Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 2 - 2003

Editorial

Entrevista
Humanidade inquieta
Ivan Domingues

Cidadania
Uma república a ser revelada

Artigo: Não caibo mais nas roupas em que eu cabia

Comunicação
A hora do Brasil

Artigo: Decifra-me ou...

Novas tecnologias
Com quantos bits se faz um coração?

Artigo: Tecnologia e suas metáforas

Saúde
Estética aplicada

Artigo: Ser contra o naufrágio

Especial
O caminho da democratização

Artigo: Muito além da reserva de vagas

Engenharia
Engrenagem perfeita

Artigo: A arte do possível

Cultura
Chá das cinco

Artigo: O desafio das diferenças

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

artigo

Decifra-me ou...

Vera Regina Veiga França
Professora do departamento de Comunicação Social da UFMG

Objeto novo no mundo, a mídia convoca embate de diferentes campos do conhecimento

A importância da comunicação, hoje, como objeto de estudo é inquestionável. A presença e a penetração da mídia na sociedade; a dinâmica da informação propiciada pelas novas tecnologias; o valor das estratégias comunicativas em todas as esferas das nossas intervenções sociais constituem não apenas um fenômeno distintivo do mundo contemporâneo, mas um fenômeno que suscita e requer a atenção do conjunto das disciplinas que compõem as ciências humanas e sociais. Não há como negligenciar esse “novo objeto” – ele diz respeito ao funcionamento da economia, à constituição dos grupos e identidades coletivas, à conformação dos sistemas de referências e comportamentos individuais, à configuração das linguagens que povoam e organizam nosso dia-a-dia.

Menos unânime, no entanto, é a compreensão e o debate sobre a natureza e a própria existência da comunicação como campo de estudos, área disciplinar. Uma coisa é falar do objeto empírico mídia; outra, distinta, é falar de uma abordagem comunicacional. Ela existe? Tem/teria alguma relevância e especificidade? Para além de um campo profissional, de um “fazer” ou “saber fazer” cada vez mais especializado e complexo, podemos falar de um olhar teórico, uma perspectiva analítica que chamaríamos “comunicação”?

Denise Miranda

A resposta a essa questão envolve dois percursos. O primeiro diz respeito à própria compreensão da constituição das disciplinas, do trabalho interdisciplinar e do conceito que, hoje, toma a frente no debate da ciência, que é a transdisciplinaridade. “Disciplinas” não correspondem a uma divisão natural dos objetos no mundo, mas referem-se, mais propriamente, à constituição de diferentes tradições de trabalho, a uma forma de olhar, organizar e recortar o mundo. Frente a uma totalidade, que é a vida social, as diferentes disciplinas promoveram recortes, constituíram objetos, que já não são os objetos do mundo, mas objetos extraídos do mundo. Por razões históricas e institucionais, o trabalho do conhecimento se organizou em áreas, em abordagens próprias e específicas (que dizem respeito ao campo e aos objetos próprios da economia, da sociologia, da psicologia, etc...).

Nesse movimento, e ao longo do trabalho de conhecimento do mundo, vários objetos e situações, em momentos específicos, suscitaram e foram alvo do olhar de várias e diferentes disciplinas. Falamos, nesse caso, de um trabalho interdisciplinar. Disciplinas distintas contribuem, cada uma com seu foco, para uma compreensão conjunta de certos objetos ou fenômenos. Não acontece, aí, um deslocamento ou alteração no referencial teórico das disciplinas: elas não são afetadas pelo objeto, mas é este que “sofre” diferentes olhares.

Por vezes, no entanto, esse movimento provoca curtos-circuitos; é quando essas diferentes contribuições, suscitadas por determinada questão ou problema, se vêem deslocadas de seu campo de origem e se entrecruzam num outro lugar – em um novo lugar. Esses deslocamentos e entrecruzamentos, esse transporte teórico, provocam uma iluminação e uma outra configuração da questão tratada. E esse tratamento híbrido distinto acaba constituindo um “novo objeto”.

Ora, o que aconteceu e como vem se dando o percurso do conhecimento da comunicação, dos meios de comunicação, ou da mídia? Os estudos que nós, pesquisadores da comunicação, chamamos “Teorias da Comunicação” são bastante recentes, datam do início do século XX e são contemporâneos do surgimento de tecnologias revolucionárias – a imprensa de massa, o rádio, o cinema, a televisão (mais recentemente, a Internet) –, que combinaram novas formas de produção da informação, novas linguagens e o alcance de audiências de massa. Foram estudos desenvolvidos com o apoio das diferentes disciplinas (Sociologia, Psicologia, Ciência Política, Ciências da Linguagem), ou seja, são estudos que nascem interdisciplinares – e se constituem, pela convergência das contribuições, enquanto um terreno transdisciplinar. Acontece aqui uma dinâmica nova (ou invertida): não é exatamente o trabalho do conhecimento que recorta novos objetos no mundo, mas novos objetos do mundo (os meios de comunicação) é que, desafiando as disciplinas estabelecidas, convocam e entrecruzam diferentes contribuições. A comunicação, enquanto campo de conhecimento, enquanto viés analítico, é exatamente esse lugar novo, esse olhar novo trazido pela soma e embate das diferentes contribuições.

É uma outra história (e um segundo momento de nossa reflexão) avançarmos na especificidade e características desse “novo” campo. Nosso propósito, nesse ensaio preliminar, foi, antes tentar situar uma questão e, certamente, instaurar uma nova reflexão. Para as diferentes disciplinas, particularmente do campo das ciências humanas e sociais, a questão da transdisciplinaridade é nova, coloca em xeque as fronteiras estabelecidas. Para a comunicação, terreno novo, aberto, extensivo, é, antes, um ponto de partida. Até confortável, não fosse o alcance da aposta: a comunicação, como campo de estudos, e diferentemente das disciplinas já consolidadas, não se vê às voltas com o abalo de tradição ou a transposição de fronteiras. Ela se nutre da diversidade das contribuições e do desafio da construção. Nesse lugar do movimento (do “trans”, e do através, do além), nos perguntamos pelas nossas estacas, mas, sobretudo, pelo nosso horizonte.