicas muito dolorosas.

Com alunos bolsistas, Elizabeth confecciona, no Laboratório de Prótese e Ortopedia Maxilofacial, peças que dão aos pacientes funções perdidas, como a de se alimentar sem terríveis problemas de deglutição ou uma nova aparência depois de prejuízos como a perda de um olho ou do nariz. São pessoas que sofreram grandes danos físicos causados, por exemplo, por tumores na boca e que precisam de uma prótese obturadora palatina que lhes permita falar normalmente ou se alimentar sem que a comida saia pelo nariz.

Jivago Sales

Quando o paciente fala anasalado ou come com graves restrições, observa Elizabeth, ele é visto de forma diferente pela sociedade e, normalmente, se retrai. “Com as próteses, a pessoa mutilada percebe que a vida pode voltar ao normal e então se reintegra”, argumenta a dentista. O trabalho é de artesão e exige grande habilidade. Caso contrário, como devolver a uma pessoa a tranqüilidade roubada pelos efeitos de um tumor de pele no nariz, quando a pirâmide nasal (exatamente a parte externa e elevada do nariz) foi destruída por doença?

No Laboratório de Prótese e Ortopedia Maxilofacial, o nariz é recomposto numa prótese de silicone e ganha um aspecto normal; próteses oculares, em resina acrílica, são pintadas com tamanha maestria que, ressalta Elizabeth, dificilmente são reconhecidas como tal. Por mês, são feitas cerca de 20 próteses para olho. O serviço, oferecido para pacientes do SUS, normalmente muito pobres, é raro e também caro. O sistema público não cobre integralmente as despesas e esse é um problema com que a professora tem convivido, mas do qual pretende se livrar, pelo menos em parte, apresentando o projeto a agências financiadoras.

A montagem do Laboratório de Prótese e Ortopedia Maxilofacial foi possível com recursos obtidos, em 1997, na Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig) e que foram usados não só para a compra de material mas também de matéria-prima, muitas vezes importada. Com a transferência da Faculdade de Odontologia para o campus Pampulha, o Laboratório está sendo remontado e ampliado e, por isso, os serviços estão suspensos até o segundo semestre, deste ano.