Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 2 - 2003

Editorial

Entrevista
Humanidade inquieta
Ivan Domingues

Cidadania
Uma república a ser revelada

Artigo: Não caibo mais nas roupas em que eu cabia

Comunicação
A hora do Brasil

Artigo: Decifra-me ou...

Novas tecnologias
Com quantos bits se faz um coração?

Artigo: Tecnologia e suas metáforas

Saúde
Estética aplicada

Artigo: Ser contra o naufrágio

Especial
O caminho da democratização

Artigo: Muito além da reserva de vagas

Engenharia
Engrenagem perfeita

Artigo: A arte do possível

Cultura
Chá das cinco

Artigo: O desafio das diferenças

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

artigo

Tecnologia e suas metáforas

Virgílio Augusto Fernandes Almeida
Professor do departamento de Ciência da Computação da UFMG

“Mas não falemos de fatos. Já a ninguém importam os fatos.São meros pontos de partida para a invenção e o raciocínio.”
O Livro de Areia, Jorge Luis Borges, 1975

O conflito está em curso. Acostumados a ver cenas de destruição maciça apenas nas telas de cinema ou dos computadores, ficamos atônitos, paralisados com as múltiplas realidades que se nos apresentam a cada dia. Nesse estado de perplexidade, diante de fenômenos extremos, como os conflitos urbanos ou a guerra, não sabemos exatamente o que está acontecendo em nenhuma das três dimensões. O que é real? O que é ficção? O que é virtual?

Os meios de comunicação tentam, com notícias e imagens, dar sentido à complexa realidade contemporânea. Não conseguem. As imagens não mais distinguem em que dimensão da vida contemporânea estamos situados. O teatro da guerra do Iraque é o palco onde as três dimensões estão imbricadas. A guerra tecnológica mistura ficção, virtualidade e realidade. Talvez uma marca da vida do século XXI seja a possibilidade de vivermos temporalidades distintas em espaços superpostos: o real, o virtual e a ficção. A tecnologia é o eixo comum que perpassa as três dimensões da contemporaneidade. Para entendermos a complexidade dos tempos atuais, onde se misturam e convivem realidade e virtualidade, as máquinas e o humano, o rigor da ciência, a superstição e a memória infinita, é preciso mais do que a pureza da ciência ou a funcionalidade da tecnologia. É preciso transpor os limites das disciplinas. É preciso buscar o espaço comum, onde as ciências exatas, biológicas, humanas e sociais possam estabelecer o diálogo e criar estruturas capazes de contribuir para soluções dos chamados problemas socialmente complexos, que permeiam a sociedade contemporânea.

É preciso entender a dinâmica desse processo coevolucionário da natureza, da ciência e tecnologia e sociedade, que estamos presenciando. Quais implicações para a sociedade da evolução da biologia molecular, dos avanços da nanotecnologia ou da ubiqüidade dos computadores e das comunicações? A ficção dos mestres da literatura universal mostra caminhos para a compreensão de fenômenos das novas tecnologias. Escritores, como o argentino Jorge Luís Borges, cuja temática sempre abordou mistérios, oferecem pistas para compreender melhor a estranheza, a exclusão do humano e a não-linearidade da vida na era da eletrônica, dominada pelas tecnologias da computação, comunicação e informação.

Leandro Figueiredo

A história de Irineu Funes é simples, porém desconcertante. Personagem da ficção de Borges, Funes teria tido uma vida comum, sem mais nem menos, como qualquer cristão. Um acidente, um tombo, para ser mais preciso, mudou definitivamente o rumo da vida desse peão de uma estância no sul do Uruguai. A capacidade de tudo lembrar ou, em outras palavras, a incapacidade de esquecer tornou-se a “doença” de Funes, apelidado de “o memorioso”. Nada, nenhum minucioso detalhe, escapava da implacável memória de Funes. “Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro às vésperas da batalha do Quebracho.” A memória de Funes não tinha limites!

Ora, o que tem a ver a história de Funes, passada no final do século 19, com os tempos de hoje? Sufocados pelo excesso de informação, estamos sempre a esquecer o que vimos, ouvimos ou pensamos minutos atrás. Seríamos uma espécie de anti-Funes? Aliás, Funes dizia que antes do acidente “havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo”. Seria Funes, o memorioso, um símbolo desta era da informação, em que quase tudo se encontra indefinidamente registrado nas memórias dos computadores? Claramente, faltam-nos metáforas para compreender este mundo novo, onde as redes, o onipresente computador e as possibilidades ilimitadas de armazenamento das informações ocupam a cena, juntamente com o homem, seus velhos sonhos e mazelas. A tecnologia não se explica por si só. É criada, oferece funcionalidades, ocupa lugar e pronto. Suas conseqüências e sua relação com o homem são percebidas somente com o passar do tempo. As metáforas e as significações para esse mundo novo devem ser buscadas na literatura, que vaga à vontade entre o real e o imaginário. O fantástico universo da literatura de Borges serve à invenção de modelos apropriados para o entendimento da complexidade e do excesso dos nossos tempos.

A história de Funes passou-se numa época em que as informações percebidas vinham apenas de cenários naturais e das interações do homem com a natureza, sem a presença da tecnologia, que estabelece grande parte das mediações da vida contemporânea. “Naquele tempo, não havia cinemas ou fonógrafos…” Esse detalhe da história de Funes embute uma questão central. O excesso de informação do mundo atual nos oprime e confunde. TV, rádio, jornais, Internet, fax e celulares se combinam numa tensa alquimia, que torna tudo descontínuo e fragmentado. A incessante mudança de contextos torna a realidade das informações e imagens praticamente inassimilável. Em frações de segundos, a TV passa das cenas de um desastre ecológico de proporções globais para um programa de auditório, em que a tolice e o ridículo disputam a fama instantânea. Funes era “o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato”. No mundo atual, a quantidade de informação excede nossa capacidade de percepção e absorção. O excesso de tudo e a onipresença da mídia nos fazem sentir um pouco como Funes.

Pesquisas recentes revelam a possibilidade tecnológica e econômica de se armazenar todas as imagens e informações vistas ou percebidas pelos seres humanos. O que significa essa infinita possibilidade? Mais informação? Conhecimento? Sabedoria? Funes dizia: “Mais recordações tenho eu sozinho que as que tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo”. E, apesar da ilimitada capacidade de memória, Funes era incapaz de “idéias gerais”, era incapaz de compreender o mundo. “Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversas formas; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente)”. Funes simplesmente não sabia o que fazer com tanta informação! “Suspeito, entretanto, que [Funes] não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair.”

Uma saturação que nos remete novamente ao personagem Funes, que, por tudo recordar, era incapaz de pensar. De certa forma, a era da informação, e a Internet em particular, se assemelha a Funes. É uma infindável memória, onde se coloca de tudo. Não se filtra nada; não há seleção da qualidade da informação nem se discrimina sua origem. “Minha memória, senhor, é como um despejadouro de lixos”, comentava Funes. Em um plano mais geral, o problema deriva da confusão entre o virtual e o real, que começa a permear a sociedade contemporânea. Apesar do olhar sombrio aqui levantado, não se trata apenas de um ensaio sobre a perda das ilusões, sobre o desencantamento com o avanço das máquinas e programas. Tampouco trata-se de uma visão pessimista dessa faceta da modernidade. Ao contrário, o desencantamento deve ser visto como o sinal da necessidade de corrigir o movimento. O desencantamento não necessariamente aponta para o fim da utopia da ciência ou da tecnologia. O desenvolvimento da ciência e tecnologia tem trazido benefícios inimagináveis para o ser humano. No entanto não podemos descuidar das palavras de Borges, quando escreveu o conto sobre a Biblioteca de Babel, que continha tudo que é dado expressar em todos os idiomas: “Talvez me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espécie humana – a única – está por extinguir-se, e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.”