Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 2 - 2003

Editorial

Entrevista
Humanidade inquieta
Ivan Domingues

Cidadania
Uma república a ser revelada

Artigo: Não caibo mais nas roupas em que eu cabia

Comunicação
A hora do Brasil

Artigo: Decifra-me ou...

Novas tecnologias
Com quantos bits se faz um coração?

Artigo: Tecnologia e suas metáforas

Saúde
Estética aplicada

Artigo: Ser contra o naufrágio

Especial
O caminho da democratização

Artigo: Muito além da reserva de vagas

Engenharia
Engrenagem perfeita

Artigo: A arte do possível

Cultura
Chá das cinco

Artigo: O desafio das diferenças

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

Entrevista

Humanidade inquieta

Ivan Domingues
Marcelo Terça-Nada!

O Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT) é uma espécie de filho caçula da UFMG. Desperta interesse, pretende a inovação, está preocupado com o futuro e tem muitos planos. Ainda em período experimental no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, o IEAT está inserido no contexto dos desafios que as instituições de ensino superior têm que enfrentar, entre os quais pensar permanentemente a própria produção de conhecimento. Melhor ainda, a maneira de organizar-se para tal produção.

O presidente do IEAT, o filósofo Ivan Domingues, ressalta: “Trabalhamos com a utopia”. Segundo ele, é a utopia que faz a humanidade se inquietar, não se conformar com padrões estabelecidos, e é nesse sentido que ela se enquadra nos alicerces das intenções dos pesquisadores envolvidos com o projeto. Nesta entrevista, Domingues explora o tema da transdisciplinaridade, de como o conceito pode amparar-se nas práticas das universidades e, assim, tentar mudar um modelo que prevalece há centenas de anos.

Diversa – Qual a diferença entre interdisciplinar, multidisciplinar e transdisciplinar?

Domingues – Estamos trabalhando esses assuntos há bastante tempo no IEAT, e, sem dúvida, há uma flutuação conceitual entre esses termos. Grosso modo, a grande diferença entre os três é que o interdisciplinar e o multidisciplinar estão ainda presos às disciplinas. Ao passo que o transdisciplinar quer ir além. Mas entendemos que a pesquisa transdisciplinar só poderá ser adotada e enfrentada com sucesso tendo uma base cultural sólida, o que vamos encontrar em pesquisas interdisciplinares ou multidisciplinares de sucesso.

Diversa – Então, o transdisciplinar só é possível a partir de uma experiência interdisciplinar ou multidisciplinar?

Domingues – A interdisciplinaridade é amiga da transdisciplinaridade. Não há nenhuma oposição. Mas queremos dar um passo além, pois a base cultural da transdisciplinaridade é a interdisciplinaridade. Admitida a flutuação entre os conceitos, tem-se que admitir também que há problemas metodológicos. São métodos diferentes. Na multi, várias disciplinas cooperam com um projeto, mas cada qual trabalhando um aspecto do objeto com o seu método. Na inter, há situações em que uma disciplina nova adota métodos de uma outra mais antiga. É o caso clássico, por exemplo, da Bioquímica, matéria em que houve uma fusão de campos. Na trans, a tentativa é a de instaurar uma metodologia unificada.

Marcelo Terça-Nada!
“A transdisciplinaridade ocupa as zonas de indefinição do conhecimento, as áreas de ignorância.”

Diversa – A transdisciplinaridade pressupõe uma nova maneira de organizar a ciência. Na prática, isso está acontecendo?

Domingues – Quando perguntamos por exemplos no campo da interdisciplinaridade, é relativamente fácil apontar experiências. Temos que entender que a transdisciplinaridade é ainda uma espécie de utopia e valorizar positivamente o termo utopia, no sentido do não-lugar. Ou seja, não foi realizado em nenhum lugar, mas é uma busca, uma procura. O melhor exemplo é a Escola de Sagres, o projeto português das caravelas que redundou na descoberta do Brasil. Esse projeto se deu graças à cooperação daqueles a quem se pode chamar hoje de engenheiros, carpinteiros, matemáticos. Sagres, entretanto, jamais existiu como uma escola, ou comunidade, ou um prédio com um corpo de pesquisadores, etc. Era uma época, inclusive, em que as especialidades, e com elas as disciplinas, existiam de maneira muito incipiente, porque a revolução disciplinar ocorreu depois, a partir do século XVII.

Diversa – A transdisciplinaridade só é possível porque houve o movimento de especialização do conhecimento?

Domingues – É isso. Temos que levar a sério o termo transdisciplinar, e ele mostra que o seu ponto de ancoragem é a disciplina. A transdisciplinaridade ocupa as zonas de indefinição do conhecimento, as áreas de ignorância. Ela ocupa os espaços existentes entre as disciplinas, que são uma conquista histórica permanente. Revoluções importantes no conhecimento se deram graças à constituição das disciplinas. O problema é que, ao mesmo tempo, aconteceu uma proliferação exagerada das disciplinas. Hoje são mais de dez mil. Essa disciplinarização criou, entretanto, barreiras entre as diversas áreas do conhecimento. Tal inflação gerou o mal da hiperespecialização ultradisciplinar, cujo remédio é a transdisciplinaridade, que trabalha no sentido de encontrar o antídoto. Ela procura aproximar as disciplinas e os campos de conhecimento, busca unificar o conhecimento.

Diversa – Esse remédio vai além de uma nova organização da ciência? Vai em busca de uma nova ciência?

Domingues – Sim, nós entendemos assim. Junto com a proposta da transdisciplinaridade, vem a sugestão de uma nova visão do conhecimento, menos compartimentalizada e disciplinar. Mais holística, com sistemas abertos e capazes de produzir uma nova ciência, novas tecnologias. A idéia é a de um novo humanismo. Queremos colocar o homem, a visão antropológica, no centro das atenções. Um novo homem alfabetizado em ciência, tecnologia, cultura e artes. Mas não como o humanismo dos renascentistas. Estamos pensando para a frente.

Diversa – Por mais que a transdisciplinaridade seja ainda uma utopia, na UFMG, está sendo criado o doutorado de Bioinformática, que pretende não apenas unir três áreas, mas ir além delas. Esse é um bom exemplo de como o transdisciplinar pode acontecer na prática?

Domingues – Nós, do IEAT, olhamos com muita esperança essa experiência da Bioinformática. Achamos que esse campo tem um potencial transdisciplinar muito grande. É cedo ainda para dizer o que vai acontecer, mas detectamos esse potencial. Queríamos até abrigar o projeto, mas nossa atuação é ainda na pesquisa e não no ensino.

Diversa – Uma tendência, que parece irreversível, é a de aproximar as universidades da sociedade, produzindo conhecimento e colocando-o em prática por meio de serviços oferecidos às comunidades. A interdisciplinaridade incentivou essa postura. O que se pode esperar da transdisciplinaridade?

Domingues – Conceitualmente, cercamos o problema quando pregamos uma nova visão de conhecimento e de homem, um novo humanismo. Temos a missão de propagar, de difundir esse ideal. Ao colocar a ciência e a tecnologia a serviço do homem que vive em comunidade, é claro que a questão social tem que ser posta. O conhecimento tem que estar a serviço não de grupos, de lobbies, gerando patentes, royalties, atrelado a business. O conhecimento tem que ser reorientado socialmente. Que sociedade será gerada a partir daí é outra história. Não depende só da ciência ou da universidade, mas da própria sociedade. É importantíssimo isso ficar claro, porque sabemos, hoje, o peso que tem o conhecimento na sociedade, na economia e assim por diante. Vivemos a era do conhecimento, a sociedade do conhecimento. A dependência do capital intelectual é extraordinária. Então, o vínculo entre conhecimento e sociedade está posto.

Marcelo Terça-Nada!
“... a quem pertence a dor? A qual campo disciplinar? À Literatura, à Psicologia, à Medicina mesma?”

Diversa – Qual é o peso da ética em uma nova forma de produção do conhecimento?

Domingues – A ética precisa ser recolocada. É muito importante voltar com a questão ética, mas isso não é fácil. Todo mundo está pedindo ética. Em tudo: na política, na economia... Mas a ética pode pouco, muito pouco. Ela não é nada sem o direito, sem outras instituições sociais e políticas que a apóiem. A evolução científico-tecnológica ocorreu numa cisão, numa grande ruptura com a ética. Ao analisar o processo histórico do conhecimento, vemos que foi isso que aconteceu. Passou-se a falar de ciência neutra, desinteressada, cujo único valor possível é a verdade. Mas vimos que essa cisão é temerária e que ela poderia voltar-se, como voltou, contra o homem. Realmente, não é fácil remoralizar a ciência, é algo complicado, porque a ética diz não para muita coisa.

Diversa – O senhor imagina uma UFMG transdisciplinar em quanto tempo?

Domingues – Sou muito cauteloso quanto a isso. Temos que entender que o nosso campo de atuação é a pesquisa, porque ela é estratégica, é menos cartorial, mais plástica e fluida. Mas temos idéia de implantar experiências no ensino. Vamos oferecer cursos, trabalhar num primeiro momento de forma pluritemática. Depois, vamos nos concentrar em alguns temas. Explorar as zonas de ignorância do conhecimento, porque não sabemos o que gostaríamos de conhecer. Podemos convidar um colega da Medicina para falar sobre a dor, mas a quem pertence a dor? A qual campo disciplinar? À Literatura, à Psicologia, à Medicina mesma?